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AMERICOTECÁRIO EM VIAGEM ÀS BIBLIOTECAS DO VELHO MUNDO: PARTE I

Ao conhecer pela primeira vez uma cidade, tenho o costume visitar a biblioteca pública, caso exista. Seja no Brasil ou no exterior, é a mania de velho bibliotecário. Se possível, conhecer a biblioteca local, ou alguma outra como: universitária, especializada ou nacional. Aquela que for oportuna. Acredito que conhecemos muito de uma comunidade e dos seus gestores públicos visitando a biblioteca pública. Apesar da falta de uma base científica, é observável que um povo com boa qualidade de educação e de cultura é refletido na qualidade dos serviços e do acervo da biblioteca.

 

Desta forma, desenvolvo alguns textos que ilustram esta linha de intenção e, também, refletem visitas realizadas em bibliotecas do velho continente. O título é um trocadilho com Américo Vespúcio, que com suas viagens náuticas e descobertas batizaram o novo mundo de América. Américo Vespúcio foi um mercador, navegador, geógrafo, cosmógrafo italiano e explorador de oceanos. Hoje, não há mais caravelas, mas aviões. Percorremos o mundo, sobre asas metálicas, ou pela tela plana dos computadores.

 

Assim, inicio comentários pela biblioteca municipal da bela cidade de Praga (em checo: Praha) que é a capital da República Checa. Famosa pelo extenso patrimônio arquitetônico e rica vida cultural, além de ser o principal centro econômico e industrial do país.  Possui uma área de 496 km² e uma população de 1.237.893 habitantes (censo 2009). Também possui uma Biblioteca Municipal (em Checo: Městská knihovna v Praze). Foi fundada em 1891 pelo Conselho da Cidade de Praga como uma biblioteca pública municipal da capital real de Praga. Desde 1903 é baseado em Marianske, praça da cidade velha, mas o edifício atual foi construído entre 1925 - 1928 por companhias de seguros urbanos de carga. Em 2007, a Biblioteca era composta de 46 filiais e três bibliotecas móveis.

 

A figura 01 contém imagens de uma escultura feita de livros empilhados, formando uma torre. Não sei se é uma metáfora à torre de babel. Aliás, a peça “artística” trás a memória uma cena do filme Fahrenheit 451, adaptação cinematográfica do romance homônimo de Ray Bradbury, dirigida por François Truffaut em 1966. Na cena, a polícia invade a casa da bibliotecária, onde localiza livros escondidos, faz uma pilha com os mesmos e, posteriormente, queima tudo – livros, casa e a bibliotecária que resiste em abandonar a casa e os materiais bibliográficos. Apesar de a construção ser de gosto duvidoso (aos meus parâmetros), a pilha de livros forma um funil, e com um espelho inserido em seu interior dá a sensação de infinito, conhecimento sem fim. Haviam moedas jogadas por visitantes incautos que julgavam ser aquela uma espécie de fonte dos desejos. Talvez uma fonte de desejos de saber. Não foi possível identificar o sentido da obra, localizada à entrada da biblioteca.

 

Figura 01 – Escultura de Livros da Biblioteca Pública de Praga

 


 

 

Já, a figura 02, mostra a fachada da biblioteca e alguns aspectos do seu interior. Convém salientar que a visita foi realizada em um sábado. Neste dia da semana a biblioteca funciona no horário das 13 às 18 horas, fecha aos domingos. Nos demais dias da semana funciona das 10 às 20 horas. Apesar do horário curto de funcionamento, de um dia de final de semana, em um dia frio e chuvoso, a biblioteca contava com um grande volume de pessoas em suas dependências. Um aspecto curioso é o restaurante anexo, com entrada externa e interna ao prédio da biblioteca. Havia promoção de almoço a 9 euros, além de servir lanches e café. Afinal, estômago vazio não enche cabeça.

 

Figura 02 – Ambiente da Biblioteca Pública de Praga

 


 

Pode-se visualizar, nas imagens, a amplitude do espaço. O prédio de arquitetura sem estilo definido, parecendo uma caixa quadrada, possui vários andares. No dia da visita, em um sábado, apenas o setor de consulta e circulação estava aberto ao público. No setor há, ainda, um ambiente infantil. As salas construídas com pé direito alto permite nas divisões internas a existência de mezanino. O mobiliário é confortável e moderno. O acervo bem variado e atualizado. A seção de periódicos continha publicações variadas e de leitura popular, não só técnica. Um povo que lê muito contribui para um mercado editorial produtivo, apesar do idioma não ser dos mais conhecidos. O ambiente da biblioteca lembra o espaço físico de livrarias localizadas em shopping, no Brasil.

 

Na figura 03, a imagem apresenta o catálogo bibliográfico em fichas ainda disponível, na biblioteca. O catálogo impresso ainda sobrevive. Ao que parece nem todos os registros foram migrados para a base de dados bibliográfica. O ano de alimentação do catálogo impresso foi encerrado em 2001, mas a conversão retrospectiva não foi finalizada. O fichário segue o modelo do catálogo dicionário.

 

Na Figura 03 – O Catálogo da Biblioteca Pública de Praga

 


Apesar da convivência dos dois sistemas, impresso e eletrônico, o fichário segue com seu estilo nobre e tradicional, móvel de madeira, ornamentado de flores e folhetos informativo. Não destoa da decoração, ao contrário, dá um aspecto retro à modernidade mobiliária. O catálogo eletrônico existente está estruturado no padrão MARC 21.

 

Um detalhe interessante, a biblioteca situa-se no circuito turístico da cidade central. No seu entorno estão os principais pontos de visitação. Assim, ela é um ponto estratégico para turistas que visitam a cidade. Como não há banheiros públicos e de acesso livre nas mediações, os banheiros da biblioteca são limpos e gratuitos. Aliás, nos países europeus, de maneira geral, os banheiros localizados nas bibliotecas são mais acessíveis em relação às taxas cobradas pelos restaurantes e lojas. Como alguns turistas (em especial brasileiro) não têm a cultura de frequentar bibliotecas acabam pagando, em média, dois reais para um “xixi” básico.

 

Em frente á Biblioteca Pública fica o conjunto de edifícios chamado de Clementinum (Klementinum em Tcheco), originalmente sede de um colégio jesuíta. Foi construído pelos jesuítas em 1556. Atualmente é a sede da Biblioteca Nacional da República Tcheca. Infelizmente não foi possível conhecer a BN, uma vez que a entrada é permitida só às pessoas que vão pesquisar. O atendente posicionado à porta de entrada era portador de um mau-humor, e carente de inglês ou espanhol básico. Só sabia dizer “no, no”. Então “no” entrei.

 

Mas, anexo à Biblioteca Nacional, há disponível para visitação a denominada “Biblioteca Barroca”. Em realidade uma biblioteca museu (Figura 04), anteriormente chamada de museu matemático por conter coleções de objetos diversos, como o sextante utilizado por Johannes Kepler que residia perto da biblioteca, e usava a torre da mesma como laboratório de estudo. A torre e mirante de 68 metros, cuja construção foi concluída em 1722, serviam aos estudiosos para observações astronômicas. A visitação nos mostra a genialidade e inventividade destes estudiosos que dispondo de recursos limitados se comparado com as tecnologias atuais, desenvolviam equipamentos e aproveitamentos que permitiram formular teorias e conceitos ainda hoje válidos. E tinham uma biblioteca na base de seu mirante do universo.

 

Figura 04 – Biblioteca Barroca de Praga

 


A Biblioteca Barroca é mantida na penumbra para proteger os 20.000 títulos. Os livros estão redigidos em diversos idiomas, com maior frequência do alemão, italiano e latim. A maioria das obras é impressa, os jesuítas possuíam a sua própria imprensa. As obras são em maioria brancas, pintadas de branco para melhor serem vistas na penumbra da biblioteca. Também eram classificadas por seus temas, por exemplo: Escrituras Sacras, Santa Escritura – Bíblia. Nos tempos dos jesuítas havia também outras interpretações que as determinadas pela católica romana e os livros com estas outras interpretações se guardavam na seção de livros proibidos – Librorum prohibitorum.

 

A origem da atual biblioteca nacional é de 1781, criada por Karel Rafael Ungar, diretor da biblioteca pública, que começou a classificar os livros segundo assuntos e criou a tradição de depositar obrigatoriamente um exemplar de cada título publicado em checo na biblioteca nacional. Os globos da biblioteca são de dois tipos – celestes e geográficos. Os globos geográficos são atualmente muito interessantes porque se construíram segundo mapas criados por missionários jesuítas. Com os globos podemos estimar as regiões pelas quais os jesuítas viajavam. Faz recordar do capítulo dos materiais cartográficos da AACR2, e a complexidade de descrever tais suportes, ainda mais quando são obras raras.

 

A biblioteca pública e o conjunto arquitetônico no qual está situada a biblioteca nacional, na cidade de Praga, como citado, encontram-se no circuito turístico, algo raro de se ver em cidades brasileiras. Nelas se poder visualizar o patrimônio da humanidade tombado pela UNESCO, e o hábito de leitura de uma sociedade secular, que passou por guerras e submissão a ditaduras totalitárias.

 

Como observa Suaiden (2002, p.337), as bibliotecas públicas sempre tiveram uma função nobre. Nos Estados Unidos da América do Norte, seu surgimento contribuiu para preservar a democracia. Em outros países simbolizam importantes mudanças sociais. Em determinados contextos, à semelhança da Igreja Católica e da Escola formam parte da paisagem local.

 

Indicação de Leitura:

SUAIDEN, Emir José. El impacto social de las Bibliotecas Públicas. Anales de Documentación, n. 5, p. 333-344, 2002.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.