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A DÉCADA DE 1960: OS BEATLES E OS CATALOGADORES; E A ROSA

A década de 1960 foi marcante. Quem viveu a infância ou juventude sabe que aquela foi uma década especial. Alias, um século dos mais especiais, dentro do século 20. Política, ciência e tecnologia, literatura, cultura, e costumes sociais. Tudo passou por uma massiva mudança. Paradigmas mudaram, Marshall McLuhan definiu: “O meio é a mensagem”, meios de comunicação são extensões dos sentidos humanos. E o rock and roll atinge o ápice. A juventude tornou-se mais alegre e, entre as muitas opções, surgem os Beatles. Deles, comemoramos o 50° aniversário da primeira música lançada: Love Me Do, 5 de outubro de 1962. Desconheço se bibliotecários, quando da promulgação da Lei n. 4.084/62, que regulamentou a profissão, embalaram as comemorações sob a alegria do rock. Certamente, as novas gerações de bacharéis em Biblioteconomia balançaram os diplomas com canções como: Yesterday,  Let It Be ou, ainda, Hey Jude a canção escolhida como favorita em votação promovida pela rede britânica BBC. Até usuários de biblioteca, no período, apaixonados por esta geração de bibliotecárias recém-formadas, cantavam nas salas de leitura: Love, love me do / You know I love you / I´ll always be true / So please, love me do / Oh, love me do. E o serviço de referência tonou-se uma atividade mais apaixonante. Se o muro de Berlim era construído, no movimento de contracultura, no lugar de uma metralhadora, havia uma guitarra. Afinal, para a segurança global havia o agente James Bond, e nunca mais os serviços secretos foram os mesmos.

 

Mas se estávamos produzindo fichas catalográficas em máquina de datilografia, também buscávamos uma uniformidade internacional das regras de catalogação. Comemoramos o cinquentenário da Conferência Internacional sobre Princípios de Catalogação (International Conference on Cataloguing Principles – ICCP), realizada na cidade de Paris, em outubro de 1961. Fora organizada pela IFLA com apoio da UNESCO. Entre vários fatores que tornaram a Conferência algo essencial para uma moderna visão da atividade catalográfica encontra-se a própria crise da catalogação. Andrew D. Osborn escreveu que:

 

"Grande parte da Biblioteconomia e da administração de biblioteca não é no todo científica. Durante um bom período de anos os administradores desenvolveram um corpo de boas práticas, e é isso o que pode ser chamado de Biblioteconomia. Talvez tenha havido um mínimo de teoria e um máximo de bom senso no desenvolvimento destas boas práticas, e pode ser que tenha havido certas perdas em minimizar o papel da teoria".

 

Para o autor, a Biblioteconomia era uma prática, uma técnica na qual faltava um corpo teórico para basear-se, aspecto que também faltava à catalogação. No seu artigo, argumentou que a catalogação se diluía em quatro teorias sem pontos de convergência: a legalista, a perfeccionista, a bibliográfica, e a pragmática. 

 

Assim, se ao longo da primeira metade do século 20 não houve avanços na constituição de uma normalização da catalogação, por outro lado as guerras mundiais, as crises econômicas e instabilidades políticas daqueles anos em nada favoreceram a consolidação de uma cooperação bibliotecária do tipo que originou as regras da American Library Association (ALA) e da Library Association (LA), de 1909. Ademais, os códigos de catalogação da ALA editados nos anos de 1941 e 49 eram uma acumulação de regras que perderam os princípios teóricos. Fazia-se necessário recuperar a teoria e fortalecer o desenho de códigos de catalogação coerentes, não limitados a serem compêndios de regras (ESTIVILL RIUS, 2012).

 

Foi do trabalho de Lubetzky (e de sua notória influência) que a catalogação e os códigos resgatariam princípios teóricos, como os propostos por Cutter, simplificados em alguns aspectos e revigorados com a inclusão do conceito de obra, como elemento central na função agregadora do catálogo bibliográfico. Em 1954, a IFLA institui um grupo de trabalho composto de catalogadores, representantes de vários países e de várias tradições da catalogação. Sobre o trabalho desta comissão, Alice Príncipe Barbosa comenta que além do preparo da coordenação internacional dos princípios, produziu relatório sobre os mesmos, e no qual estabeleceu orientações de entradas para obras anônimas e de autoria coletiva. O relatório tornava percebível que códigos de catalogação tradicionais como os da ALA e as Instruções Prussianas convergiam para um mesmo ponto, ou seja, apoio ao uso de cabeçalhos mais específicos, evitando-se as entradas geográficas e as entradas formais e convencionais. Recomendava a consulta junto aos especialistas de vários países priorizando os problemas da catalogação em geral. Da recomendação originou-se a Conferência de Paris.

 

O objetivo da Conferência foi estudar princípios catalográficos sobre os quais os catalogadores se baseiam no momento de elaborar os catálogos bibliográficos. Basicamente, a determinação dos cabeçalhos ou ponto de acesso de autoridade. A influência da Conferência como aprendemos nos cursos de Biblioteconomia, provocou a revisão das regras de catalogação em geral. Aliás, mesmo hoje quando falamos em FRBR (Functional Requirements for Bibliographic Records), FRAD (Functional Requirements for Authority Data), FRSAD (Functional Requirements for Subject Authority Data), e a RDA, cada vez mais a Conferência está presente e serve de planejamento. Ela ainda não acabou, pois os seus efeitos renovam os princípios atuais propostos em 2009.  

 

Um dos articuladores com papel decisivo e ativo na realização do evento foi o bibliotecário inglês A. H. Chaplin, da Biblioteca Britânica. Envolvido em reuniões prévias, ocupou o cargo de Secretário Executivo do Comitê Organizador da Conferência. Ele destacou que foi o mais amplo e maior encontro de especialistas em catalogação. Compareceram ao evento 105 delegações procedentes de 53 países e doze organizações internacionais, com 104 observadores de 20 países. Fato que marca como os novos princípios precisavam ser ainda mais amplos em participação e envolvimento, agora no inicio do século 21.

 

Ainda, segundo Barbosa, a realização da Conferência foi oportuna, pois nos dois anos que a precederam, as associações de bibliotecários de vários países foram motivadas a constituir comissões para estudar a documentação previamente distribuída, e a emitir sugestões, bem como designar delegados votantes para o evento. O Brasil foi representado pela bibliotecária Maria Luísa Monteiro da Cunha. A forma como foi estruturada colaborou para uma eficiência nos objetivos buscados, e nas discussões havidas. Para Garrido Arilla, a Conferência ao tratar dos problemas gerais da catalogação, estabeleceu os princípios em matéria de cabeçalhos ou entradas de autoridade, e de obras anônimas no catálogo. Discutir um acordo sobre a escolha e forma de entrada, em especial no caso de sobrenomes compostos, nas transliterações dos autores orientais, no caso de obras escritas por vários autores (coletivas) ou em colaboração, nos nomes geográficos, autores corporativos e anônimos. Entretanto, Barbosa faz uma observação interessante: “os Princípios não foram considerados internacionais, devendo cada país se encarregar de ajustá-los às suas necessidades”.

 

Faço uma indagação pessoal: no Brasil quais foram os ajustes feitos pela Comissão de Catalogadores? Será que apenas a determinação das “Entradas para nomes de Língua Portuguesa”, apensada à edição do AACR2 é o tal ajuste pretendido? Como a Comunidade de Catalogadores Brasileiros pensa atualmente o controle de autoridade?

 

Mas como cantavam os Beatles, no refrão da musica Ob-La-Di Ob-La-Da: Obladi, oblada / Life goes on, bra / La la how the life goes on / Obladi, oblada / Life goes on, bra / La la how the life goes on do.

 

No documento da Conferência de Paris ficou estabelecido alguns princípios para escolha e forma de entrada compreendidos em 12 itens: a) Objetivos; b) Funções do catálogo; c) Estrutura de um catálogo; d) Tipos de entrada; e) Uso de entradas múltiplas; f) Funções dos diferentes tipos de entrada; g) Escolha do cabeçalho uniforme; h) Autor pessoal e individual; i) Entrada coletiva; j) Autoria múltipla; l) Obras com entrada pelo título; m) Entrada para autores individuais.

 

Barbosa também destaca que o item de maior discussão no evento foi relativo às entidades coletivas. A extensão das diferenças entre sociedades e instituição foi do agrado geral. Já, a regra sobre autoria pessoal versus entidade coletiva gerou discordâncias. Até Ranganathan, delegado da Índia, se posicionou sobre a questão afirmando que o fato de uma entidade coletiva financiar, publicar ou aprovar um trabalho não lhe garante que seja autora. Para ele a entrada pela entidade coletiva deveria ser escolhida se a responsabilidade fosse efetivamente comprovada na obra e não entre os dados de autoria do qual constasse o nome de uma pessoa. Nesta situação, o nome da pessoa deveria ser escolhido para entrada principal e o da entidade coletiva incluída nos dados de distribuição – editora. Se, entre os dados de autoria constasse o nome de uma entidade coletiva e também de uma pessoa, a entrada escolhida deveria ser da entidade, no caso de publicação de caráter legislativo, judiciário ou executivo, ou considerado trabalho de rotina. No caso do trabalho ter a intensão de acrescentar ou intensificar uma área do conhecimento humano, a escolha deveria recair no nome da pessoa.

 

Evidenciou-se que a Conferência não solucionou todos os problemas, até gerou algumas inconsistências ou deu margem a dificuldades de aceitação ou interpretação por parte da comunidade bibliotecária. As divergências foram observadas em 1967 quando são publicadas duas versões das Regras de Catalogação Anglo-Americanas (AACR). Uma norte-americana, preparada pela ALA, Library of Congress, e Canadian Library Association; e outra, britânica, elaborada pela LA. Ambos os textos dividiam-se em três partes:

 

§  Parte I, Entry and Heading (Entradas e Cabeçalhos): baseado nos Princípios de Paris, nas regras da ALA de 1949, e no código esboçado por Lubetzky.

§  Parte II, Description (Descrição): contemplava as regras revisadas desde 1949, incluídas as regras da Library of Congress.

§  Parte III, Non-Book materials (material não livro): contendo regras tanto para entrada, quanto para a descrição de material não livro. Consistia das regras revisadas desde 1949, incluídas as regras da Library of Congress e os suplementos: Cataloguing Service Bulletin (texto norte-americano), e Anglo-American Cataloguing Rules Amendment Bulletin (texto britânico).

 

Segundo Barbosa, o texto britânico é considerado mais fiel às ideias de Lubetzky e à Declaração de Princípios da Conferência de Paris. Posteriormente, ocorre um entendimento das duas entidades, ALA e LA, refletido nas alterações e mudanças publicadas a partir de 1969 – 1975, incorporadas ao texto norte-americano, e que se torna o legado a nós catalogadores brasileiros.

 

Os fatos e acontecimentos realçam um aspecto do perfil da área, os catalogadores mostram uma tendência de retornarem aos primeiros princípios, sempre que eles são desafiados. Revisitar os fundamentos intelectuais da catalogação, examinar a estrutura e funções do catálogo e perguntar se ainda fazem o que é esperado fazerem. Todos os eventos que sucederam à Conferência incorporam em algum aspecto tal característica. Mesmo quando migramos dos catálogos impressos, para os eletrônicos e agora os digitais – WebOPACs, precisamos retornar às origens para podermos continuar a caminhar para frente.

 

Como mencionado, com a "crise da catalogação" (anos de 1940), a revisão do código da ALA por Lubetzky e o resgaste dos fundamentos teóricos da catalogação, e a Conferência de Paris estabeleceram condições de enfrentamento à novos desafios. O lançamento do formato MARC, a formulação das ISBDs, a orientação política e econômica em direção ao trabalho cooperativo, o surgimento de sistemas de automação de biblioteca e a conversão de papel para arquivos eletrônicos foram estabelecendo forças impactantes no desenvolvimento dos códigos de catalogação. Sem dúvida, a Conferência de Paris, estabeleceu-se como primeiro encontro sério para se chegar a um acordo internacional em matéria de princípios catalográficos.

 

Desde meados da década de 1990, a maior ameaça ou incentivo à catalogação (dependendo do ponto de vista), foi o surgimento e o crescimento da Internet, com a sua camada Web contendo recursos, que são substitutos mais enriquecidos do que a maioria dos catálogos bibliográficos mantidos por bibliotecas. Os atuais mecanismos de busca, com interfaces mais sofisticadas que as ofertadas pelos WebOPACS, e uma intuitiva facilidade de uso com pronta disponibilidade, levam o público em geral e os pesquisadores em especial, a consultá-lo antes mesmo que o catálogo bibliográfico. Situação que faz emergir a realização de constantes Conferências de Paris na busca de respostas aos desafios, e a reconceituar a própria catalogação.

 

No Brasil, entretanto, ainda vamos remando na questão. Em outros hemisférios se questionam: Quais são os fundamentos conceituais da catalogação e onde os princípios se encaixam? É, geralmente, aceito que as perguntas sobre as funções do catálogo bibliográfico, e os meios para alcança-las são questões de bases da catalogação. As funções do catálogo, pelo menos na tradição anglo-americana, foram identificadas com os objetivos do catálogo declarados, primeiramente, por Charles A. Cutter, em 1876. Posteriormente, foram adaptados pela Conferência de Paris, também conhecida como os “Princípios de Paris”. Os princípios expressam o meio pelo qual as funções do catálogo podem ser alcançadas. Nas palavras de Lubetzky, elas são “diretivas gerais pelo qual os objetivos da catalogação podem ser servidos". Juntos aos objetivos, os princípios fundamentam o código de catalogação e constituem sua base conceitual ou intelectual.

 

Assim, é preciso que a comunidade bibliotecária esteja sempre disposta a alterar seus conceitos conforme as condições mudem, ou ao menos manter permanente discussão. E já que aguardamos por uma nova norma, a RDA (a ser relançada em 2013), transcrevo uma interpretação das palavras de Jolley para o momento:

 

A Conferência de Paris foi realizada após mais de uma década de estudos generalizados e intensivos sobre as práticas e teorias da catalogação. Só nos dois períodos anteriores à formulação da regra de Panizzi houve ampla discussão sobre os problemas de catalogação por bibliotecários e nunca tantas mentes profissionais deram muito do seu tempo para o estudo destes problemas. Assim, é decepcionante que, depois de tanto esforço, os resultados práticos de todos estes trabalhos estão ainda no futuro e que, enquanto esperamos por um novo código, milhares de entradas reconhecidamente insatisfatórias são feitas anualmente em milhares de catálogos de biblioteca.

 

Saliento que é preciso recordar o passado para entender a complexidade presente. O passado é algo presente em nós, segundo os Beatles em Penny Lane: Penny lane is in my ears and in my eyes / There beneath the blue suburban skies / Penny lane is in my ears and in my eyes / There beneath the blue suburban skies / Penny lane.

 

Encerro o texto, com uma breve homenagem pessoal para uma querida amiga. Amiga que nos deixou em novembro deste ano. A querida Rosa Correia, uma das damas da catalogação brasileira. Pessoa a quem sempre recorri nas dúvidas e nas orientações sobre a área catalográfica. Fica um vazio em nosso ponto de acesso fraterno. Para a Rosa,

 

Rosa Correia,

  Rosa Bibliográfica,

    Rosa Descritiva.

      Normatizada Rosa.

         Descartou-se da vida.

              Digitalizou-se para a eternidade.

                 Agora, Rosa...

                     É um perfume de saudade.

 

Indicação de leitura:

BARBOSA, Alice Principe. Novos rumos da catalogação. Rio de Janeiro: BNG/Brasilart, 1978.

 

ESTIVILL RIUS, Assumpció. Momentos estelares de la catalogación em el cincuentenário de los Principios de Paris. BID: textos universitaris de biblioteconomia i documentació, n. 28, junio de 2012. Disponível em: http://www.ub.edu/biblio

 

GARRIDO ARILLA, María Rosa. Teoría e historia de la catalogación de documentos. Madrid : Editorial Síntesis, 1999.

 

JOLLEY, L. International Conference on cataloguing Principles II. Thoughts after Paris. Journal of Documentation, vol. 19 n. 2, p.47 – 62, 1963.

 

LUBETZKY, Seymour. Cataloging rules and principles. Washington: Processing Department, Library of Congress, 1953.

 

OSBORN, Andrew D. The crisis in cataloging. The Library Quarterly, vol. 11, n. 4, p. 393-411, 1941.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.