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USUÁRIOS OU CLIENTES DE BIBLIOTECAS? UMA REFLEXÃO DO PONTO DE VISTA DA LEXICOLOGIA

 

Em textos que apresentam questões relativas às bibliotecas e, em especial, aqueles elaborados pela área de Biblioteconomia, é recorrente o uso dos vocábulos usuário, cliente e usuário/cliente para caracterizar aquele ou aquela que freqüenta a referida instituição. Independentemente do nível de complexidade textual, são empregadas, às vezes até no mesmo período, as três formas.

 

Para alguns estudiosos da Ciência da Informação, a lexia “usuário” teria uma acepção mais passiva do que “cliente”. A preferência pela primeira indicaria uma valorização apenas do prestador de serviço e o usuário seria apenas alguém que utiliza um determinado serviço. Em contrapartida, “cliente” seria aquele que deseja e/ou busca especificamente um produto ou serviço. Outros pesquisadores da área consideram inadequado o uso de “cliente” já que, segundo eles, esse vocábulo estaria ligado à idéia de “freguês” e que como tal, seria aquele que tem o hábito de vender ou comprar em uma determinada loja. Entretanto, percebe-se que a grande maioria dos interessados na área sentem-se inseguros quanto ao emprego dos vocábulos.

 

Mesmo considerando que a norma “culta” de redação desvaloriza a repetição das lexias, surgem dúvidas durante a construção do texto. No âmbito da Biblioteconomia estaria correto o uso desses vocábulos para nomear o freqüentador de biblioteca? O que eles significam? Existem entre eles uma relação de equivalência ou sinonímia?

 

Estes questionamentos podem ser elucidados por meio dos aportes teóricos de algumas das subáreas da Lingüística. Neste estudo, optou-se por analisá-los sob a ótica da Lexicologia, ciência que tem como objeto de análise a palavra, a categorização lexical e a estrutura do léxico (1) e que, de acordo com Fávero (1993, p.166), conceitua-se como “instrumento de indagação do estilo e da intencionalidade”

 

Vale ressaltar que, embora a Semântica seja a responsável pelo estudo das significações lingüísticas, a Lexicologia “faz fronteira com a Semântica, já que, por ocupar-se do léxico e da palavra, tem que considerar sua dimensão significativa” (BIDERMAN,2001,p.14).

 

Objetivando apontar a relevância de estudos sistematizados acerca dos vocábulos de uma língua, Oliveira e Isquerdo (2001, p.9) argumentam que

 

Na medida em que o léxico configura-se como a primeira via de acesso a um texto, representa a janela através da qual uma comunidade pode ver o mundo, uma vez que esse nível de língua é o que mais deixa transparecer os valores, as crenças, os hábitos e costumes de uma comunidade, como também, as inovações tecnológicas, transformações sócio-econômicas e políticas ocorridas numa sociedade.

 

Para as autoras, o acervo lexical de uma comunidade lingüística desvela a sua maneira de ver a realidade e o modo como seus membros estruturam o mundo que os cercam e designam os diversos campos do conhecimento.

 

De acordo com a perspectiva bakhtiniana de valorização da dimensão expressiva e ideológica da linguagem, de seu caráter essencialmente dialógico, entende-se que o léxico não deve ser visto como uma lista organizada, cristalizada do mundo real, mas sob uma concepção mais ativa, na qual é o léxico que reconstrói o mundo. Bakhtin (1992, p.282), reconhecendo a estreita relação entre a língua e a sociedade salienta que “a língua penetra na vida através de enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua”. Em outra obra, o autor (1981 apud SOUZA, 1994, p.120),  afirma que “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”.

 

Nesse sentido, justifica-se a análise de “usuário” e “cliente”, pois o conhecimento dessas unidades lexicais é fundamental para que os autores dos textos da área em questão, como também seus leitores, desenvolvam e aperfeiçoem suas habilidades de compreensão e produção textuais.

 

É consensual entre gramáticos e lingüistas que não existem sinônimos perfeitos, palavras intercambiáveis em todos os contextos. “[...] Se tais pares de palavras fossem freqüentes, isto significaria uma multiplicação desnecessária do número de palavras armazenadas na memória, contrariando o princípio da economia da língua”. (CORREIA,1995). (grifo da autora)

 

Na realidade, o que existem são aproximações de sentido, já que variáveis como região, estilo, idade e sexo dos falantes e valor, entre outras, praticamente impossibilitam a total equivalência entre os vocábulos em questão. 

 

Segundo Borba (2003, p.237), não há “necessidade imperiosa de equivalência em todos os contextos; bastam certos contextos (idênticos ou não), mesmo porque, por uma questão de economia, a língua tenderia a eliminar os itens perfeitamente idênticos em todas as situações de uso.” Além disso, complementa, “dois termos são sinônimos não só porque têm o mesmo valor denotativo; também as conotações (coloração afetiva, expressiva, intensiva etc.) podem estar mais ou menos próximas ou serem semelhantes” (p.238).

 

No que diz respeito a utilização de sinônimos, Ullmann (apud MARTINS, 1989, p.107), aponta duas possibilidades: a da seleção, quando, entre o universo sinonímico, um só termo é escolhido  e o da combinação, quando vários vocábulos, que possuem o mesmo significado, podem ser utilizados em um mesmo texto, mantendo uma organização seqüencial ou não. A combinação de sinônimos, segundo o autor, “é um recurso utilizado em enunciados de todo o tipo, mas é principalmente os textos dissertativos, [opinativos] em que mais predomina a intenção de argumentar, persuadir, que ela é mais explorada [...]”.

 

Com o intuito de conhecer o significado atribuído aos vocábulos, fundamentando assim a reflexão proposta, procedeu-se a uma pesquisa – ainda que não exaustiva – em cinco dicionários e em um glossário da área da Biblioteconomia. As informações obtidas e aqui apresentadas sem uma ordenação sistematizada foram:

 

Verbete: USUÁRIO

 

 ETIMOLOGIA/

Categoria Gramatical (2)

 

                                      DEFINIÇÃO

 

          FONTE CONSULTADA

Do lat. Usuariu.

Adj./ S.m.

1.Que possui ou desfruta alguma coisa pelo direito de uso; utente 2.Que serve para o nosso uso 3. Dizia-se do escravo de quem se tinha o uso, mas não a propriedade 4. Aquele que possui ou frui alguma coisa pelo direito de uso; utente.  Cada um daqueles que usam ou desfrutam alguma coisa coletiva, ligada a um serviço público ou particular;
utente

 

FERREIRA,Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3.ed. rev.aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999.

Do lat. Usuarius.

Com referência a uma biblioteca, entendemos que os usuários são aqueles que habitualmente utilizam um ou mais de seus serviços [...] usuário seria a pessoa que utiliza intensamente e assiduamente não somente os serviços de leitura, como também dos outros que as bibliotecas proporcionam como a fotocópia, traduções, resumos analíticos, bibliografias especializadas, etc.

 

BUONACORE, Domingo. Diccionario de Bibliotecología. 2.ed.aum. Buenos Aires: Ediciones Marymar, 1976

Do lat. Usuarius.

Adj. / S.m.

Que tem a posse ou gozo de alguma coisa pelo direito de uso: O usuário ou o morador usuário não pode vender, alugar nem trespassar por qualquer modo o seu direito. (C. Civil Português, art.2258); O usuário fruirá a utilidade da coisa dada em uso, quando o exigirem as necessidades pessoais suas e de sua família. (C. Civil Brasileiro, art.742); usufrutuário.

 

Caldas Aulete. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 4.ed. Ed. Brasileira. Rio de Janeiro: Delta. V. 5.

 

Aquele que usa alguma coisa ou tem direito ao seu uso.

 

BIDERMAN, M.T.C. Dicionário Contemporâneo de Português. Petrópolis: Vozes,1992

Adj. / S.m.

Que possui ou frui alguma coisa pelo direito de uso; que serve para nosso uso; designativo do escravo de que se tinha o uso, mas não a propriedade; aquele que possui ou frui alguma coisa por direito proveniente de uso.

BUENO, Francisco da Silveira.  Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 11.ed. Rio de Janeiro: MEC/ FENAME, 1979.

Do lat. Usuaríum

Adj./S.m.

Que possui ou frui alguma cousa por direito proveniente do uso; que serve para ser usado; dizia-se do escravo do qual se tinha o uso, mas não a propriedade; aquele que, por direito de uso, tem a fruição de alguma coisa.

 

GRANDE Dicionário RIdeel Ilustrado. São Paulo: Ed. Rideel,1980.

 

 

O quadro acima demonstra que existe um consenso entre os instrumentos lexicográficos pesquisados já que o vocábulo “usuário” para eles tem o significado de pessoa que utiliza, desfruta ou frui alguma coisa pelo direito de uso; usufrutuário. A percepção, defendida por alguns, de que a palavra evoca características de passividade, de indiferença até, não encontra respaldo nessas fontes. O emprego do referido termo, acredita-se, não está em desacordo com a postura interativa e dinâmica – tão almejada pela Biblioteca – de seus  freqüentadores.

 

 

Verbete: CLIENTE

 

ETIMOLOGIA/

CATEGORIA GRAMATICAL (3)

DEFINIÇÃO

FONTE CONSULTADA

Do lat cliente, pelo fr. client.

 S.2g.

1. Constituinte, em relação ao seu advogado ou procurador. 2. Doente, em relação ao médico habitual. 3. Aquele que usa os serviços ou consome os produtos de determinada empresa ou de profissional; freguês. 4. inform. Computador ou programa que usa serviços de outro em uma rede.

FERREIRA,Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3.ed. rev.aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999.

 

Pessoa que está sob a proteção e tutela de outra e também aquela que utiliza habitualmente os serviços de um profissional ou que costuma comprar em uma mesma loja.

BUONACORE, Domingo. Diccionario de Bibliotecología. 2.ed.aum. Buenos Aires: Ediciones Marymar, 1976

Do f. lat. Cliens

S. 2g.

O patrocinado; o que estava sob a proteção dos cidadãos poderosos ou patronos. Pessoa que confia a defesa dos seus interesses a um advogado, procurador ou tabelião; constituinte. O que consulta habitualmente um médico

Caldas Aulete. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 4.ed. Ed. Brasileira. Rio de Janeiro: Delta. V. 5.

 

Pessoa que procura outra com freqüência para serviços profissionais ou para comprar.

BIDERMAN, M.T.C. Dicionário Contemporâneo de Português. Petrópolis: Vozes,1992.

S.2g.

Pessoa protegida; constituinte em relação ao seu advogado ou procurador; doente em relação ao seu médico habitual; freguês.

BUENO, Francisco da Silveira.  Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. 11.ed. Rio de Janeiro: MEC/ FENAME, 1979.

Do lat. clientem

S.

Constituinte (com relação ao seu procurador ou advogado); doente (com relação ao seu médico habitual); freguês; pessoa protegida. Ant. Indivíduo que, em Roma, estava sob a proteção de um cidadão influente e poderoso.

GRANDE Dicionário RIdeel Ilustrado. São Paulo: Ed. Rideel,1980.

 

 

A análise das fontes consultadas, indica que, pelo menos entre esses instrumentos lexicográficos, existem algumas concepções diferenciadas acerca do significado do verbete cliente.

 

De acordo com a pesquisa,cliente” é aquele que utiliza habitualmente os serviços ou consome os produtos de determinada empresa ou profissional; é o constituinte com relação ao seu advogado, tabelião ou doente, em relação ao médico habitual. Freguês, patrocinado, protegido e ainda, pessoa que procura a outra com freqüência para serviços profissionais ou para comprar.

 

Evidencia-se por meio das definições encontradas, a conotação de dependência que permeia a lexia analisada. Tal concepção existe há muito tempo, pois é sabido que habitualmente as antigas famílias romanas tinham “cliens”, ou seja, possuíam protegidos ou agregados. Um outro significado, claramente apresentado por Biderman (1992) e de um modo menos explícito por Ferreira (1999) estabelece relações comerciais (de compra) entre o cliente e a instituição que procura.

 

Nesse sentido, acredita-se que pensar e definir o freqüentador de unidades de Informação como aquele que as procura para comprar algo, não faz jus ao seu real papel naquelas instituições de disseminação da informação.

 

Comentários conclusivos

 

Buscando responder as questões iniciais e norteadoras do texto aqui apresentado, é possível afirmar que não existe um termo correto ou incorreto para nomear aquele indivíduo que freqüenta bibliotecas, e sim uma maior adequação de um termo do que de outro em relação as suas condições de produção.

 

Importa salientar que a produção de textos dissertativo-argumentativos, assim como outros gêneros discursivos, são orientados por intenções de comunicação. Visando alcançar seus objetivos, sofrem intervenções de seus autores, como por exemplo, a seleção do léxico que irá compor o texto. A seleção lexical é um recurso argumentativo de grande valia ao estabelecimento da compreensão textual e da interação, uma vez que é por meio de escolhas – conscientes ou não    que o autor desvela suas intenções. Assim sendo, a preferência por uma palavra “pode servir de índice de distinção, de familiaridade, de simplicidade, ou pode estar a serviço da argumentação [...]” (KOCH,2002, p. 154).

 

O universo léxico de uma comunidade, reitere-se, é gerado e empregado em total sintonia com a visão de mundo e de sua prática social. O estudo criterioso e, como conseqüência, a preferência pela utilização de uma lexia em detrimento de outra, contribui efetivamente para a ampliação das possibilidades comunicativas de seus falantes. Para Fávero (1993, p.166), “o manuseio dos recursos lexicais tem, nesse processo, um papel fundamental, uma vez que é através deles que o leitor [e o produtor do texto] desenvolve suas habilidades de compreensão e realiza conscientemente sua produção, constituindo-se, assim, como Sujeito do seu Dizer”

 

NOTAS

 

1 - N.E. Léxico: conjunto de palavras que existem na consciência dos falantes de uma língua e que representa o patrimônio sociocultural de uma comunidade.

 

2 - N.E. Os diferentes modos de grafar a mesma lexia deve-se ao fato dos dicionários utilizarem a forma nominativa ou acusativa.

 

3 - Idem a nota explicativa 2

 

REFERÊNCIAS

 

BAKHTIN,M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

 

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. As ciências do Léxico. In: OLIVEIRA, A.M.P.P ; ISQUERDO, A.N. As Ciências do Léxico: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia.2.ed. Campo Grande: Ed. UFMS,2001, p. 13-22.

 

 BORBA, Francisco da Silva. Introdução aos estudos lingüísticos. 13.ed. Campinas: Pontes, 2003.

 

CORREIA, Margarita. O léxico na economia da língua. Ciência da Informação,v.24, n.2,1995. Disponível em http://www.ibict.br/cionline/240395/24039503.pdf..Acesso em :12 dez.2003.

 

FÁVERO, Terezinha Oliveira. Lexicologia em sala de aula. Cadernos do Instituto de Letras, UFRGS. n.10, p.153-167, jul. 1993.

 

KOCH, I.G.V.  Argumentação e linguagem. 7.ed.rev. São Paulo: Cortez,2002.

 

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à Estilística: a expressividade na língua portuguesa. São Paulo: T. A. Queiroz: EDUSP, 1989.

 

OLIVEIRA, A.M.P.P ; ISQUERDO, A.N. As Ciências do Léxico: Lexicologia, Lexicografia, Terminologia.2.ed. Campo Grande: Ed. UFMS,2001.

 

SOUZA,S.J.e. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamim. 5.ed. Campinas: Papirus,1994 (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).

 

Rosane S. A. Lunardelli - Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Doutoranda em Linguística na UEL.

 

Publicado originalmente em SIGNUM, n.7/2, p.91-99, dez. 2004.

Autor: Rosane S. A. Lunardelli

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.