CATALOGAÇÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Poderia iniciar com Nildo Ouriques (Instituto de Estudos Latino-Americanos, UFSC), que trata arrebatadoramente da colonização intelectual nas universidades brasileiras, desde a valorização do conhecimento estrangeiro em desfavor do nosso, às políticas oficiais de pesquisa e publicação. No entanto, prefiro a ironia de Eduardo Bueno, em seu episódio O Brasil Holandês: “Não pode ter nada mais colonizado do que o colonizado querer escolher o colonizador”. Existe também a questão da antropofagia. Os índios brasileiros, com mais de 200 diferentes povos na atualidade, não são todos idênticos, nem falam a mesma língua, nem possuem os mesmos hábitos. Havia, à época da chegada/invasão portuguesa, dois tipos de antropofagia: uma que simplesmente comia o inimigo; outra que a praticava ritualmente, para absorver as qualidades do inimigo. Meu amigo Sidney Barbosa explicou-me verbalmente a antropofagia cultural (levantada por Oswald de Andrade): absorvemos o que há de bom, as qualidades da cultura exógena e a transformamos em algo brasileiro, que atenda a nossas características, em uma cultura própria. Aqui e ali, surgem exemplos de uma boa antropofagia cultural, inclusive na Música, ou nas Artes, de modo geral.
Mas, para tanto, precisamos perder o complexo do colonizado. Porque estamos sempre olhando para fora, escolhendo entre os americanos, os franceses, os ingleses, entre outros que consideramos “superiores”. Uma espécie de vassalagem expandiu-se em nosso país, até sua venda, como ocorre em nossos dias. De certo modo, talvez tenhamos herdado e cultivado este complexo ao longo de 500 anos: até nossa alma foi colonizada. Ainda assim, sempre há tempo de refletir sobre este seriíssimo problema e realizar mudanças. Não sou marxista, e muito menos comunista, porém há uma frase de Marx que particularmente aprecio: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo”.
Ao complexo de colonizado, ou de vira-lata, alia-se um contexto histórico-sócio-cultural-econômico. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, os norte-americanos iniciaram uma série de programas para tornar a América Latina, em especial o Brasil, um país dependente e estreitamente vinculado a seus interesses estratégicos políticos e econômicos. Existem amplos estudos sobre o tema, com documentação comprobatória. Pode-se afirmar que os Estados Unidos atingiram seu objetivo em várias frentes, por meio de bolsas, intercâmbios, estágios, propaganda, programas e uma indústria cultural especializada e refinada (apenas no sentido técnico, não no conteúdo). Não entro em minúcias, mas basta que se observe o domínio exercido em todos os telejornais, na chamada grande mídia, assim como nas redes sociais.
Volto à Catalogação. Até os anos 1960, utilizava-se no Brasil o Código da Biblioteca Vaticana, traduzido pelo antigo IBBD (atual IBICT). Em 1969 impõe-se a ditadura do primeiro Código Anglo-Americano de Catalogação (publicado em 1967 nas edições inglesa e americana). Além de atender às questões catalográficas do Reino Unido e dos Estados Unidos, isto é, da língua e da cultura inglesas, havia as interpretações da Library of Congress dos EUA, muitas vezes discordantes das regras apresentadas no AACR1. Em 1978 publica-se a segunda edição do Código Anglo-Americano de Catalogação, mas a Library of Congress iria implementá-lo somente em 1981 – o que gerou miscelânea de interpretações. A FEBAB, detentora exclusiva dos direitos autorais para o Brasil, traduziu o AACR2 apenas de 1983 até 1985. A FEBAB continuou por anos em disputas para pagamento dos tais direitos autorais. Até que, enfim!, publicou-se o último código, RDA, em uma tentativa (falha) de agradar ao mundo e com uma estratégia coercitiva de “marketing” (perdoem-me o anglicismo). O código RDA encontra-se repleto de imperfeições, de falta de respeito às diferentes culturas, e se vende por um preço abusivo! Já escrevi largamente, sozinha ou com outros autores, contra o código RDA e subscrevo todo o escrito sobre Catalogação, desde a publicação de minha dissertação de Mestrado em 1987. Se houver paciência, discorro amplamente sobre o tema no capítulo 3 de minha tese de Doutorado e em inúmeras publicações subsequentes, muitas em co-autoria. Considero um absurdo e um colonialismo cultural, dependente, ainda se falar em RDA! Este código não serve, não se aplica ao Brasil, e não se pode exigir que bibliotecas à míngua, ou a FEBAB, paguem direitos autorais diretamente aos EUA!
Agora, perdoem-me, porém existem códigos muito mais interessantes à nossa subserviência e complexo de colonizado: os italianos são especialistas em obras raras e Música; os franceses são especialistas em Documentação; os portugueses possuíam suas próprias regras; os alemães têm pontos de vista interessantíssimos quanto às entradas e entidades coletivas; os espanhóis trabalham (ou trabalhavam) muito sobre as ISBDs e descrições bibliográficas. Por que não praticarmos antropofagia cultural e “ingerirmos” um braço do código italiano, uma perna do código alemão, um fígado das normas francesas e assim por diante, até chegarmos a um corpo completo, em um código "autenticamente brasileiro"? Sobretudo na área de Música, a música brasileira é especial, única sob muitas vertentes, e precisa de descrições bibliográficas à altura, seja na música escrita ou signalética (por favor, nada de música “notada”, tradução literal do inglês), seja na discografia. Dos americanos do norte, sugiro deglutirmos os músculos, isto é, a capacidade de produzir: sentar na cadeira e escrever, trabalhar incessantemente, com objetivos e prazos determinados.
Já existe, no Brasil, um corpo de professores de catalogação e catalogadores capazes de realizar algo inteiramente adequado, não apenas às nossas necessidades, mas também às novas tecnologias e às novas mídias. E há um ponto de partida, por incrível que pareça: o livro Catalogação Simplificada, da Profª Cordélia Robalinho Cavalcanti, que se preocupava em estabelecer normas voltadas aos rincões de nosso país.
Este é o último texto que escrevo sobre Catalogação. Espero que sirva, pelo menos, à reflexão.
Rio de Janeiro, 17 de junho de 2021