BIBLIOTECONOMIA ENVERGONHADA*
Revisão de:
A primeira, certamente, foi a de tradutor, ou intérprete, quando os agrupamentos humanos se comunicavam entre si, ou quando o tradutor, dentro de um agrupamento, interpretava a vontade dos deuses. Aquela outra profissão, dita mais antiga, corresponde ao surgimento de bens materiais e valores individuais, não coletivos. Apenas a existência da posse e da herança faz com que a mulher se torne propriedade de um indivíduo, e não parte de um clã (1).
Quanto à antigüidade da Biblioteconomia, pode-se afirmar que seus fundamentos permanecem semelhantes ao longo dos milênios, embora suas técnicas, seus equipamentos, a produção e o uso de seus instrumentos, seus focos, seus usuários e seus estudos se hajam modificado com relativa freqüência.
E como se pode definir Biblioteconomia? Alguma literatura sobre o assunto (2), embora não amplamente revista e citada, permite resumir certas definições. Encontram-se os seguintes pontos essenciais, que a constituem, de modo geral: a) aquisição dos registros do conhecimento (desde a coleta de materiais tangíveis à criação de acervos digitais); b) organização dos registros do conhecimento (inclui análise, representação, criação de instrumentos de análise e representação, estudos teóricos e práticos, os mais variados); c) disseminação dos registros do conhecimento (abarca tanto os instrumentos de disseminação como os estudos sobre os usuários dos registros e outros aspectos teóricos e práticos).
Existem problemas iniciais com o termo Biblioteconomia, que se podem explicar, mesmo que não justificar:
a) a raiz biblio, derivada de biblion, não significa absolutamente livro; origina-se do grego, quando nem remotamente existia algo assemelhado a um livro; porém, referia-se à cidade de Biblos, produtora do papiro, material utilizado para escrita à época, em rolos (tipo barra de rolagem, como diz Manguel (3));
b) a palavra grega théke significa “caixa”e, por extensão, qualquer contêiner onde o material bibliográfico se encontre: estante, sala, edifício (cf. Edson Nery da Fonseca (4));
c) os sufixos -nomo, -nomia e -nômico derivam-se do grego -nomos, - nomia, -nomikos, e se aplicam a normas, regras, administração (por exemplo: agronomia, economia).
Portanto, a grosso modo, pode-se dizer que, segundo sua origem etimológica,
Talvez por sua origem etimológica, talvez pelas veneráveis instituições físicas, marcos arquitetônicos de prestígio, poder e cultura das nações,
Por fim, do mesmo modo, devido talvez a suas origens etimológicas,
Estaríamos, então, diante de uma área com nome falso? Erro de identidade? Amnésia profissional?
A partir do avanço significativo da eletrônica, durante e após a Segunda Guerra Mundial (uso bélico), até chegar ao uso institucional civil (décadas de 1970 e 1980) e ao uso individual (décadas de 1980, 1990 e neste início de século), formou-se um novo conceito, o de “ciência da informação”, com inúmeros significados. Cabe aqui dizer que, como a “informação” é uma espécie de cortesã requisitadíssima, com uma corte numerosa e nenhum senhor, torna-se quase impossível determinar-lhe as características. Ela sempre muda, de acordo com o requisitante de seus favores no momento.
Lógico, hoje o mundo vive de informações. Mas será que estamos em uma sociedade da informação? Não creio!
Bem, talvez o mundo viva de conhecimento. Será que estamos em uma sociedade do conhecimento? Creio menos ainda!
Na verdade, a informação pura e simples, ou seja, o conjunto de signos que possui algum sentido, é manipulada, vendida, difundida, de acordo com interesses específicos, desde sua produção até seu consumo.
Há algumas semanas, por exemplo, avassalam-nos diariamente “informações sobre a gripe H1N1”, por meio de boletins, notícias, entrevistas, publicidade, entre outros. Nenhum deles, porém, repassou-nos informações corretas e significativas. Se a mídia é contra o governo, apenas apresenta as mortes, para subentender que o governo não faz nada. Se os entrevistados são a favor do governo, tentam minimizar o quadro. Por um lado, fecham as escolas; por outro, continua o campeonato brasileiro de futebol, com milhares de pessoas concentradas
Da mesma forma, a “sociedade do conhecimento” faz-se para poucos. Historicamente, a “sociedade agrária” fazia-se para os donos da terra, e não para os servos-camponeses que nela trabalhavam; a “sociedade industrial” fazia-se para os donos das indústrias, e não para os operários que nelas trabalhavam; a “sociedade do conhecimento”, ou a terceira onda de Toffler (6), faz-se para os poucos que detêm a posse ou os direitos (patentes) sobre o conhecimento e a informação, não para aqueles que com elas trabalham (um químico em uma indústria não usufruirá de seu conhecimento do mesmo modo que o conjunto de acionistas majoritários). Bill Gates talvez seja um dos únicos no mundo a desfrutar de seu próprio saber, em meio a bilhões. Sociedade do conhecimento? Mais uma falácia!
Como todas as falácias globalizadas,
O tesauro da Unesco, de 1975 (7), também confuso, na era pré-internet estabeleceu sutis diferenças entre “ciência da informação” e “ciências da informação”.
Parece bastante claro que a informação, usada por biólogos, estatísticos ou jornalistas, por exemplo, serve de base para a elaboração de um conhecimento e seu conseqüente registro – só se pode tornar acessível, atingir o fim último de disseminação, a partir de seu registro, mesmo em ambientes naturais. (Um jardim botânico se diferencia substancialmente de um bosque, mesmo que ambos se mostrem indispensáveis à humanidade) Neste caso, portanto, a informação seria o fundamento para a produção de conhecimento e de registros do conhecimento. Nós, profissionais bibliotecários, também o geramos, dentro de nossa área; por exemplo: uma análise sobre comportamento dos usuários frente a catálogos automatizados, ou bibliotecas digitais. Informação, neste caso, caracterizar-se-ia como alicerce, ou como informação basilar.
Muito diferente apresenta-se a “informação” com a qual trabalhamos, que organizamos e disseminamos, a matéria-prima da Biblioteconomia, da Documentação e de todas as ciências afins. A propósito, Muela Meza (9) nos denomina “profissionais da informação documental”. Não há como confundir a informação basilar com a informação matéria-prima, ou informação documental, ou registro do conhecimento. Na verdade, produzimos meta-informação; isto é, informações sobre informações documentais ou registros do conhecimento.
Existem, ainda, outros tipos de “informação”, como os bits e bytes e outros fenômenos físicos da ciência da computação e das telecomunicações, que nos interessam apenas na medida em que afetam ou facilitam nosso trabalho.
Ao partir da leitura de alguns textos internacionais sobre formação em Biblioteconomia (10), verificam-se dois pontos-chave:
Um parêntese: há algumas décadas, existiam dois termos para Biblioteconomia
Após o Protocolo de Bolonha (11), já implementado em alguns países europeus (embora com inúmeras críticas e restrições), as universidades apresentam o modelo idêntico ao brasileiro: graduação, mestrado e doutorado. Os bibliotecários formam-se na graduação, com possibilidade de adquirir o certificado por outras vias, como mestrado ou especialização em Biblioteconomia (não
O que acontece, no Brasil, que torna
E como se demonstra este desprezo profissional no Brasil, esta gritante baixa-estima? Não apenas por trabalhos sérios e científicos (ver a tese de
Nós, bibliotecários, há milênios indexamos, criamos classificações do conhecimento, criamos linguagens documentárias e representação documental; estudamos
Fique bem claro que não tenho absolutamente nada contra a computação! Adoro os equipamentos que facilitam nossa vida, cada dia mais práticos. Quem, vinte anos atrás, enfrentou filas e mais filas de bancos, ou pagamentos em carnê nas lojas, ou até cadernos de armazém, sabe o quanto
Nada disso, porém, nos impede de reconhecer que, mesmo mudada,
Por isto, indago: por que a Conferência Geral da IFLA, o mais importante evento biblioteconômico do mundo, com textos absolutamente essenciais para conhecimento e atualização dos bibliotecários, não vale pontos, ou quase nada, no conceito CAPES? Por que o CBBD [Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação] é desprezado pelos docentes de
Outro fato esdrúxulo ocorre ultimamente: orientandos de diversos cursos, de graduação ou pós-graduação, em vez de clarearem suas mentes em tais escolas e programas, parece que se obscurecem, tornam-se obtusos e não conseguem escrever nem mais uma linha por si mesmos! Dependem de seu orientador e do nome deste para qualquer texto publicado! Um fenômeno deveras curioso, que requer observação e estudo cuidadosos.
Há um caso difícil: o equilíbrio justo entre docentes bibliotecários e não-bibliotecários. A interdisciplinaridade, quando corretamente aplicada, seguindo preceitos éticos, pode tornar-se profícua e obter bons resultados. Se diferentes especialistas realizam pesquisas conjuntas voltadas à Biblioteconomia, se conhecem não apenas sua área, mas também
Todos nós, docentes, inclusive os burocratas/contabilistas (não cito o cunhador do termo por discrição) da Ciência da Informação, precisamos colocar a mão na consciência e verificar: o quanto somos culpados pela formação dos nossos alunos? O quanto aceitamos visões de mundo equivocadas? O quanto nos aproveitamos do trabalho alheio? O quanto estamos mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade do que publicamos ou orientamos? Por que nós, bibliotecários, não nos impomos como parte de um universo científico, real, aceito por todos os órgãos de fomento, em vez de nos escondermos atrás de disciplinas ambíguas? Por que aceitar apenas o conhecimento desenvolvido em cursos de sentido estrito (e que nem sempre contribuem de modo efetivo para a profissão e para o conhecimento em si) e menosprezar o “saber de experiências feito” (como citaram mais de uma vez o Prof. Edson Nery e a Profa. Cordélia Cavalcanti). Por que tive o privilégio de presenciar aulas ou palestras de professores altamente competentes, cultos, que revolucionaram ou mesmo criaram
Aqui entre nós: estamos indiscutivelmente habilitados a criar hábitos de leitura, a trabalhar com crianças e jovens, a realizar o papel maior da Biblioteconomia de permitir o acesso público, livre e gratuito aos registros do conhecimento?
Há muito o que pensar, muito o que pesquisar e muito o que escrever. Nesta hora em que parece decidir-se a Educação no Supremo Tribunal Federal (veja-se o caso dos jornalistas), vamos refletir sobre o assunto, unirmo-nos em torno de um objetivo comum e salvar
Referências
1 - Engels, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. Trad. de Leandro Konder. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
2 - Alix, Yves; Revelin, Gaël. Les bibliothécaires, combien de divisions? Bulletin des Bibliothèques de France, v. 54, n. 4, 2009. Disponível em: <http://bbf.enssib.fr/consulter/bbf-2009-04-0017-002>. Acesso em: 07 agosto 2009.
Fonseca, Edson Nery da. Introdução à Biblioteconomia. 2. ed. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 2007.
Shera, Jesse H. The foundations of education for librarianship. New York: Becker and Hayes, c1972.
Há inúmeras outras fontes não referenciadas.
3 -Manguel, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
4 -Fonseca, Edson Nery da. Op. cit.
5 -Afirmado por:
Bauwens, Michel. Le temps des cybérothécaires? Documentaliste-Sciences de l’Information, v. 31, n. 4-5, p. 233-237, 1994. Apud
Cavalcanti, Cordélia R. Da Alexandria do Egito à Alexandria do espaço. Brasília: Thesaurus, 1996. p. 89.
Mais recentemente, no texto de:
Maack, Mary Niles. Place and space as presented in English language library and information science encyclopedias. In: IFLA GENERAL CONFERENCE AND COUNCIL, 74., 2008, Quebec, Canadá. [Proceedings]. Disponível em: <http://archive.ifla.org/IV/ifla74/papers/091-Maack-en.pdf>. Acesso em: julho 2009.
6 - Toffler, Alvin. A terceira onda. Rio de Janeiro: Record, 1982.
7 - Wersig, Gernot; Neveling, Ulrich. Terminology of documentation: a selection of 1,200 basic terms published in English, French, German, Russian and Spanish. Paris: Unesco, 1976.
8 - Buckland, Michael. Information as thing. Journal of the American Society of Information Science, v. 42, n. 5, p. 351-360, June 1991.
9 - Muela Meza, Zapopan Martín. Introducción al pensamiento crítico y escéptico en las ciencias de la información documental. Crítica Bibliotecológica, Monterrey, Mexico, vol. 1, no. 1, jun-dic 2008. Disponível em: <http://critica.bibliotecologica.googlepages.com/>. Acesso em: julho 2009.
10 - Por exemplo:
Alix, Yves; Revelin, Gaël. Op. cit.
Audunson, Ragnar. Library and information science education: is there a Nordic perspective. In: IFLA GENERAL CONFERENCE AND COUNCIL, 71., 2005, Oslo, Norway. [Proceedings]. Disponível em: <http://archive.ifla.org/IV/ifla71/papers/061e-Audunson.pdf>. Acesso em: julho 2009.
Broady-Preston, Judith. Changing information behaviour: education, research and relationships. IFLA GENERAL CONFERENCE AND COUNCIL, 73., 2007, Durban, South Africa. [Proceedings]. Disponível em: <http://archive.ifla.org/IV/ifla73/papers/158-Broady-Preston-en.pdf>. Acesso em: julho 2009.
11 – THE BOLOGNA declaration on the European space for higher education. Disponível em: <http://ec.europa.eu/education/policies/educ/bologna/bologna.pdf>. Acesso em: julho 2009.
12 - Walter,
13 - Fonseca, Edson Nery da (Org.). Bibliometria: teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 1986.
Nota:
* Este texto delirante não apresenta referências formais nem citações ao longo da escrita (como preconizado nos meios acadêmicos), mas somente ao final. A vantagem de perdermos as amarras da Academia reside no direito de se escrever o que se quer e na forma desejada, sem perder de vista o “dai