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FAVELAS & INFORMAÇÃO: COMO VIVER DESIGUAL?

O respeito aos direitos humanos é uma condição indispensável para a paz, a segurança, a estabilidade e a democracia no mundo, e é o objetivo maior do desenvolvimento econômico, político, social e cultural das sociedades.(1)

(Koïchiro Matsuura, diretor-geral da Unesco)

 

A globalização é umnovo ciclo de expansão do capitalismo”. Diante dessa realidade em curso em que tudo se move (coisas, gentes e ideais) em função do capital transnacional, ultrapassando as “fronteiras geográficas, históricas e culturais”, será preciso conhecer melhor a trama desta história. Mas, à luz de outra: a das comunidades que se amontoam nos subúrbios, periferias e encostas de morro: o povo das favelas.

 

A miséria estampada pelos diversos cantos das cidades globais exibe com humor negro e ácido as mazelas de um Brasil colonial, arcaico e subdesenvolvido. Retrato de um mundo amargo, violento e inseguro, o caos da gigantescafavela brasileira”, tão bem conhecida em nível global, e tão desprezada, em nível local, serve de referência para entender o abandono em que estão mergulhados os moradores pobres das favelas, reféns de um Estado impotente, vicário e preconceituoso.

 

Não pode haver respeito à vida, quando a vida não é vivida com dignidade; não pode haver respeito à vida quando a integridade física e psíquica de milhões de pessoas se encontra permanentemente ameaçada. Para a afirmação plena dos direitos sociais e humanos, e para que toda pessoa possa desenvolver satisfatoriamente suas capacidades, é preciso garantir os direitos à saúde, alimentação, trabalho e moradia dignos.

 

Ora, como vivem as pessoas que são inadvertidamente excluídas do exercício de cidadania? E em que condições vivem? Questões que regulam a vida cotidiana deveriam imperativamente garantir um lugar decente para todos viverem, com segurança e bem-estar. Infelizmente, a ocupação dos espaços urbanos é desigual, injusta e perversa. Nas chamadas cidades globais, cujo modelo de urbanização consolidou-se historicamente como “o lugar da emancipação humana”, vivemos o paradoxo das desigualdades. Os moradores de favela constituem um terço da população urbana global e, numa perspectiva em curto prazo, estima-se que chegará a 50% nos próximos 15 anos. Situação preocupante para o Terceiro Mundo que absorverá 95% desse crescimento populacional mundial.(2) Como encarar a urbanização das cidades globais, sem trabalho, crescimento e sem um lugar digno para cada um? A dúvida maiúscula é: “Como viver desigual?”

 

As favelas do Brasil carecem de políticas culturais, educacionais e de segurança públicas para o exercício pleno da qualidade de vida total (ecologia cultural), com sustentabilidade e respeito à diversidade cultural. Infelizmente, o poder público em São Paulo (Gilberto Kassab) e no Rio de Janeiro (Sérgio Cabral) não atende minimamente aos direitos humanos, sociais e culturais prescritos pela ONU, nem respeita as garantias prescritas pela Constituição de 1988: favelados não são tratados como iguais perante a lei. A exemplo da limpeza social operada às escuras (sem a devida cobertura da mídia) para beneficiar o capital imobiliário, invariavelmente também se observa que os direitos à vida, à liberdade, igualdade e segurança comumente são violados. De acordo com Canclini, tais posturas viciadas do poder público são reflexos das transformações que ocorrem nas cidades globais e “têm como principais focos geradores processos intrínsecos derivados do desenvolvimento desigual e das contradições destas sociedades: migrações maciças, contração do mercado de trabalho, políticas urbanas de habitação e de serviços insuficientes para a expansão da população e do espaço urbano, conflitos interétnicos, deterioração da qualidade de vida e aumento alarmante da insegurança. [...] São cenários caóticos de mercados informais nos quais multidões procuram sobreviver sob formas arcaicas de exploração, ou nas redes da solidariedade ou da violência”.(3)

 

A questão crucial permanece: como viver bem, desfrutar de segurança, lazer, educação, sendo permanentemente submetido à “sociabilidade violenta” de um cotidiano marcado pela ausência de participação democrática nas decisões da vida pública? Segundo Boaventura Sousa Santos, a democracia prescinde, necessariamente, de três condições básicas:

 

a) garantia de sobrevivência: quem não tem com que se alimentar e alimentar a sua família tem prioridades mais altas que simplesmente votar;

b) não estar ameaçado: quem vive ameaçado pela violência no espaço público, na empresa ou em casa, não é livre, qualquer que seja o regime político em que vive;

c) estar informado: quem não dispõe da informação necessária a uma participação esclarecida, equivoca-se quer quando participa, quer quando não participa.(4)

 

O mais nefasto desastre causado à existência de nosso povo, não foi apenas o promovido pela escravidão, o látego e a sífilis, com respectivo extermínio físico da língua nativa e de seus falantes, mas algo mais sutil. Não apenas o genocídio sumário da carne e dos afetos desordenados, mas do pensamento, da emoção e da vontade, apagando de sua vida os desejos, o passado e os antepassados, até ser subtraído da própria História. Como animais bestificados, manipulados e submissos, ou ficou de fora ou serviu de montaria para as retóricas e ideologias, permanecendo na escuridão da ignorância, sem história, sem passado. Ignorado e ignorantesem acesso à educação, nem ao saber —, sua leitura de mundo se viu aprisionada a preceitos morais, vetada e limitada pela visão de mundo autoritária do colonizador.

 

As conseqüências nefastas do projeto colonial perduram até os dias de hoje. Como estranhos no ninho, lançados fora do mundo da história desde o mito da fundação, ao longo dos anos fomos sendo privados da capacidade de estabelecer diferenças e exercer o livre-arbítrio: não sabemos escolher, e quando escolhemos, o fazemos por obrigação, por intimidação ou movidos pelo medo de ser enquadrado em algum código penal.

 

Hoje, falta-nos história porque, exorcizados na própria terra, freqüentemente somos privados de casa, comida, educação, bibliotecas, livros e outros capitais culturais. Sem história e sem memória, perdemos o sentido original das coisas e somos cada vez mais facilmente manipulados comotíteres” nas mãos do Estado, do tráfico e da polícia.

 

Não se passa impunemente por quinhentos anos de analfabetismo! Quem estará disposto a desafiar este nefasto sistema de injustiça e desigualdades? Os partidos de esquerda demonstraram que preferem aderir à lógica do capital a fim de preservar os interesses de umbigo e usufruir as benesses de ocasião. Cartões corporativos não bastam à ganância inescrupulosa de gestores e políticos vicários. Se a ética não existe, então tudo é permitido: a cada um que seja dado a sua parte em dinheiro!

 

solução para o conflito, mas as pessoas diretamente envolvidas têm que aceitar o acordo de paz e isso ocorrerá por meio do diálogo que respeite os direitos humanos dos moradores de favela. Não adiantará nada o poder público sentar-se à mesa para assinar acordos de ocasião, se os atores sociais que manipulam o poder na cidade (polícia, tráfico e mídia) continuarem desrespeitando acintosamente a cidadania e os direitos de mulheres, crianças, jovens e trabalhadores, barbarizando — física, social e psicologicamente — as comunidades mais pobres, bastante estigmatizadas.

 

A questão crucial permanece: como viver bem, desfrutar de segurança, lazer, cultura e educação, sendo permanentemente submetido à “sociabilidade violenta” de um cotidiano marcado pelo conflito, medo, desconfiança, asfixia e silêncio?

 

 

Notas

 

(1) WERTHEIN, Jorge. Direitos humanos e desenvolvimento. In: O Globo, 04.06.2002.

(2) DAVIS, Mike. “Planet of Slums”. Relatório do Programa de Assentamentos das Nações Unidas, ONU, 2003.

(3) Canclini, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001, p. 17-18.

(4) SOUSA SANTOS, Boaventura. O futuro da democracia. In: Folha de S. Paulo, 12.09.2006.

 

 

Edison Luís dos Santos – Bacharel em Lingüística pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (USP); discente do último ano do curso de Biblioteconomia e Documentação da Escola de Comunicações e Artes – USP – e-mail: edisonlz@usp.br

Autor: Edison Luís dos Santos

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.