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ALGUMAS QUESTÕES SOBRE O ENSINO DA REPRESENTAÇÃO DESCRITIVA, OU A CATALOGAÇÃO NA BERLINDA

Há muitos anos lecionando Representação Descritiva (cerca de duas décadas, entre cursos rápidos e ensino formal universitário), deparo-me agora, novamente, com proposições do tipo: "a catalogação morreu"; "regras não fazem sentido"; "nada disso é importante face às novas tecnologias"; "metadados são a solução", entre outras variações. Ao mesmo tempo, diversos cursos de Biblioteconomia abriram concursos, nos últimos dois anos, para a área de representação, nem sempre conseguindo docentes com mestrado, quem dirá doutorado. Parece que a área não desperta grandes interesses (nem a docência, mas isto é outra conversa).

Desde 1997, a catalogação sofre uma reviravolta ao nível internacional. A reviravolta gestava-se já em 1987, com a tese de Barbara Tillett sobre relações bibliográficas, complementada com os textos de Michael Heaney e Rebecca Green, respectivamente sobre catalogação orientada a objeto e bancos de dados relacionais. Um grande encontro sobre AACR (1997) e o relatório final do Grupo de Estudos da IFLA (iniciado em 1991): Functional requirements for bibliographic records (FRBR), publicado em 1998, mudaram os rumos da catalogação. Os FRBR utilizaram o modelo de análise entidade-relacionamento para estabelecer um elenco de entidades, atributos e relações voltado aos bancos de dados bibliográficos relacionais. A análise necessária levou à conceituação das entidades e seus atributos e à definição das relações existentes em catálogos, ou bancos de dados bibliográficos. Os FRBR geraram inúmeros desdobramentos (e uma alentada bibliografia de mais de quinhentos itens): análise lógica das AACR; AACR e FRBR; ISBDs e FRBR; MARC e FRBR; Dublin Core e FRBR, além de análises teóricas sobre as próprias entidades, culminando no Código Internacional de Catalogação e no estabelecimento de princípios para a catalogação e de funções do catálogo, à luz das novas potencialidades. O Código Internacional, no momento em processo de elaboração (previsto para 2007), também deu origem a inúmeros outros estudos, inclusive sobre diferentes códigos de catalogação utilizados no mundo. Certamente, um complô internacional pela representação bibliográfica! Enfim, a decrépita catalogação andou fazendo plástica, rejuvenesceu, criou alma nova, e nunca se teorizou tanto, se escreveu tanto e se discutiu tanto sobre esta velha senhora.

Enquanto isso, do lado de cá... nunca a velha senhora foi tão vilipendiada, ultrajada, desacreditada (e mais setenta e poucos sinônimos assemelhados). Há quem tenha comparecido a seu funeral! As centenas de documentos existentes na Internet sobre a mesma permanecem ocultos em suas línguas originais, inclusive os FRBR. Por isso a pergunta: será que a catalogação realmente feneceu no Brasil? Ou precisamos urgentemente mudar nosso enfoque nos cursos de Biblioteconomia? Ou caberia torná-la disciplina optativa? O que devemos fazer para mostrar sua importância? Ou subsiste apenas... para os professores de catalogação? E onde vamos descobrir tais professores, quando os de minha geração se aposentarem? Em síntese, cabe questionar: por que ensinar, ainda, a catalogação? Que catalogação deve ser ensinada? Não se trata de perguntas retóricas, ou meramente retóricas: procuram-se respostas.

K. Strunck, da Dinamarca, narra que, tradicionalmente, o ensino da catalogação na Escola Real de Biblioteconomia e Ciência da Informação enfoca o "porquê", deixando o "como" (palavras da autora) para cursos de aperfeiçoamento em serviço. Modestamente, em minhas disciplinas de Representação Descritiva (oito créditos em todo Curso de Biblioteconomia), introduzi a teoria em sala de aula, deixando a prática (exercícios e uso do Código) para a educação à distância (EAD) e, com essa experiência, ganhando mais algumas horas de aula. Os resultados serão avaliados pelo trabalho de conclusão de curso da monitora das disciplinas e orientanda, Naira Christofoletti Silveira. Isto é, a experiência ainda incipiente não permite conclusões definitivas.

Dois problemas se nos deparam em sala de aula, de um ponto de vista muito pessoal.

a) As bibliotecas brasileiras, muitas vezes isolacionistas, persistindo em sistemas individualizados, únicos, derivados da família ISIS (cada um quer fazer seu próprio sistema e desenvolver a roda!), tornam os estágios altamente distanciados da teoria e das normas internacionais. Insiste-se no supérfluo e repudiam-se os padrões.

b) Os concursos abertos aos profissionais se voltam, apenas, à prática e ao uso correto do Código, nem de leve sonhando com a teoria.

Não se pode determinar quem dá início ao círculo vicioso: se os currículos influenciam os promotores de concursos, ou se os promotores de concursos (vulgo "mercado de trabalho") influenciam os currículos. E por que as bibliotecas exigem tal nível de conhecimento, se depois farão seus registros como bem entendem?

Muitas bibliotecas rejeitam quaisquer mudanças. Penso que a causa reside na pouquíssima oferta de cursos de especialização e extensão, visando ao aperfeiçoamento e à atualização dos profissionais; mas, trata-se de um pressuposto, não de uma hipótese fundamentada. A rejeição ao diferente e o amor arraigado às práticas tradicionais se mostram mais claramente. Já disse e torno a repetir, cem vezes, mil vezes, se necessário: por que utilizar a Tabela Cutter-Sanborn para notação de autor, quando seria mais claro, objetivo, econômico e fácil usar, à moda européia, as três primeiras letras do sobrenome? Por que usar "Departamento Nacional" subordinado à jurisdição "Brasil", se aqui se trata de autarquia, de mesma subordinação administrativa de "Superintendência", cujo cabeçalho é independente: soluções díspares para o mesmo problema? Por que não deixamos para copiar dos americanos apenas o que nos interessa e fazemos com que nossas bibliotecas reflitam a cultura brasileira?

A fortíssima Biblioteconomia americana tem resultados fantásticos: bibliotecas excelentes, normas e padrões para o mundo (como as internacionalizadas AACR2, MARC21 e Z39.5) e uma preocupação em se desenvolver, inovar, crescer e se ajustar ao presente, pensando o futuro. (Certamente, não se preocupam com a Tabela Cutter-Sanborn.) Por que não imitar o espírito da Biblioteconomia americana?

Voltando ao tema inicial: se o Código é deixado para exercícios domiciliares, cursos de extensão, ou ensino à distancia, o que resta para a sala de aula? Parece incrível, mas há muito o que ensinar: estudo de textos modernos sobre catalogação, declaração de princípios (2003), FRBR, funções da catalogação e do catálogo, processo comunicativo na catalogação, normas internacionais e internacionalizadas (quais são e para que servem), redes bibliográficas estrangeiras e brasileiras, história da catalogação, definições de instrumentos e produtos, terminologia da área e até... ISBDs e AACR de modo geral. Bom, pelo visto há programa para dois semestres e poderia haver muito mais.

Além disso, o que precisam fazer os docentes, em particular, e os bibliotecários interessados, em geral? Providenciar traduções desse variadíssimo material. Apenas a Declaração de Princípios se encontra em português (de Portugal). Que tal organizarmos um mutirão-tradutor dos mais importantes dentre os inúmeros documentos disponíveis na Internet e disponibilizá-los em um site? E por que a catalogação continua importante e deve ser ensinada?

A catalogação gera produtos que servem como veículo de comunicação entre os acervos, reais ou virtuais, e os usuários. Para ampliação do universo de disponibilidades, para maior facilidade no trabalho (na catalogação, nada se cria, tudo se copia) e para melhor compreensão por parte do usuário, precisamos usar normas internacionais, legíveis, inclusive, por outros bancos de dados. Simples, não?

A velha senhora não morre; apenas, de tempos em tempos, faz cirurgia rejuvenescedora.

Referências bibliográficas

DECLARAÇÃO de princípios internacionais de catalogação. In: IFLA MEETING ON AN INTERNATIONAL CATALOGUING CODE (1. : 2003 : Frankfurt). Papers. [S.l.]: Die Deutsche Bibliothek, 2005. Disponível em: <http://www.ddb.de/news/ifla_conf_papers.htm>.

GREEN, R. The design of a relational database for large-scale bibliographic retrieval. Information Techonology and Libraries, Dec. 1996, p. 207-221.

HEANEY, M. Object-oriented cataloging. Information Techonology and Libraries, Sept. 1995, p. 135-153.

IFLA STUDY GROUP ON THE FUNCTIONAL REQUIREMENTS FOR BIBLIOGRAPHIC RECORDS. Functional requirements for bibliographic records: final report. München: K.G. Saur, 1998. Disponível em: <http:www.ifla.org/VII/s13/frbr/frbr.pdf>. Texto também acessível em eslovênio, francês, italiano, japonês, norueguês e tcheco.

STRUNCK, K. About the use of "Functional Requirements for Bibliographic Records" in teaching cataloguing. In: IFLA COUNCIL AND GENERAL CONFERENCE (65. : 1999 : Bangkok). [Papers]. [Ottawa]: International Federation of Library Associations and Institutions, 1999. Disponível em: <http://ifla.org/IV/ifla65/papers/108-131e.htm>.

TILLETT, B. A. B. Bibliographic relationships. 1987. Tese (PhD)-University of California, Los Angeles, 1987. (Há um texto curto de 2001 sobre o mesmo tema).

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Eliane Serrão Alves Mey - elimey@uol.com.br

Autor: Eliane Serrão Alves Mey
Fonte: Autorizado pela autora em 01/07/2005

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.