O telefone toca. É um colega me pedindo auxílio para selecionar livros de doação que a prima dele queria fazer para a comunidade. Arrasto minha amiga e companheira de trabalho, e vamos para a casa da doadora. 

Chegando lá, deparamo-nos com a sala repleta de livros. No tour guiado, ela mostra a despensa. No lugar do macarrão, Foucault. Entre o arroz e o pacote de café, resiste um exemplar de “Arte da Guerra”. No quarto ao lado, da cama às paredes, pilhas e mais pilhas completam o acervo de 8 mil livros. Conta, cheia de orgulho, que os recebeu de um amigo que herdou recentemente do pai. Olho ao redor. Noto que os livros tomaram conta não somente do espaço físico. Preencheu algo mais. Seus olhos brilham. 

Começamos a seleção: este vai para a biblioteca pública, aquele para a biblioteca especializada... Agora já não basta abrir até o sumário. Vamos folheando. Os olhos passeiam pelas linhas e compreendem as entrelinhas. Com o tempo, começamos a notar que o que estamos fazendo, não é uma mera seleção. Cada livro é um pedaço de seu dono. Grafados com marcador amarelo, estão suas frases preferidas. O papel prateado cuidadosamente retirado do pacote de cigarro é usado como marca-texto. No livro de metodologia científica, descansa o cartão usado para votar nas assembleias de condomínio. Muitas obras testemunham seu zelo ao ter as capas restauradas. Se alguma reportagem sobre o autor saísse nos jornais, está ela meticulosamente recortada e guardada no interior do respectivo livro. 

Que acervo rico! E não me refiro às obras raras, ou ao valor financeiro. A riqueza vem da impressão digital em cada página, do conhecimento adquirido em cada exemplar despudoradamente lido e relido. Ah, como eu queria ter conhecido o usuário desta biblioteca! Porém, íntima de seu acervo, sinto-me confiante em afirmar que esta vida não foi menos do que extraordinária.

Marjorie G. Andersen Trindade - Bibliotecária da Escola Superior de Gestão - Brasília, 01/03/2019. Contato: marjoriebsb@gmail.com