TEXTOS GERAIS


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IMPRESSÕES DE VIAGENS: RECORTES

Como se trata de um depoimento, ou ideias particulares, usei a primeira pessoa e não me preocupei com a cronologia.

Viajei muito para apresentar trabalhos, fiz projetos que julgava importantes, sozinha ou em grupo, embora a equipe da Biblioteca Nacional me apelidasse de “ET”.

No entanto, eu gostava de trabalhar com as profissionais da Catalogação da BN e, creio, o sentimento era mútuo. Apenas houve sempre, mas não só entre essas colegas, a visão de que eu vivia fora da Terra. Um dia, espero, ainda acreditarão no que disse e escrevi. Mas... vamos caminhar por partes, ao prazer de minha memória.

Cada local, cada país que visitei ensinou-me algo. Por exemplo, quando fui à Índia em 2008, com Luzia Sigoli Fernandes - pois o projeto nasceu de um trio, a partir da tese de doutoramento desta: Luzia, Sidney Barbosa e eu - adorei o profissionalismo, o senso de responsabilidade e a capacidade de trabalho dos indianos. Tudo me encantou, fosse pela beleza fosse pela grandiosidade, ou por ambas: os objetos, as roupas, os templos, a arquitetura e o artesanato. Senti-me acolhida e rodeada de elegância e lindeza. Quanto à miséria circundante, quem viveu no Rio de Janeiro tanto tempo como eu, não se pode espantar com a miséria alheia.

A Universidade em Jaipur, plena de simbologia, ofereceu-nos acomodações esplêndidas e uma hospitalidade ímpar, com duas acompanhantes permanentes e muito queridas: Akriti e Manika. Mas fiquei definitivamente deslumbrada com o templo Akshardham. Em seu interior há uma espécie de rio, com uma barca que nos leva por cenas representadas ou narradas, sobre a História desta religião e da Índia, com seus inventos, como os números ditos “arábicos”. Os robôs, perfeitos, parecem atores. Não vi, nem antes nem depois, algo tão mágico como aquele passeio. Os indianos “tatuaram” minha memória.

Também estive algumas vezes nos Estados Unidos, em ocasiões diversas, e visitei Washington, Miami, Fort Lauderdale, Key West e Nova Iorque, sempre a passeio. Lá nunca apresentei trabalhos; apenas publiquei em uma revista especializada. Em Washington, 1979, apaixonei-me pelos museus da Smithsonian, especialmente o Museu de História Natural; porém a Library of Congress, embora gigantesca, não me entusiasmou. Ainda não empregavam as AACR2 e me mostraram uma automação pífia, visita assim para sul-americana subdesenvolvida, quando o nosso Senado já produzia trabalhos espetaculares, em linha.

Em Nova Yorque, o Museu de História Natural, nos anos 2000, pareceu-me bem ultrapassado e envelhecido. No entanto, achei algo inusitado: na Biblioteca Pública da cidade há uma estátua do nosso maior estadista, José Bonifácio de Andrada e Silva, na parte externa da Biblioteca. Há também uma Biblioteca antiqüíssima, por assinatura: o sócio paga uma anuidade e pode morar em qualquer parte dos Estados Unidos.

Em compensação, os EUA são o melhor shopping do mundo! Minha filha levou-me a Nova Iorque, porque viaja a passeio/trabalho: shows da Broadway, filmes, novidades e museus fazem parte de sua profissão.

Seguindo minhas lembranças, passo ao México. Lá estive, com a colega Zaira e Pedro, seu filho, na UNAM, por volta de 2009, onde apresentamos um trabalho conjunto. Cito o Pedro, por ser o melhor companheiro de viagem: com apenas 9 anos, à época, compreendeu os espaços, as nossas horas e as dele, não incomodou ninguém, passeou e aproveitou tudo da viagem. A cidade do México é linda, as pirâmides astecas me emocionaram, o Museu de História Natural, então, um alumbramento (como dizia Bandeira). Em resumo, bela Universidade, mexicanos hospitaleiros e agradabilíssimos, viagem inesquecível!

Comemorei meus 70 anos em Portugal (2018), com uma de minhas irmãs e minha neta, na terra de meu avô paterno, em busca da dupla nacionalidade, porém desisti. Mas visitei lugares belíssimos, senti-me no Rio de Janeiro em certas horas, e fiz uma visita memorável à Biblioteca Nacional, em Lisboa, graças à gentileza de Maria Clara Assunção, da área de Música, cuja formação julgo ideal: musicista, pós-graduada em Biblioteconomia. Sugiro algo semelhante há anos. Entretanto, nunca logrei convencer meus colegas brasileiros. Uma pena, porque nossos bibliotecários trabalham com filmes, artes plásticas, enfim, os mais variados conteúdos e continentes, sem noção de seu próprio desconhecimento. Em tempo, recomendo em Lisboa o Airbnb de Maria Rita.

Rumo à Itália, em 2014, apresentei nosso último trabalho - meu, de Isabel Grau e Fernanda Biar - na Biblioteca do Vaticano, em Roma. Nessa viagem esplendorosa, um bom fechamento de carreira, aprendi muito, abriram-se horizontes, e para mim, o mais inesperado: os italianos gostaram bastante da apresentação, pediram cópia e publicaram o texto entre os dez escolhidos. Surpreendi-me, porque aqui a publicação de artigos é meio complicada: as referências, a formatação, tudo de acordo com a ABNT, ou seja, a forma mais importante do que o conteúdo. E poucos escrevem sem erros de português. Todavia, isso não vem ao caso, porque só pretendo registrar no papel digital, que logo será esquecido, mais um texto sobre catalogação – nem livro, nem artigo, nem nada mais.

Ainda sobre o que aprendi, destaco o à vontade que se sente em Roma e com os italianos, sempre receptivos e muito semelhantes a nós. Já volto à Itália.

Recorte: apenas na Índia não pude andar de transporte público, nem sozinha. Lembrei-me do Rio, nos anos 1960, quando as mulheres usavam ônibus, lotação, trem, bonde, barca, sem qualquer perigo durante o dia. À noite, se acompanhadas por amigos, andava-se em Copacabana às duas horas da manhã, também sem perigo. A Faculdade funcionava nos porões da BN, eu saía depois de 22h, andava até o Largo da Carioca para pegar o lotação (espécie de micro-ônibus, apenas com lugares sentados), descia na esquina da minha rua e ia a pé para casa. Meu pai foi um médico conceituado, ganhava bem, mas ninguém usava carro: apenas ele, para o trabalho. Por isso, nem sempre tive automóvel, e muito menos “chauffeur”. Em lugares seguros, habituei-me aos transportes públicos, inclusive como forma de observar a população. Há umas histórias anedóticas sobre esse assunto, porém não conto para não gerar polêmica.

Volto a Roma. A cidade é cativante! O Vaticano, onde se realizou o evento, um deslumbramento! Explico: como não se pode visitar a Biblioteca do Vaticano propriamente, pois seu usuário é o Papa, utiliza-se uma construção lateral para a realização de eventos. Há uma fascinante mistura de antigo/moderno. Tive o primeiro choque: os trabalhos apresentados em um programa tipo pdf, porém com recursos a mais (eu, de charrete; eles, de avião). Segundo choque: a Biblioteca Nacional de Roma, moderníssima, bela, ultra tecnológica! Basta passar o cartão magnético na sala onde se vai estudar, e os documentos chegam até lá, não importando a área. As salas, temáticas, também possuem materiais de interesse, assim como antiguidades. Terceiro choque (ao qual pretendo retornar em outro texto): você pode levar cópia do material em seu pen-drive, na Reprografia, junto às fotocopiadoras. Enfim, o acesso tornou-se livre, na medida em que você pode ler Dante original no seu pen-drive, ou seja, no seu computador. Quarto choque: além da Biblioteca do Vaticano, a Itália possui DUAS BIBLIOTECAS NACIONAIS: a de Roma e a de Florença. Não brigam entre si, mas dividem acervos. Lógico que há bibliotecas públicas: passei em uma, repleta de leitores a pegarem livros. Possui também DOIS CÓDIGOS DE CATALOGAÇÃO: o da Biblioteca Vaticana e as Regole italiane di catalogazione. Como sua civilização, sua cultura e seus documentos remontam a milênios, assim como sua música, não se discute: as melhores regras catalográficas para obras raras e música são as italianas. Não o último choque, mas o último sobre o qual escrevo: o Instituto Superiore per la Conservazione ed il Restauro oferece um curso de cinco anos, correspondente à graduação italiana, ou ao mestrado norte-americano. Este curso, imagino, nos será extremamente necessário em nosso mundo atual. Em suma, além da maravilha de se passear sem destino pelas ruas de Roma, algo sempre nos surpreende e muito nos ensina.

Gostaria de ver a Biblioteconomia brasileira fugir dos norte-americanos e aprender com os europeus, especialmente com os italianos, cuja Biblioteconomia é praticamente desconhecida por nós, apesar do grande número de descendentes, ou oriundi, no Brasil.

E por hoje é só. Escusem-me a viagem das viagens: coisas da velhice.

Agradeço as gentis revisões de Zaira Zafalon e de Marília Ludgero.

Autor: Eliane Serrão Alves Mey

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Seção Mantida por OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.