BIBLIOTECA PÚBLICA


  • Discussões tendo como tema a Biblioteca Pública: seus objetivos e suas ações.

BIBLIOTECA PÚBLICA: TEIMOSIA OU PRIORIDADE?

A decisão de ser bibliotecário chegou um tanto devagar na minha vida. Foi a terceira faculdade após duas desistências. O objetivo inicial de trabalhar com documentos da área musical mudou no meio do curso. Resolvi trabalhar em biblioteca pública e perseguir a equação: democracia da informação + formação de leitores = desenvolvimento e autonomia dos indivíduos. Sem muitas ilusões e sabendo dos espinhos a enfrentar. Não existe conversa de missão ou renúncia a realidade, é um objetivo a perseguir. Vou seguindo…

 

Nesta semana duas notícias aparentemente contraditórias rondavam a rede: a reinauguração da Biblioteca Mario de Andrade e o possível fechamento de 400 bibliotecas públicas na Inglaterra. Quer dizer que o país que não valoriza a leitura abre e o país que constituiu um padrão de biblioteca pública gerida pelas comunidades vai fechá-las. Não é contraditório?

 

Biblioteca Pública segundo o Manifesto da Unesco é: … o centro local de informação, tornando prontamente acessíveis aos seus utilizadores o conhecimento e a informação de todos os gêneros. Simples e direto, mas a clareza do documento da instituição internacional, na maioria das vezes não é acompanhada pelo senso comum. A biblioteca pública como instituição fica numa área cinzenta e os seus usos e funções não são muito claros. Para a maioria das pessoas algumas “falsas ou meia verdades” são definitivas quando se fala em biblioteca pública:

 

1 – serve para fazer trabalho escolar, logo com o surgimento da internet ela está perdendo o sentido de existência: nos últimos anos cada vez menos se procura biblioteca para fazer trabalho escolar e não por só conta da internet, a dinâmica de sala de aula mudou, faz-se mais trabalhos em classe e em grupo, a ida à biblioteca por conta disso esta rareando. O perfil do público que frequenta as bibliotecas públicas vive um momento de indefinição, ele existe e em que pese sua quantidade, tem que ser considerado. Aumento de público e mudança de perfil da biblioteca não brotam do mundo vegetal, dependem diretamente de políticas e ações concatenadas para atingi-los;

 

2 – é desatualizada e não tem o livro que procuro: mesmo que o indivíduo nunca tenha sequer procurado um livro em alguma BP ele afirma sem pestanejar o enunciado acima. Sem pressão de público e sem articulação de critérios de formação de acervo este sempre estará desatualizado, e o mais grave: ninguém vai ficar sabendo disso. A pergunta básica é: quando você procurou e não encontrou, fez um pedido formal ou encaminhou uma reclamação aos setores responsáveis? Ou você nunca procurou e/ou reclamou?

 

3 – biblioteca tem que se transformar em um centro cultural: oferecer as atrações para que o indivíduo se interesse em frequentá-la e daí conhecer e usar seu acervo, isto tudo como mera relação causal, pode até funcionar com duas ou três pessoas, mas a mera observação comprova: logo após cada apresentação musical, de teatro ou de outras expressões artísticas realizadas na biblioteca pública a maioria das pessoas sai dela sem ao menos olhar para o acervo e conhecer seus “outros” serviços. A biblioteca pública tem que parar de se esconder atrás de subterfúgios e assumir o livro, a leitura e a informação como seu principal atrativo;

 

4 – as “novas tecnologias” tornaram a biblioteca automaticamente obsoleta, a geração ipad rejeita livros, logo acervo de suportes tradicionais não têm mais sentido de existência: a mesma lógica “extinguiu” os rádios com aparecimento da televisão e “eliminou” o teatro com o surgimento do cinema. Quanto mais a informação se multiplica e se consubstancia em vários formatos e conteúdos maior a necessidade de uma mediação e organização da pesquisa. Mediar não é intervir e/ou escolher pelo indivíduo, mas propiciar que este acesse as várias opções que existem num acervo. É bom deixar claro que a tecnologia é suporte essencial nesse processo, não fator excludente. A mediação deve ser feita por um profissional preparado para tal, o google, para ficar num exemplo corrente, é estruturado e planejado por pessoas;

 

5 – leitura e leitores se estruturam e se estimulam na escola: a biblioteca pública deve servir de suporte para que a educada população procure espontaneamente aquilo que deseja: escola é um dos loci da formação do público leitor, existem outros, e entre eles, a biblioteca pública seria um de excelência, que exerce (ria) muito bem esse papel, basta que as duas instituições comecem e sedimentem um diálogo que supere as turrices seculares e que haja esforço conjunto em compreender que a mesma pessoa que passa pela biblioteca escolar deve/pode passar pela biblioteca pública e vice-versa;

 

6 – a velha máxima "um grande pais se faz com livros e leitores": acrescento algo nessa feijoada: um grande país se faz com políticas públicas para livros e, principalmente, para formar leitores. Essencial: integrar políticas educacionais às políticas culturais. Parece simples, mas estas duas áreas são a verdadeira Torre de Babel desta história, a total falta de sintonia entre ambas cria desperdício de recursos, projetos frustrados e mão de obra especializada pouco atuante e sem nenhuma sinergia;

 

7 – o estímulo à produção do livro democratiza a leitura: como relação meramente causal é pura falácia, política para o livro é uma coisa, política para leitores é outra. O livro é um produto, tem custo de mercado, movimenta uma cadeia de interesses comerciais onde o Estado exerce o papel de maior consumidor. Não estou afirmando que elas não estão diretamente relacionadas, seria loucura. A leitura precisa do livro, mas as pessoas precisam de livros e ferramentas que propiciem a apropriação da informação e conhecimento nele contido. Se formos teimosos e insistentes descobriremos vários acervos escondidos e sucateados em escolas, universidades, ONGs, bibliotecas, etc. Acervo tem que ser trabalhado e acessado, senão acaba virando apenas uma verba que foi mal gasta, isso não é apenas descuido, é crime. O livro é o meio, o leitor o fim;

 

8 – os prédios e mobiliários têm que ser atrativos e confortáveis, senão biblioteca não será frequentada: é ululante que ninguém gosta de frequentar espaços sujos, desorganizados, sucateados, mas colocar um padrão “tok estok” nas bibliotecas não resolverá como um passe de mágica seus problemas de público e frequência. Luminosidade natural, moveis ergonômicos e bem escolhidos precisam vir acompanhados de investimento em pessoas para atendimento, mediação qualificada e políticas públicas que servirão mais do que lustra moveis para a beleza implantada;

 

9 – a meta é que se abra uma biblioteca ao menos em cada cidade do país: maravilhosa premissa desde que venha acompanhada de uma série de ações e construção de políticas (os ingredientes estão parcialmente citados acima) para que elas se mantenham abertas e tenham relevância nas cidades. Isso tudo acontece logo após a inauguração, inaugurar é ótimo, mantê-las abertas e ativas, o desafio.

 

Ao longo dos meus quase vinte anos de profissão já ouvi e vivenciei muita história sobre a biblioteca pública. Poderia lotar este texto de fórmulas e máximas, não carece, não é um texto cientifico. Nesse ínterim a instituição foi várias vezes morta, enterrada e ressuscitada. O fechamento (ainda não efetivado) das bibliotecas inglesas e a reabertura da paulistana Mário de Andrade é um indicador claro desse vai e vem sem fim. Certo dia um velho camarada, desses que tem uma biblioteca particular em casa, me perguntou por que eu insistia em perder tempo e energia em lutar por biblioteca pública, vacilei alguns instantes e respondi:

 

- Pura teimosia!

 

Peço a todos que questionem e se questionem sobre o que escrevi acima, é a visão de alguém dentro da briga toda, com vícios e pretensões característicos. Talvez seja um pedido emocionado ou apenas mais combustível para minha teimosia. Tomara que seja mais que isso.


   503 Leituras


Saiba Mais





Sem Próximos Ítens

Sem Ítens Anteriores



author image
RICARDO QUEIRÓZ PINHEIRO

Bibliotecário - Trabalho pela democratização da informação e do conhecimento. Formado em biblioteconomia, 1994 na FESPSP, atuo em biblioteca pública há 15 anos em São Bernardo do Campo.