LITERATURA INFANTOJUVENIL


LIVRO DE NARRATIVA VISUAL: A QUEM É ENDEREÇADO?

Solange Bortolin

 

 

Tudo que vivemos ou imaginamos quando criança não nos dá a dimensão do que realmente viveremos e imaginaremos quando adultos. Porém nas experiências adultas vamos encontrar, de repente, as vivências de criança. Na década de 70 tive contato pela televisão com um artista plástico chamado Juarez Machado. Em um programa de domingo à noite este artista possuía um quadro onde contava histórias através da mímica e de cenários produzidos em fundo preto e linhas brancas. Este cenário, em sua maioria, ia se construindo no decorrer da narração de forma mágica, encantadora e surpreendente. Naquele tempo em minha casa, o contato com livros era muito pequeno. A escola tinha até biblioteca, mas era como um templo sagrado. Tocar em livros era quase uma heresia. O medo de que estragássemos era o que imperava na relação professor/aluno/livro. A televisão estava começando a entrar nos lares e era então nossa maior fonte de contato com imagens, narrativas e criatividade.

 

Anos mais tarde defini meu interesse pelas artes quando fiz a opção no vestibular na Universidade Estadual de Londrina pelo curso de Educação Artística. Com o meu acervo artístico, construído em grande parte pela televisão, pude em meu curso, ampliar o que hoje estabeleço de relação com as imagens.

 

 A partir daí começo um caso de amor com a Educação Infantil e através deste trabalho mergulho na literatura infantil, fortalecendo para sempre meu mundo imagético. Foi neste momento que reencontro Juarez Machado no seu livro Ida e Volta. O Projeto era construir um livro gigante, reproduzindo a obra para ficar exposto no calçadão da cidade de Londrina. Todas as páginas foram ampliadas e ficavam dispostas em zigue-zague sobre suportes de madeira com 1,80m de altura por 1,20 de largura. A exploração da história pelos transeuntes era conduzida por pegadas no chão semelhantes às contidas na obra.  Este Projeto foi idealizado no ano de 1988 pelos bibliotecários do Sesc/Londrina e fazia parte da Semana Nacional do Livro e da Biblioteca. Muitos voluntários foram envolvidos, pois reproduzir em tamanho ampliado com qualidade era muita responsabilidade. Porém o desejo de divulgar o livro superou as nossas deficiências e, por um bom tempo, pudemos desfrutar da alegria de vê-lo provocando admiração nos leitores.

 

O livro infantil entrou em minha vida pela profissão e pelas mãos de minha irmã Sueli, que depois de muitos projetos de divulgação da literatura infantil realizou o sonho de ter uma livraria especializada em livros para crianças. Toda esta convivência tornou impossível viver sem o olhar criativo e artístico dos escritores brasileiros, e em pleno final de carreira me encontro como mediadora de leitura em uma biblioteca escolar do município de Londrina, completamente absorvida pelas obras literárias infantis e pela sua vastidão de títulos. Entre eles os de narrativa visual, que, em mim, começou com Ida e Volta de Juarez Machado. Portanto, junto aqui minhas duas grandes relações com as artes: a imagem e a história.

 

O livro que constrói histórias só com imagens, sem o uso das palavras recebe várias nomenclaturas por parte dos estudiosos de diferentes áreas. No meio acadêmico ainda não há um consenso de qual a melhor forma de nomeá-lo: álbum de figuras, álbum ilustrado, história muda, história sem palavras, livro de estampas, livro de figuras, livro mudo, livro sem texto, texto visual, livro de ilustração e narrativa visual. (CAMARGO, 1995, p.70; RODRIGUES, 2012, p.65). Aqui optei pela terminologia narrativa visual, por considerá-la mais representativa deste gênero de obra.

 

Entre os leitores esse não é um problema, a dificuldade está em aceitá-lo como literatura. Tanto para o adulto quanto para a criança, compreender uma história na sequência de imagens exige uma percepção dos elementos não escritos; o que às vezes, para o consumidor desavisado, fica a sensação de uma obra empobrecida. A palavra conduz o pensamento como um manual de instrução a orientar o próximo passo. As imagens não. A compreensão de imagens depende do repertório de cada leitor e a história vai se construindo baseada nos arquivos de memória.

 

É muito comum observar um leitor de livros de narrativa visual, chegar ao final e retornar, inúmeras vezes, as páginas iniciais. São muitos anos de cultura letrada; da esquerda para a direita, de cima para baixo. Na imagem o olhar fica livre. Não tem sequência preestabelecida, os elementos vão chamando a atenção aos poucos e só se torna informação, se quem estiver lendo entender o seu significado. Nos livros de narrativa visual somos convidados a construir a história e ela, nem sempre, será igual à de outro leitor.

 

O livro que escolhi para analisar foi Quando Maria encontrou João de Rui de Oliveira  (Nova Fronteira).  É uma obra instigante que tem um formato retangular, portanto, deve ser aberta e lida na horizontalidade, lembrando algo ilimitado. Sua capa tem a cor azul em tom celestial, talvez com uma intenção de levar o leitor a sonhar. Não é possível ter certeza, mas a cor azul que permanece desde a capa até o final do livro deve representar a fantasia existente nele. As ilustrações têm traços fortes, os personagens têm olhos grandes, ora tristes ora introspectivos. Quase todas as páginas possuem árvores com enormes galhos que dão medo. Elas têm olhos que vigiam os personagens e, talvez, os leitores. Apesar de ser um livro de narrativa visual, é necessário destacar que há na última página a frase: “E viveram felizes para além do sempre”.

 

A escolha da obra focada neste trabalho foi casual. Teve origem em um conflito de interpretações entre adultos de diferentes faixas etárias em que fui convidada a opinar. Inicialmente recorri ao meu filho Tiago de nove anos que colaborou me criando mais dúvidas através de observações que, no meu olhar, passaram despercebidas. Entendi então a complexidade da obra e que ela merecia maior estudo. Vendo-me envolvida no mesmo dilema e constatando que a obra, na catalogação na fonte, está classificada como literatura infantojuvenil, idade com que trabalho cotidianamente como mediadora de leitura.

 

Assim, achei por bem investigar e aproveitar para tentar resolver outro conflito, este pessoal; afinal todas as histórias podem ser apresentadas às crianças, sem restrições? Além disso, descobrir a quem, esta obra, em especial, é endereçada. As crianças participantes foram do 1º, 3º, 4º e 5º ano (6, 8, 9 e 10 anos). Elas receberam o livro Quando Maria encontrou João, primeiro de forma individual com o livro impresso e posteriormente foi realizada novamente a leitura de forma coletiva com a participação de todas as crianças das turmas selecionadas, sendo o livro projetado na tela com datashow.

 

As leituras individuais e coletivas apresentaram experiências diferentes. Enquanto a primeira se revelava de forma tímida, titubeante, apesar de se ter deixado as crianças bastante à vontade, a outra era sobrecarregada de informação, cheia de possibilidades, divergências e revelações inimagináveis.

 

As reações através da verbalização ou mesmo de suas feições são rápidas, espontâneas e muitas vezes surpreendentes para o universo do adulto. Muitos pontos geraram conflitos como: cenários, expressões e vestimentas. A lógica do passar do tempo foi percebida (números espalhados pelas páginas), porém o lugar em que se deu o desfecho da história ficou em suspenso.

 

Houve comentários diversos sobre a mesma cena, por exemplo, uma senhora com um ramalhete de flores tendo no fundo um cemitério. Para uns ela havia ficado viúva, para outros era ela a morta e ali estava seu espírito. Ora ela era mãe, madrasta, madrinha de casamento, avó, irmã mais velha lendo histórias.

 

O retorno dos personagens ao local inicial da história para uns era a lembrança do passado, para outros era um encontro no mundo espiritual. Quanto menores as crianças mais livres e fantásticas eram suas leituras. Os maiores, já presos a convenções racionais, encontravam entraves para estabelecerem uma lógica entre os elementos da história.

 

A maioria das crianças ao ver nas páginas números, infere que os personagens brincam de esconde-esconde atrás das árvores. Uma delas explica que entendeu que o livro: “[...] fala sobre uma mãe que foi com uma menina lá na floresta e encontraram um menino. Este menino. Este menino teve uma ideia de brincar de esconde-esconde lá na floresta, daí um dia a mãe falou que ia embora e o menino continuou procurando ela. Daí ficava contando, contando e até que ele envelheceu e encontrou uma senhora e eles viveram felizes.”

 

Um menino do 3º ano que frequenta a biblioteca sempre buscando os livros que contêm assuntos de seu interesse. Lê que neste livro: “[...] Um fantasma fugiu à noite no matagal. [...] Eles começaram a brincar de esconde-esconde, 7, 8, 9, 10, 11, 12, foi contar até 79. Daí ele saiu procurando João. Daí chegou um senhor. Ele atrás da árvore ficou olhando uma senhora. Os dois... E viveram felizes para sempre. [Perguntei se entendeu a história?] Não muito [o que o título da história está falando?] Que Maria foi encontrar João. [E ela encontrou?] Encontrou.”

 

Ao ver em uma página uma espécie de galeria de fotos, uma menina do 4º ano afirma que são: “[...] fotos de casais. Casados, filhos e falecidos.” E continua narrando: “[...] uma velhinha estava lá em uma noite escura da floresta e o menino continuava contando 3, 2, 1. Então ele contava 7, 8, 9, 10, 13, 14 e por aí vai, até que ele foi envelhecendo. E logo depois mudou de ideia e foi procurar novas ideias na floresta. Então encontrou uma senhora de frente para uma floresta [...] eles se conheceram, conversavam e viveram felizes para sempre, para além do sempre.”

 

Enfim, a obra contém muitos elementos e poderá ser lida em diversas fases da vida já que contempla a trajetória humana na Terra. Esta obra é vista pela maioria das crianças como uma história de amor com final feliz. A visão do adulto é um misto de final feliz com sabor de amargura por uma vida perdida sem o amor concretizado.

 

Referências

 

CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995. (Coleção Apoio).

 

OLIVEIRA, Rui. Quando Maria encontrou João. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

 

RODRIGUES, Maria Lúcia Costa. A Narrativa visual na literatura infantil brasileira: histórico e leituras analíticas. Joinville: Editora Univille, 2012.

 

Nota sobre o título - Trabalho apresentado para conclusão do Curso de Especialização em Contação de Histórias e Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Ampére – FAMPER (SC).


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SUELI BORTOLIN

Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela UNESP/ Marília. Professora do Departamento de Ciências da Informação do CECA/UEL - Ex-Presidente e Ex-Secretária da ONG Mundoquelê.