ALGUMA COISA QUE SÓ TEM UM CELULAR
Começou a chover forte. Minutos depois, algumas crianças entram na biblioteca. Molhadas. Joana, a bibliotecária, pensa que será preciso comprar toalhas e deixá-las à disposição em casos como esse. A Secretaria de Cultura provavelmente não aprovará esse gasto.
- Vão até o banheiro e se enxuguem com papel toalha.
Se ainda houver, pensou a bibliotecária.
Enxutas, ou melhor, um pouco menos molhadas, o porta voz da meninada diz o que precisam.
- Como chama uma pessoa que só tem um celular?
- Explica melhor, pediu Joana.
- Sei lá, a professora mandou a gente fazer uma pesquisa sobre alguma coisa que só tem um celular. Não é mesmo?
Os companheiros concordaram. Um foi mais enfático:
- Eu estava na aula e ouvi direitinho. Até anotei no caderno.
- Só com essa informação é difícil entender o que vocês querem. Mas, vamos ver. Vocês têm aula de tecnologia?
- Hein? - disseram quase uníssonos os meninos. Os que nada disseram, demonstraram estranheza com gestos ou com uma cara perplexa.
- Tecnologia, computação, essas coisas. Vocês não usam celular?
- Claro - mais uma vez a resposta foi unânime.
- Então, o celular é uma tecnologia.
- Mas nós não temos aula para aprender a usar o celular.
- Está certo - disse a bibliotecária - entendi. Vocês não têm aula de tecnologia.
Um dos meninos, baixinho, disse para o outro:
- Ainda não sei que porcaria é essa.
Joana ouviu, mas resolveu não comentar. Ao invés disso, perguntou:
- Qual o professor que pediu essa pesquisa?
- A Tereza pé de mesa.
Mais uma resposta de todos, no mesmo instante. Acompanhada de risinhos.
- Não falem o apelido da professora, é feio.
- Mas - disse o porta voz - ela tem uma perna fina...
- Não importa. Não é bonito colocar apelido nos outros.
- Por que não? Todos nós temos apelidos. Ele é o ratinho, o do lado dele é o linguiçinha, depois é o babão, mais pro lado é...
A bibliotecária interrompeu a relação de apelidos.
- Qual a disciplina que a professora Tereza - e enfatizou o nome - ministra?/
- Se ela é ministra eu não sei, mas ela dá Ciências.
- Não é História? - perguntou um deles.
- Não seu burro, História é a Márcia machucado.
Para evitar discussões, Joana questionou qual a matéria que estava sendo dada pela professora Tereza.
Um dos meninos abriu o caderno, virou páginas pra frente, depois pra trás, novamente pra frente até que, feliz, encontrou:
- O nascimento da vida na terra.
Leu, levantou a cabeça e sorriu. Essa eu matei a pau, pensou consigo mesmo.
- E o que mais? - perguntou a bibliotecária.
O sorriso no rosto do menino se desfez, mas ele voltou a procurar e achou:
- É aqui que entra os celulares.
Um novo sorriso. Hoje ele estava demais.
- A professora não está ensinando células? - questionou a bibliotecária, em uma tentativa de desvendar o tema da pesquisa.
- Pode ser, disse o porta voz. Eu achei que ela estava falando celular de maneira errada.
Foi nesse momento que Joana teve certeza de ter decifrado o mistério:
- Acho que o que vocês querem pesquisar não é alguma coisa que só tem um celular, mas seres "unicelulares".
(Baseado em uma conversa de minha neta com meu filho)