ALÉM DAS BIBLIOTECAS


EM DEFESA DO LIVRO: NÃO À TAXAÇÃO

Oh! Bendito o que semeia livros
Livros à mão cheia
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar!

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            Bravo! a quem salva o futuro!
            Fecundando a multidão!…
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.

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CASTRO ALVES, 1870  

Exatamente, aos 20 anos, publiquei meu primeiro texto jornalístico, na condição de graduanda em Biblioteconomia e Documentação no “Jornal do Commercio”, diário de Recife – PE, fundado em 3 de abril de 1919 (101 anos). Título: “A morte do livro: realidade ou ficção.” As folhas impressas amareleceram e se fragilizaram pelo tempo implacável. O tema resistiu até os dias de hoje, pleno século XXI: a possibilidade (ou não) do fim do livro, à época, devido à revolução causada pela chegada da microforma, representação reduzida de documentos, imagens, filmes, fotografias, entre outros materiais, graças ao uso de dispositivos óticos, sob o formato de microfilmes e/ou microfichas.

Os anos passaram. As microformas perderam espaço. A internet chegou com força total. O tema ressurgiu das cinzas. A ameaça deu ganho de causa às potencialidades múltiplas e cheias de encanto da Grande Rede, a exemplo da interatividade, da hipertextualidade, da convergência de mídias, do tratamento personalizado e da dinamicidade intrínseca às redes sociais. No entanto, hoje está claro que a internet tem duas caras: uma “cara de pau” de promessas mágicas; uma cara cruel, que favorece a banalização do sexo, as redes de pedofilia e prostituição, as fraudes cibernéticas et cetera et cetera. Assim, ela consolidou-se, no contexto social, como mera retórica ideológica: utopia para muitos e realidade para os mais favorecidos. Aliás, a Covid-19 escancarou o fosso imenso entre ensino público e privado; entre riqueza, pobreza e miséria. A sociedade brasileira carece, com urgência, de recuperar a distância perdida. O conceito de democracia não pode ser substituído pelo de tecnocracia.

O livro enfrentou com cara e coragem o universo de irreversível beleza, facilidades e encantamento das redes. Sobreviveu em seu formato impresso, somado aos electronic-books (e-books); livros em formato ePub (electronic publication); audiobooks; livros a várias mãos e assim vai. Em continentes afora, países afora, regiões afora, recantos afora, há sempre um livro. Livro a fazer sorrir uma criança; livro a fazer sonhar um adolescente; livro a remexer as lembranças de um adulto ou idoso; livro para informar; livro para registrar a caminhada da humanidade em suas diferentes facetas; livro para assegurar a difusão de novos conhecimentos.

Porém, se nos Estados Unidos da América (EUA), nos países europeus e da Oceania, a prática de livros de bolso, inevitavelmente, mais baratos, são acessíveis à população, no Brasil, o livro sempre foi um produto inalcançável às faixas populacionais mais sacrificadas. Somente para exemplificar, a realidade da Espanha surpreende. Especificamente, Catalunha, e mais ainda, a capital Barcelona desafiam esses veredictos. A tendência à leitura atinge todas as faixas etárias. Os impressos estão por toda parte. As pessoas leem em qualquer lugar: esperando o trem, metrô ou ônibus; dentro dos transportes públicos; nos parques e nas praças; nos momentos em que esperam alguém ou um compromisso qualquer; em museus e casas de cultura...

Figura 1 – Catalães lendo jornais no trem, Barcelona – Catalunha, Espanha

 

 

Fonte: Arquivo pessoal da autora

Museus costumam colocar à disposição dos visitantes, ao final de alguns eventos, catálogos impressos de qualidade sobre eles. Trata-se de inclinação tão forte, que mesmo romances, como o premiado livro de Maruja Torres, “Mientras vivimos”, ano 2000, alardeiam a leitura como fundamental para o viver. Sua personagem central, Judit, 20 anos, se diz capaz de ler até caminhando com a mesma intensidade e capacidade de abstração de quando está no silêncio de seu quarto.

A leitura vai além dos livros de bolso (ou não). Inclui jornais, revistas, apontamentos de aula e mesmo processos jurídicos podem ser analisados em assentos de metrô, até porque há vários títulos de jornais distribuídos gratuitamente nas estações de transportes. Há de tudo. Há papel por toda parte, o que não reduz a significância das tecnologias na vida dos catalães. Ao contrário. Adoram inovações tecnológicas. Falam da alfabetização e do letramento digital como elemento de sobrevivência pessoal e profissional na sociedade contemporânea.

Figura 2 – Jornais gratuitos: ADN, Metro Directe, Què! e 20 Minutos, Barcelona – Catalunha, Espanha

 

 

Fonte: Arquivo pessoal da autora

No caso brasileiro, não bastasse a inacessibilidade ao livro por parte de sgnificativa parcela populacional, tantos pelos índices elevados de analfabetismo - analfabetos funcionais e funcionalnebte alfabetizados - quanto por seus valores elevados, em mais um gesto de desvario, ao final de julho, o Governo Federal que aí está, por meio do titular do Monistério da Economia, Paulo Guedes, enviou proposta de reforma tributária ao Congresso Nacional em regime de urgência. Dentre as medidas, o projeto prevê o retorno da cobrança de contribuição tributária aplicada aos livros.

Vale lembrar que, no país, a Constituição Federal de 1946 preceitua o regime de isenção de impostos para o papel destinado à impressão de livros, jornais e revistas, após luta empreendida por editores, livreiros, distribuidores, e, sobretudo, intelectuais, tradutores, amantes dos livros e autores, sob a liderança do grande brasileiro Jorge Amado. Adiante, face ao reconhecimento da escrita e da leitura para a formação de cidadãos pela sociedade e governantes, a Reforma de 1967 (cujo foco foi o centralismo político e ações intervencionistas do Estado mediante a expansão da Administração Indireta via Decreto-Lei n. 200), além de preservar a exoneração prevista na Constituição, ampliou a isenção ao próprio objeto, qual seja, ao livro.

A Constituição Cidadã (BRASIL, 1988, não paginado) mantém a orientação, no Artigo 150 Inciso VI alínea “d” ao prescrever: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.” Face à complexa legislação tributária brasileira, posteriormente, criaram-se contribuições sociais, como o Programa de Integração Social e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social. Considerando que os livros, a priori, não são imunes das contribuições, a Lei n. 10.865, 30 de abril de 2004, reduziu a zero a alíquota do PIS e da COFINS na comercialização de livros.

Segundo a Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares et al. (2020, não paginado), com tal disposição, registrou-se redução imediata do preço dos livros logo a seguir. Entre 2006 e 2011, “[...] o valor médio diminuiu 33%, com um crescimento de 90 milhões de exemplares vendidos”, atestando a correlação entre progresso, melhor qualidade de ensino e maior acessibilidade do livro em território nacional. Recentemente, abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime, por meio da Súmula Vinculante n. 132, reconheceu que o direito à isenção tributária do livro impresso se estende aos citados livros eletrônicos.  

Com a proposta em tramitação do Governo Federal, PIS e COFINS serão substituídos pela Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS). Assim, em visível retrocesso, os livros estarão de novo sujeitos à tributação, o que representa, sim, decretação próxima da morte do livro, desvelando futura e nefasta realidade. Mero adendo: num país, onde 30% da população nunca comprou um livro e a média de leitura oscila entre um a dois livros por ano, há um Ministro da Economia que defende com “unhas e dentes” a taxação de 12%. Em flagrante contraposição, o prefeito de Montevidéu (Uruguai), Christian Di Candia, deliberou a inclusão do livro na cesta básica para a população carente, em tempos de pandemia, a partir da premissa de que a leitura faz parte das necessidades básicas de seu povo.

Eis mais uma vez, nosso país na contramão do desenvolvimento. Segundo documento de órgãos envolvidos com a produção de livros e da educação cidadã, como Associação Brasileira das Editoras Universitárias; Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares; Associação Brasileira de Difusão do Livro; Associação Brasileira de Direitos Reprográficos; Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional; Associação Nacional de Livrarias; Câmara Brasileira do Livro; Liga Brasileira de Editoras; Sindicato Nacional dos Editores de Livros; e movimentos populares, como #DefendaOLivro ou “Defenda o livro: diga não à tributação de livros”, a imunidade tributária ao livro está em vigor em várias nações.

Relatório da International Publishers Association reforça que se trata de um produto singular, haja vista que consiste em ativo estratégico para a economia criativa. Em consonância com dados da IPA, coletados em 134 países e alusivos aos anos 2018 e 2019, dentre eles, em 53, ou seja, 40% do total, os leitores não pagam qualquer valor de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) no preço final dos livros, enquanto 49 (36%) outros aplicam taxas reduzidas do tributo. No entanto, em 32 (24%) nações, o imposto é aplicado sem diferenciação. Exemplificando: a taxa mais alta, 25% de alíquota, é praticada na Dinamarca.

Ainda segundo a fonte supracitada, a América Latina é a única região, onde quase todos os países, salvo o Chile, não cobram imposto sobre o livro e afins. Na Europa e na Ásia, a maioria cobra IVA reduzido, enquanto nos EUA, cada um dos 51 Estados são livres para decidir, o que corresponde a uma significativa variação quanto à tributação do produto.

De qualquer forma, é indiscutível que a isenção é uma forma de promover a leitura e a formação integral do indivíduo, reiterando as palavras que muitos de nós crescemos ouvindo, num sussurro gritado por um dos primeiros autores de literatura infantil do Brasil e da América Latina, Monteiro Lobato. Ele nos diz: “um país se faz com homens e livros” e, mais tarde, conforme acréscimo do editor José Olympio: “[...] e ideias.”

Há um porém: governantes e administradores em geral, incluindo os mandatários das instituições de ensino de qualquer nível e porte costumam, teoricamente, exaltar a importância dos livros, com refrões gastos e repetidos à exaustão, em seus discursos como candidatos seja lá ao que for, por mais amados ou odiados que consigam ser. Na prática, quando da redução de cortes orçamentários, são as bibliotecas os primeiros setores atingidos. Neste caso, embora seja hilário e irônico, o Governo Federal e sua trupe alcançam um mérito: não escondem o desprezo por livros, literatura, bibliotecas e conhecimento. É possível que nem tenham lido Lobato nem conheçam o brasileiro Castro Alves, para quem “Num poema amortalhada, nunca morre uma nação”, leia-se, nunca morre o livro!

Fontes:

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDITORES DE LIVROS ESCOLARES et al.  Manifesto em defesa do livro. 05 / 08 / 2020. Brasília, 2020. Disponível em: http://cbl.org. br/imprensa/noticias/manifesto-em-defesa-do-livro. Acesso em: 19 ago. 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. 292 p.

INTERNATIONAL PUBLISHERS ASSOCIATION (IPA). Annual Report 2018/2019. [S. l.], 2018/2019. Disponível em: http://www.internationalpublishers.org. Acesso em: 19 ago. 2020.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”