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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SEUS GÊNEROS I: AS ORIGENS NA ESFERA DO HUMOR E DA COMICIDADE

É comum que pessoas não muito familiarizadas com as histórias em quadrinhos as vejam como produtos essencialmente humorísticos e voltados para o público infantil. Que elas, na realidade, atingem públicos variados, já foi demonstrado algumas semanas atrás, no texto agregado a esta coluna em junho de 2003 ("Os leitores de histórias em quadrinhos: diversidades e Idiossincrasias"). Resta, então, evidenciar, para os bibliotecários e responsáveis por gibitecas no país, que os quadrinhos há muito tempo deixaram de ser exclusivamente humorísticos e passaram a ser publicados em todos os gêneros narrativos existentes. Assim, a fim de que os profissionais de informação possam realizar um serviço mais eficiente de orientação aos leitores e interessados por histórias em quadrinhos, pretende-se dedicar este e os próximos textos da coluna à descrição de como cada gênero literário surgiu e se desenvolveu nas histórias em quadrinhos, apontando suas obras de destaque e familiarizando os bibliotecários com seus principais autores. Entende-se que, a partir desse conhecimento - ainda que necessariamente limitado devido às possibilidades da internet e aos objetivos desta coluna -, será possível aos bibliotecários realizar avaliações sobre outras obras, julgando-as a partir dos indicadores de qualidade definidos pelas obras maiores de cada gênero.

Antes de qualquer coisa, para melhor entendimento sobre o porquê das histórias em quadrinhos estarem tão ligadas ao humor na mente do público em geral, é necessário voltar um pouco no tempo e mergulhar em sua origem. Nesse sentido, embora a discussão sobre o verdadeiro instante de aparecimento das histórias em quadrinhos leve muitas vezes a longas, nem sempre muito conclusivas e, em geral, quase intermináveis discussões por parte de estudiosos e pesquisadores, é impossível não reconhecer que os quadrinhos, enquanto meio de comunicação de massa, guardam uma estreita ligação, em suas origens, com o cartum e a charge humorística.

Esqueçamos as pinturas das cavernas, que podem ser vistas como mensagens gráficas de um povo que ainda não sabia se comunicar por meio de um alfabeto escrito. Deixemos de lado os hieróglifos egípcios e todas as escritas ideográficas, que guardam estreita ligação entre os símbolos utilizados e a coisa ou objeto representados. Desviemos nossa atenção de todas as formas narrativas gráficas registradas em suportes mais pitorescos, como tapetes (a famosa Tapeçaria de Bayeux, por exemplo, que comemorava a Conquista Normanda da Inglaterra, em 1066 d.C e, inclusive, fazia menção à figura do Cometa de Halley...) ou peças arquitetônicas (entre outras, a tão conhecida Coluna de Trajano, em Roma, que em seus mais de 30 metros de altura traz esculpidas cenas da campanha de Trajano, na Dácia). Por fim, ignoremos os quadros da Via Sacra, afixados nas igrejas de todo o mundo, que graficamente retratam, em cenas sucessivas, o martírio e glória de Jesus Cristo. Abstraindo todas essas menções, chegamos ao século 18 e 19, momento de grande expansão da imprensa no mundo ocidental, quando floresceram os folhetins e os jornais humorísticos. Na Inglaterra, folhetos com caricaturas de pessoas famosas e ilustrações picarescas tornaram-se comum nesse período, prenunciando o desenvolvimento da imprensa humorística inglesa, que alcançaria seu apogeu na segunda metade do século 19. Na mesma época, nos Estados Unidos, um movimento semelhante visava incorporar, à sociedade norte-americana, levas e levas de imigrantes que acorriam ao Novo Mundo em busca de fortuna pessoal e melhores condições de sobrevivência, grande parte deles incentivados por iniciativas governamentais que buscavam mão de obra para atender às demandas desenvolvimentistas da então nascente potência mundial.

Por terem se difundido mais agressivamente na imprensa jornalística norte-americana, acabaram inicialmente sendo reconhecidos pelas características que ali predominavam. Como, em sua maioria, exploravam temáticas cômicas, as histórias em quadrinhos publicadas na terra do Tio Sam receberam, em virtude disso, a denominação de funnies ou comics - e, posteriormente, comic strips e comic books -, nome pelo qual ainda são hoje internacionalmente conhecidas. Durante muito tempo, essa denominação representou fielmente a principal característica temática dos quadrinhos; atualmente, no entanto, ela já se evidencia como uma verdadeira incongruência, quando se consideram as mais diversas temáticas e os diferentes gêneros que os quadrinhos passaram a enfocar.

Praticamente, desde seu início como grande meio de comunicação de massa e instrumento privilegiado para o aumento do consumo de jornais, os quadrinhos buscaram refletir situações que falassem mais de perto à realidade de seus leitores. No meio ambiente norte-americano, mais particularmente, isto se consubstanciou no final do século 19, quando grande parte das histórias em quadrinhos que inicialmente surgiram nos suplementos dominicais das duas maiores cadeias jornalísticas do país, as de Pulitzer e Hearst, ambientavam suas peripécias humorísticas nos guetos de Nova Iorque. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o célebre personagem Yellow Kid, criação de Richard Felton Outcault em 1895, que vivia suas peripécias no beco de Hogan, no qual os habitantes de etnias diversas da norte-americana dominavam totalmente o cenário.

Outras histórias em quadrinhos também seguiam o mesmo tom. O colosso ianque desejava aculturar as massas imigrantes que passara a abrigar e as narrativas gráficas apareciam como o instrumento por excelência para atingir esse objetivo. Eram baratas. Eram fáceis de compreender. Eram atrativas ao leitor com pouco conhecimento do idioma inglês. E, além de funcionarem muito bem em todos esses quesitos, atingiam em cheio o seu público e contribuíam para uniformizar as diversas etnias em torno de uma maneira única de encarar o mundo, o American way of life.

Aos poucos, os dois objetivos complementares dos ainda iniciantes quadrinhos industrializados norte-americanos, ou seja, o de ampliar a venda de jornais e, ao mesmo tempo, incorporar levas de imigrantes à sociedade em acelerado processo de desenvolvimento, geraram a busca de maior diversidade temática nos produtos disponibilizados pelos suplementos dominicais em cores (e, a partir de 1907, também pelas tiras cômicas de quadrinhos, inseridas nos jornais diários).

Embora a comicidade de personagens e situações permanecesse ainda, durante um bom tempo, como o elemento dominante daquelas histórias em quadrinhos, categorias específicas podem desde o início ser vislumbradas, como uma espécie de incipiente segmentação de mercado. É assim que, desde o final do século 19, algumas séries começam a enveredar para um universo ficcional em que pontificam personagens infantis e animais antropomorfizados. Elas se constituíam, pode-se afirmar, os primeiros passos para a constituição das histórias em quadrinhos infantis protagonizadas por crianças (kid strips) e dos quadrinhos ambientados no mundo dos animais antropomorfizados (animal strips). Outros gêneros se seguiriam, posteriormente, com a distribuição massiva dos quadrinhos pelos Syndicates, grandes organizações voltadas para a distribuição internacional de histórias em quadrinhos. Por meio deles surgiram os quadrinhos com temáticas familiares (family strips) e protagonizados por representantes do sexo feminino (as girl strips), que, de uma certa forma, buscavam fundamentar o sonho americano de uma vida feliz e saudável, uma proposta que foi depois catártica e emocionalmente complementada pelas histórias em quadrinhos de aventuras (adventure strips) e pelos super-heróis dos quadrinhos (superheroes comics).

Todas essas informações - e outras que se pretende agregar em futuras colunas -, não representam conhecimento estéril. Como mencionado no início deste texto, o desenvolvimento das histórias em quadrinhos, enquanto manifestações artísticas e meios de comunicação de massa, constitui importante referência para profissionais de informação voltados à disseminação e à ampliação da leitura de histórias em quadrinhos. Por meio dele, é possível melhor compreender as diversas maneiras de manifestação da linguagem seqüencial gráfica no início do século 21, entendendo porque os quadrinhos de hoje buscam melhor adequar-se às necessidades e características de seu público leitor. Da mesma forma, esse conhecimento poderá possibilitar a ampliação de serviços de informação especializados nessa área, proporcionando maior benefício social e reconhecimento da profissão na sociedade. Com essa finalidade, as próximas contribuições serão dedicadas aos diversos gêneros narrativos presentes nos quadrinhos, abordando, respectivamente, as com protagonistas infantis, as de animais, as familiares, as protagonizadas por mulheres e as de aventuras.

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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.