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AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E SEUS GÊNEROS IV: OS QUADRINHOS EM AMBIENTE FAMILIAR

Os quadrinhos constituem uma mídia de caráter mundial, sendo consumidos em praticamente todas as partes do mundo. De uma certa forma, esta "globalização" começou com aquelas histórias em quadrinhos que buscaram representar situações que pudessem atingir a todos os leitores indiscriminadamente. Neste sentido, considerando-se principalmente a cultura ocidental, nada existe mais universal do que situações que ocorram dentro do ambiente familiar. Foi este, portanto, o ponto de vista seguido pelas chamadas family strips, que foram utilizadas pelos Syndicates norte-americanos como ponta de lança na exportação de narrativas quadrinizadas.

O componente econômico da equação envolvida na exportação de histórias em quadrinhos que enfocam o ambiente familiar é facilmente compreensível: como grandes distribuidores de quadrinhos, os lucros dos Syndicates eram estabelecidos em proporção direta aos jornais que publicassem cada tira ou página dominical específica; da mesma forma, ao atingir um determinado nível de distribuição, os custos se estabilizavam e os lucros aumentavam exponencialmente. Assim, quanto maior a distribuição, maior o lucro.

Quase que naturalmente, a ânsia de maiores lucros fez com que os Syndicates - que em geral eram ligados a grandes cadeias jornalísticas -, buscassem temas que possibilitassem a mais ampla distribuição possível, inclusive externamente ao país. Nessa busca de maior aceitação popular, histórias enfocando o ambiente familiar surgiram naturalmente como uma alternativa bastante viável, pois traziam um espaço narrativo com o qual todos os leitores se identificavam e que, ao mesmo tempo, não causava qualquer tipo de rejeição, como poderia acontecer, por exemplo, com histórias que representassem graficamente as minorias ou reproduzissem estereótipos raciais. Nesse sentido, os responsáveis pelas tiras de jornais buscaram refletir, de uma forma bem humorada e muitas vezes até mesmo inocente, o dia-a-dia do norte-americano comum, com suas dificuldades, alegrias, tristezas, sonhos e desilusões, imaginando que esta forma de pintar a realidade poderia ser facilmente transplantada para outras sociedades. A fórmula atingiu o objetivo esperado e em pouco tempo os jornais norte-americanos se viram abarrotados de quadrinhos que retratavam o american way of life das mais variadas formas e ajudavam a divulgar os costumes e valores norte-americanos pelo mundo inteiro, com todas as implicações ideológicas que esse fato representava.

Por outro lado, é importante salientar que as histórias em ambiente familiar não foram inventadas pelos Syndicates. Na realidade, esse tipo de história tem uma longa tradição na literatura popular, tendo sido explorado quase à exaustão em livros e romances populares de todos os países. Nos quadrinhos, já em 1889, na Europa, o desenhista francês Christophe (Georges Colomb) reproduziu graficamente a rotina de um grupo familiar provinciano e vaidoso, a Famille Fenouillard, constituída por um casal e suas duas filhas, Artémise e Cunegunde, com grande sucesso de público.

Os maiores expoentes das histórias em quadrinhos que enfocaram o ambiente familiar desenvolveram-se sem dúvida nos jornais norte-americanos. Nesse gênero, um dos nomes mais conhecidos é o de George McManus, autor que criou a história de uma família de recém-milionários cujo patriarca tem dificuldade para adaptar-se à vida de opulência. Essa situação aparentemente esdrúxula é a tônica maior dessa série criada em 1913: intitulada originalmente como Bringing up Father, ela ficou conhecida no Brasil como Pafúncio e Marocas, o nome dos dois protagonistas. Nessa história, que praticamente elabora a fórmula básica das histórias em quadrinhos familiares, tem-se a mulher dominadora, o marido oprimido, a filha casamenteira, o filho ou algum outro parente preguiçoso, os amigos folgazões, em geral desaprovados pela esposa, etc. De uma forma magistral, utilizando traços caricaturescos com fundos em estilo rococó, a série de McManus marcou toda uma época, divulgando as características da sociedade norte-americana da primeira metade do século 20. Especialmente interessantes, nessa história em quadrinhos, são as escapadas de Pafúncio, sempre ansioso para voltar à vida tranqüila e despreocupada de aparências que ele vivia antes da riqueza invadi-la. Ou seja, por essa série quadrinhística demonstra-se que os ricos também sofrem. Menos, talvez…

No entanto, provavelmente a série de ambientação familiar mais famosa de toda a história dos quadrinhos é Blondie, originalmente idealizada por Chic Young em 1930 e atualmente publicada em mais de 2300 jornais no mundo inteiro, sendo elaborada por Dean Young, filho do criador, com o artista Denis Lebrun. Tamanho sucesso se deve a que em nenhuma outra história em quadrinhos as características da sociedade norte-americana foram retratadas de maneira tão fiel como nas tribulações dessa jovem esposa para garantir a felicidade do marido e dos filhos. Blondie, também ela uma tradicional matriarca norte-americana, desde seu início de vida de casada teve que lidar com uma situação de dificuldade econômica semelhante à vivida por milhões de casais de classe média em seu pais e no mundo inteiro, devendo equilibrar um orçamento limitado às necessidade de sustento da família. Com muita criatividade, ela consegue dar conta dessa tarefa, garantindo uma união estável com o desastrado Dagwood, em 70 anos de publicação ininterrupta nos jornais do mundo inteiro.

A maioria das tiras familiares situa-se em ambientes urbanos. Isto é natural, pois nas cidades morava a maior parte das famílias retratadas nas histórias em quadrinhos, como, por exemplo, em The Gumps, de 1917, originalmente desenhada por Sidney Smith, com roteiros de Sol Hess; Gasoline Alley, de 1918, criação de Frank King, na qual os personagens envelheciam no mesmo ritmo dos leitores e Moon Mullins, de 1923, criada por Frank Willard. No entanto, nada impede que este gênero se desenvolva também em ambientes rurais, como aconteceu com a história de Al Capp, L'il Abner (Ferdinando, no Brasil), que relatava o cotidiano de uma família típica do meio rural norte-americano, em toda a sua ingenuidade e idiossincrasia. Da mesma forma, existiram histórias que, criadas originalmente para o ambiente urbano, depois de algum tempo passaram a situar-se no meio rural: é o caso, por exemplo, de Barney Google, criada por Billy DeBeck em 1919.

Assim como a instituição familiar não deixou de existir, também as histórias em quadrinhos que enfocam o núcleo familiar continuam vivas e atuantes, sendo muito popular entre os leitores. A cada dia, novos títulos surgem, muitos deles incorporando as modificações que as famílias tiveram no mundo inteiro. As esposas já não são apenas as donas de casa de antes, mas atuam também como profissionais nas mais diversas profissões, dividindo com os maridos o sustento da casa (a própria Blondie, alguns anos atrás, abriu um pequeno negócio…). Além disso, a incorporação de muitas representantes do sexo feminino ao mercado produtor de histórias em quadrinhos fez com que a situação expressa nas tiras diárias e páginas dominicais passasse a expressar com muito mais fidelidade o ponto de vista feminino, tendo-o como seu direcionador e proporcionando, ao mesmo tempo, um produto mais relacionado com as inquietações cotidianas de suas leitoras. O exemplo mais destacado desse novo modelo de family strip é, sem dúvida a criação da canadense Lynn Johnston, For Better or for Worse, que retrata o próprio ambiente familiar vivido por sua autora.

De uma certa forma, pode-se dizer que as histórias em quadrinhos que enfocam a família são muito mais comuns em jornais do que em revistas periódicas. Assim, além de poderem ser obtidas diretamente na imprensa diária, essas histórias também podem estar disponíveis como coletâneas de tiras, que são publicadas de tempos em tempos. No Brasil, infelizmente, pouquíssimas coletâneas ou álbuns de family strips são publicados; no mercado editorial internacional, no entanto, eles existem em maior disponibilidade, representando uma alternativa para aqueles leitores e instituições que tenham possibilidade de realizar sua importação.

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WALDOMIRO VERGUEIRO

Mestre, Doutor e Livre-Docente pela (ECA-USP), Pós-doutoramento na Loughborough University, Inglaterra. Prof. Associado e Chefe do Depto. de Biblioteconomia e Documentação da ECA-USP. Coordenador do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP. Autor de vários livros na área.