TEMPOS IDOS E VINDOS


  • Fatos da Ciência da Informação, selecionados, analisados e interpretados.

A BIBLIOTECONOMIA TAMBÉM SE FAZ COM HOMENS E LIVROS?

Monteiro Lobato, ao descrever, em 1932, no livro America, suas impressões de viagem aos Estados Unidos, cunhou, depois de ter conhecido os monumentos a George Washington e Abraham Lincoln, e a Library of Congress, a frase que ficou célebre: “Um país se faz com homens e livros”.  Referia-se aos dois grandes nomes da história norte-americana e acervo da biblioteca do congresso dos Estados Unidos, que então chegava à impressionante soma de quase três milhões de itens. Hoje, quase cem milhões.

 

Tomando de empréstimo a Monteiro Lobato sua frase tão citada, arrisco-me a dizer que uma disciplina, ciência ou profissão também se faz com homens (no sentido genericamente neutro da palavra) e livros. O nome de Testut foi, durante décadas, quase que sinônimo de anatomia humana, como hoje é o de Netter. O mesmo se pode dizer de Samuelson, que, na segunda metade do século passado, era uma espécie de catecismo que acompanhava todo estudante de economia. Não se podia pensar em história da filosofia, sem se falar em Bréhier. Da mesma forma que não se podia estudar história do Brasil sem Varnhagen ou mais recentemente sem a História geral da civilização brasileira, dirigida por Sérgio Buarque de Holanda. Para a formação de cada uma dessas disciplinas cada um desses nomes aportou sua parcela de inteligência, conhecimento e esforço intelectual.

 

Da mesma forma, a tríade biblioteconomia/documentação/ciência da informação foi sendo construída ao longo dos séculos por homens e mulheres, e livros que esses homens e mulheres construíram. Naudé, Cutter, Dewey, Otlet, Bradford, Briet, Ranganathan, Shera e tantos outros nomes deram a sua contribuição de alcance universal para o desenvolvimento dessas disciplinas. Seus livros serviram para formar consciências, para desenvolver competências, para dar consistência e sistematização ao processo de ensino e aprendizagem, para orientar estudantes e profissionais.

 

Do mesmo modo, aqui no Brasil, embora sem a mesma repercussão, também tivemos aqueles que deixaram a marca de sua contribuição para a construção de nossa profissão. Marca presente nos livros que editaram, em épocas muito menos favoráveis do que as de hoje. Vêm-me à memória os títulos publicados por nomes como Noêmia Lentino, Heloísa de Almeida Prado, Antônio Caetano Dias, Zilda Galhardo de Araújo, Terezine Arantes Ferraz, Abner Lellis Corrêa Vicentini, Astério Campos, Laura Maia de Figueiredo, Dóris de Queirós Carvalho, Xavier Placer, Rubens Borba de Moraes, Alice Príncipe Barbosa... Essas pessoas produziram livros numa época em que não havia mais do que uns quatro mil bibliotecários no país, pois, em 1973, éramos 3 990. Nas décadas de 1970 e 1980 houve até mesmo tentativas, como haveria no início da década de 1990, de criar editoras voltadas para a edição de livros de biblioteconomia: a VIPA, em Brasília, e a Calunga, no Rio de Janeiro.

 

Hoje em dia o número de bibliotecários certamente passa de 20 mil. E quantos serão os estudantes de graduação e pós-graduação? Desconheço a existência de algum estudo bibliométrico que haja contado quantos livros de texto, manuais de natureza didática, sobre biblioteconomia/documentação/ciência da informação foram publicados nos últimos trinta anos, de autores brasileiros. Afinal, a impressão que tenho (provavelmente equivocada) é de que parece não existir uma correlação estatisticamente positiva entre o quadro atual de profissionais bibliotecários e instituições ligadas ao trabalho informacional e a produção de livros voltados para as comunidades de ensino e prática. Intriga-me o fato de estarmos perto de completar 40 anos de ensino de pós-graduação em ciência da informação e de, nesse mesmo período, ter havido um incremento vertiginoso do número de cursos de graduação, e nossa produção bibliográfica ser ainda modesta.

 

Sei que se publicam livros todos os anos em nossa área. Muitos desses livros, porém, nem sempre se prestam ao papel de companheiros (no sentido da palavra vade-mécum, do latim ‘vai comigo’, à qual equivale o inglês companion), livros que, pela imprescindibilidade e utilidade dos conhecimentos que contêm, se tornam amigos inseparáveis de estudantes e profissionais. Muitos dos livros que se publicam nasceram mais como resposta ao atendimento de requisitos para obtenção de títulos acadêmicos, de graduação ou pós-graduação, do que propriamente para satisfazer ao compromisso maior desses autores para com a comunidade de profissionais. Trabalhos de conclusão de curso, dissertações de mestrado, teses de doutorado, pesquisas de pós-doutorado são publicados muitas vezes sem nem mesmo terem passado por um trabalho de preparação de texto que deles retire os cacoetes acadêmicos e os transformem em contribuições voltadas para o ensino e a prática e marcadas pela vontade de se tornarem nossos companheiros. Isso, reconheça-se, não ocorre apenas com a biblioteconomia/ciência da informação.

 

Se quisermos fazer a analogia sugerida por Lobato talvez tenhamos que reconhecer que ainda não temos uma produção bibliográfica brasileira que dê corpo, coerência e organicidade ao ensino e à prática da biblioteconomia/documentação/ciência da informação. E que também nos torne visível não só para a própria academia, mas para a sociedade como um todo.


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BRIQUET DE LEMOS

Formado em biblioteconomia em 1957, professor aposentado da Universidade de Brasília. Organizou o Centro de Documentação do Ministério da Saúde, foi diretor do IBICT, ministrou cursos na Bireme e em muitos outros lugares. Foi segundo presidente do Conselho Federal de Biblioteconomia. Tradutor de vários livros de biblioteconomia. Desde 1993 dirige a editora Briquet de Lemos / Livros, que é também uma livraria especializada em arte e arquitetura. (Foto: Maya Lucia Lemos Parsons)