PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: DA IMPOSTURA DO MAL: O PODER DE PUNIR

Em Microfísica do poder, 25ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979, p. 8, Michel Foucault, ao dialogar com Alexandre Fontana sobre “Verdade e poder”, diz a certa altura:

 

Em Vigiar e Punir o que eu quis mostrar foi como, a partir dos séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um desbloqueio tecnológico da produtividade do poder. As monarquias da Época Clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de Estado ― exército, polícia, administração local ― mas instauraram o que se poderia chamar uma nova economia do poder, isto é, procedimentos que permitem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e individualizada em todo o corpo social. Estas novas técnicas são ao mesmo tempo muito mais eficazes e muito menos dispendiosas (menos caras economicamente, menos aleatórias em seu resultado, menos suscetíveis de escapatórias ou de resistências) do que as técnicas até então usadas e que repousavam sobre uma mistura de tolerâncias mais ou menos forçadas (desde o privilégio reconhecido até a criminalidade endêmica) e de cara ostentação (intervenções espetaculares e descontínuas do poder cuja forma mais violenta era o castigo exemplar, pelo fato de ser excepcional)”.

 

Quero a partir dessa citação, fazer referência à atuação de significativo número de bibliotecárias e bibliotecários brasileiros, doravante designados bibliotecários brasileiros, no que diz respeito ao seu senso de justiça. E faço isso, justamente, pelo fato de que à última coluna que aqui publiquei em setembro ter recebido manifestações de que multar pelo atraso na devolução de livros é atitude justa e democrática. Aí há questões em aberto para se discutir: 1 – se a justiça advém de um sistema de regras que têm origem num fundamento ético que oferece a todos os envolvidos na situação a chance de reconhecer os princípios que orientam essas mesmas regras e 2 – se a democracia se fundamenta no poder de todos os envolvidos na situação deliberaram previamente sobre o que é o aceitável no contexto real de dada construção social, então, como uma biblioteca que não dispõe de instrumentos que fomentem e respeitem a livre manifestação de todos os seus usuários, poderia argumentar que multar pelo atraso na devolução de livros é atitude justa e democrática?

 

O que está cada vez mais evidente no contexto bibliotecário brasileiro é a grande maioria dos profissionais dessa área profissional ter transformado a multa financeira naquilo que ela realmente tem de finalidade: fonte de arrecadação financeira para pequenas despesas e mera punição. Em muitos casos, aparenta ser fruto de uma consciente atitude de retirada do dinheirinho da merenda ou da refeição do bolso do estudante que caiu em atraso. Constituiria, por isso, o equivalente ao castigo exemplar a que se refere Foucault ou, ainda mais, a um instrumento próprio da prática social vigente na Idade Média. Corresponde a uma prática bibliotecária que antecede ao desempenho esperado do bibliotecário do século XV, explicitado por Ortega Y Gasset em seu sempre surpreendente Missão do bibliotecário, que, então, dependia de encontrar o livro para copiá-lo.

 

Todo o movimento do bibliotecário, que visava encontrar leitores conforme dito por Ortega y Gasset, ainda não chegou à mente de grande parte dos bibliotecários brasileiros. Esses que, em suas bibliotecas universitárias e escolares, deliberam que o instrumento de apropriação financeira do dinheirinho do lanche ou do almoço do estudante é o instrumento que tornará esse mesmo estudante consciente de que aquele livro, naquele ambiente, é pertencimento coletivo.

 

Certamente esses inúmeros bibliotecários ainda não descobriram que nos últimos trezentos anos, em particular no mundo ocidental, tem-se buscado atitudes socialmente mais civilizadas, fruto do investimento na educação e nos recursos da escolarização, pelos quais supõe-se que justiça e cidadania sejam forjadas pelo diálogo e pelo entendimento construído a partir desse.

 

Como se diz em linguagem de senso comum que o hábito faz o monge, inúmeros bibliotecários brasileiros, sobretudo nas escolas e universidades, parecem fazer questão de cada vez mais se identificarem com os monges guardiões da biblioteca do mosteiro idealizado por Umberto Eco em O nome da rosa.

 

De onde vem essa atitude? Basta ler atentamente o Código de Ética do Bibliotecário brasileiro, do CFB, que facilmente se poderá descobrir sua origem. É pena que o Código de Ética do bibliotecário brasileiro contribua para auxiliar uma grande parcela de bibliotecários brasileiros, a não ter atingido, historicamente, um pensamento que tenha chegado ao século XVII e seguintes da concepção expressa no texto de Foucault.


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB