PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: DA NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DOS EQUÍVOCOS!

O denominado bibliotecário brasileiro – homem ou mulher – é em geral muito ignorante em relação ao seu campo científico e medianamente ignorante em relação ao âmbito de sua prática profissional. Isso se reflete no modo como busca parecer o que pensa que é. Pensa que é um gestor da informação. Pensa que é um mediador da informação. Pensa que é um intermediário entre a enorme torrente de livros e seu leitor (acompanhando o ponto de vista do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, sobre a Missão do Bibliotecário, exposto aos profissionais reunidos em Madri, Espanha, em 1935, em palestra proferida no II Congresso Internacional de Bibliotecários organizado pela IFLA). Pensa que pode sustentar um campo profissional, com todas as suas sutilezas epistemológicas e de complexidade científica e teórica, aprendendo e ensinando somente técnicas biblioteconômicas. Finge desconhecer, por exemplo, que Pierce Butler já demonstrara em 1933, em seu livro Introduction to Library Science, publicado pela Chicago University Press, que não é satisfatório alguém se dizer bibliotecário e se dispor ao exercício dessa atividade profissionalmente sem um razoável domínio do conhecimento de Filosofia, Sociologia, Psicologia e História. Pensa que biblioteca é o que não é, quando a assimila a um edifício onde se adquire, trata, armazena e distribui pacotes de matéria registrada em processo impresso, eletrônico ou digital. Pensa que faz uma analogia significativa quando compara os simples termos: biblioteca, tribunal e hospital para renegar o nome bibliotecário. Pensa muito mais coisas, para o sim e para o não, que estão completamente eivadas de equívocos. De onde vêm as limitações intelectuais que promovem esses equívocos?

        

Em primeiro lugar, talvez se possa apontar algumas fontes destas reduções, considerando o contexto de nosso país: a) como povo brasileiro ainda constituímos uma sociedade de cultura e tradições fortemente orais, o que é facilmente demonstrado pelo grande sucesso do rádio, da televisão e mais recentemente da internet em nosso meio; b) a escolarização média do brasileiro está por volta de sete anos, isto é, em média compomos uma comunidade que não venceu o nível do ensino fundamental, ou seja, ainda engatinhamos como leitores; c) aproximadamente 10% da população brasileira entre 25 e 66 anos, segundo estudos recentes da OCDE, concluiu o ensino superior, quando países de porte econômico semelhante ao nosso têm uma taxa em torno de 30% para esse indicador; d) temos a oferta de pouquíssimas bibliotecas para acesso comunitário/público irrestrito e um número pouco significativo de bibliotecas nas escolas; e) temos uma cultura política que beira ao ridículo ao lidar com os instrumentos de promoção intelectual/cultural: quando os políticos inauguram escolas, não se importam em assim chamar apenas o prédio escolar, negando que escola é projeto pedagógico reunido às condições materiais de pleno funcionamento, sendo o prédio escolar a parte menor; f) aceitamos que igualmente ao citado no ponto anterior se inaugurem prédios destinados ao funcionamento de bibliotecas chamando-os de biblioteca: a melhor ilustração contemporânea é a “Biblioteca Nacional” de Brasília, etc. A lista dessas fontes limitadoras é ampla e pode perfeitamente ser enriquecida pelos leitores desta coluna, sem precisar de um esforço muito grande para olhar muito além do seu contexto próximo.

 

Mas essas limitações que constituem essas fontes redutoras também passam por dentro dos projetos pedagógicos dos Cursos de Biblioteconomia e são de responsabilidade de seus intelectuais e docentes e passam pela concepção de ética profissional, o que é responsabilidade da comunidade nacional de bibliotecários. Se nos reportarmos a conceitos básicos, que podem ser buscados em fontes como o Diccionário de Bibliotecologia de Domingo Buonocore, obra iniciada em 1952, com o título Vocabulário Bibliográfico, encontraremos algumas definições, resultantes de uma concepção mais ampla do campo formado em torno do livro. Essas definições nos permitiriam refletir com outros elementos ausentes da maioria dos projetos pedagógicos dos Cursos de Biblioteconomia atualmente em oferta no Brasil.

 

Por exemplo, quando trata do conceito de Biblioteca, Buonocore afirma a idéia de que ela é “coleção de obras análogas ou semelhantes entre si que formam uma série determinada”, ou de outro modo, que o livro deve ser “considerado como elemento integrante de uma pluralidade ou universalidade de fato”. Destaque-se aqui a circunstância de que há a assunção nessa definição de uma postura filosófica e política que vai produzir a qualificação dessa analogia ou semelhança de que fala o autor. Esse entendimento é algo a ser construído, pois não surge ao acaso. E para ser entendido deve ser explicado, fundamentado, debatido. Essa tarefa é do Curso de formação de bibliotecários e dos seus egressos. O mesmo vale quando se pensa que o livro como material físico é portador dessas obras que integram uma pluralidade ou universalidade de fato. Não que o material físico chamado livro importe menos, há muita coisa a fazer com ele, sobre ele, etc. Porém, deve interessar muito mais o modo como as idéias de analogia e semelhança das obras que compõem uma coleção ou da integração das obras, isto é, de seus conteúdos, numa pluralidade universal se inserem na maioria dos projetos pedagógicos hoje em execução; também interessa o modo como tais idéias são interpretadas pela maioria dos docentes e profissionais bibliotecários atuantes nos Cursos de Biblioteconomia e nas bibliotecas existentes no Brasil? O que será concebível como pluralidade universal? O que buscar, para além das técnicas e das tecnologias biblioteconômicas ou do emprego no cotidiano das práticas bibliotecárias, para se compreender que essa pluralidade implica em um jeito de ser humano e social; que consiste na idéia da interação, simbolização e comunicação humana, no desenvolvimento histórico da produção e apropriação do conhecimento, e nos processos intelectuais para a assimilação, subjetivação e objetivação do conhecimento?

        

Pode-se dizer, como um aspecto a ser mais bem discutido, que no idioma hispânico se encontra uma boa expressão linguística visando à distinção entre o que é do mundo das práticas bibliotecárias relacionadas à gestão de recursos (coleções, pessoal, finanças, etc.) e o mundo da ciência do livro, isto é, do livro tratado como elemento integrante de uma pluralidade ou universalidade de fato. Nesse idioma, não sem alguma divergência (1) que se amplia para outras línguas e culturas, há uma clara distinção entre Biblioteconomia (1 - Conjunto de conhecimentos teóricos e técnicos relativos à organização e administração de uma biblioteca; 2 - Doutrina que estuda a teoria da seleção e aquisição de livros, catalogação, classificação, regime econômico administrativo da biblioteca e processos de sua gestão) e Bibliotecologia. Esta última  significando a ciência em que o livro é o objeto de interesse. Nela o livro não é a peça física, o produto material da atividade gráfica ou de digitação/digitalização  eletrônica; nela o livro é a obra, o conteúdo, o produto intelectual, a emanação objetiva do conhecimento integrante de uma pluralidade ou universalidade de fato. Ela, portanto, tem um alcance maior que a chamada Ciência da Informação, que desde sua origem se atem ao estudo da informação, a qual se trata de um aspecto correlacionado ao livro tomado como obra, conteúdo, produto intelectual, emanação objetiva do conhecimento integrante de uma pluralidade ou universalidade de fato. Além disso, as argumentações mais comumente apontadas para a defesa da Ciência da Informação tratam-na como obra de um momento histórico. Como decorrência de fato situado na primeira metade do século XX consubstanciado pela avalanche de informação científica e técnica de interesse militar e governamental, nos Estados Unidos, exigindo a potencialização da capacidade de armazenamento controlado e de recuperação eficaz e econômica. Essa informação, por sua origem e natureza, trata-se de uma informação arquivística, gerada em ambientes de laboratórios, formatada em documentos científicos e de gestão e necessitando de tratamento mais complexo que aquele dado pela Biblioteconomia às coleções depositadas nos edifícios denominados pelo termo biblioteca.  

 

O edifício da Biblioteca ao ser chamado pelo termo Biblioteca produz um equívoco histórico monumental, sustentado pela ignorância de grande parte dos bibliotecários. Tem a mesma origem da ignorância que levou a se chamar cópia fotostática de “Xerox”, ou lâmina de barbear de “Gillette”, etc. Só que o conceito equivoco de biblioteca como o prédio da biblioteca é um problema que devemos resolver por honestidade intelectual e dignidade profissional. E autorespeito e honestidade são dois aspectos fundantes da ética profissional.

 

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Notas:

(1) BIBLIOTECOLOGIA. Disponível em http://www.ccje.ufes.br/dci/deltci/pdf/9.pdf. Consultado: 10/09/2009. 

 

Biblioteconomia & Bibliotecologia – conceitos. Disponível em: http://clinicadotexto.wordpress.com/2009/02/10/biblioteconomia-bibliotecologia-conceitos/. Consultado: 10/09/2009.

 

Linares Columbié, R. Bibliotecología y Ciencia de la Información: ¿subordinación, exclusión o inclusión? Acimed 2004; 12(3). Disponível em: http://bvs.sld.cu/revistas/aci/vol12_3_04/aci07304.htm. Consultado: 10/09/2009.

 

Martínez Arellano, Felipe (Org.). E-aprendizaje en bibliotecología: perspectivas globales. México: EditoraUNAM, 2005. 155 p. ISBN9703227414, 9789703227419


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB