PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: BIBLIOTECÁRIOS(AS) BRASILEIROS(AS): DO MEDO GENERALIZADO À “ZONA DE CONFORTO” – RECORRÊNCIA DA ALIENAÇÃO

Nesses últimos meses, venho empregando boa parte das horas que consigo destinar à leitura para rever e conhecer melhor uma série de entrevistas jornalísticas concedidas a veículos da imprensa nos anos da década de 1960 por intelectuais, políticos e artistas brasileiros. Para citar alguns dentre eles, destaco nomes como: Dias Gomes, Paulo Freire, Tom Zé, Jorge Mautner, Milton Santos, Carlos Drummond de Andrade, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Vinicius de Moraes, Lúcio Costa, Fernando Gabeira e Sérgio Buarque de Holanda.

 

Esse reencontro com as ideias dessas personalidades que compõem o mundo cultural brasileiro tem sido facilitado pelo trabalho editorial da carioca Beco do Azougue, que assim se define: mais que uma editora, um pacto com a cultura. E enquanto leio as reflexões expostas nos vários volumes, cada um deles dedicado a uma personalidade ou a certas temáticas, por exemplo: capoeira ou geração beat, me ocorre pensar a que distância situam-se os(as) bibliotecários(as) do envolvimento com a atividade criativa e construtora do acervo cultural brasileiro. Esse envolvimento, sempre que se dá, leva à formulação por parte dos autores do adensamento do pensamento de cunho político e ao necessário enfrentamento da censura, à recusa e denúncia do corte do texto de criação pessoal e à não aceitação de mutilação da obra artística. Dias Gomes, Jorge Mautner, Tom Zé ou Paulo Freire exprimem com a clareza as restrições políticas que sofreram. Suas posturas constituíram e exprimiram, quando da realização das entrevistas, partes que compõem a memória de quem foi punido porque tinha a elementar capacidade de, com ou sem a intenção de contrariar a quem quer que fosse, assumir o entendimento de que havia fatos ao alcance de sua visão que eram social e moralmente inaceitáveis: as desigualdades sociais, os desmandos políticos, dentre outras coisas ruins a serem denunciadas.

 

Citando um trecho de entrevista concedida por Paulo Freire em fevereiro de 1982 ao programa de rádio Certas Palavras, pode-se perceber uma faceta do que ocorria à época. Diz ele, enquanto constrói uma longa resposta para certa pergunta que lhe foi lançada:

 

            Mas imaginem o seguinte: é engraçado terem me chamado de subversivo, que subversivo não sou eu, subversiva é a realidade que está aí. É incrível como essa turma distorce as coisas. Minha subversividade estava apenas em chamar a atenção da massa popular para ela ter uma reflexão crítica sobre a subversividade da realidade. Que culpa tenho eu então? Subversivo não era eu, subversivo era quem detinha o poder e mandava, é quem detém o poder e preserva esse estado de coisa. Num país em que a essa hora, por exemplo, milhões de brasileiros não comeram ainda, sou eu o subversivo, ou é a nossa realidade que é subversiva? É claro que é a realidade, e não eu. Então foi essa a razão pela qual terminei preso, fui expulso da universidade e tive que ser deixado do Brasil – porque no fundo eu não deixei o Brasil, tive de ser deixado. (Paulo Freire. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012, p. 93).

 

Em tom semelhante e com mais eloquência, se expressam Dias Gomes ou Fernando Gabeira que, de ângulos diferentes, atuaram nas frentes culturais e políticas, visando denunciar e reagir aos limites dados pelas forças ditatoriais então vigentes.

           

Buscando reforçar o entendimento que se pode extrair dos quadros político e social brasileiros denunciados por alguns dos entrevistados referidos, quadros que evoluem a partir dos anos de década de 1950 em torno da personalidade de João Goulart, pode-se buscar as reflexões de Tom Zé ou de Jorge Mautner ou compor suas falas com o estudo acadêmico, hoje livro de Jorge Ferreira, João Goulart: uma biografia (Editora Civilização Brasileira, 2011). Também constitui leitura recomendável para bibliotecários o texto de Bárbara Júlia Leitão, Bibliotecas públicas, bibliotecários e censura na era Vargas e regime Militar (Editora Interciência, 2011). Dessa última leitura, me parece possível extrair uma ideia, sem ofensas, da bisonha participação do bibliotecário brasileiro na liderança de denúncias das agruras sociais. Seu esforço principal como parte do coletivo que constitui uma categoria profissional no Brasil foi a de garantir postos de trabalho e o exercício de tarefas não muito além do exercício da burocracia e que se agrava hoje, no século XXI, com a densa assimilação da Tecnologia da Informação, como parte essencial da ontologia de sua ação. Ora, isso no mínimo desautoriza a maioria dos membros dessa profissão a querer ser reconhecida como vocacionada para atuar no âmbito da educação e nas ações culturais essenciais. Parece que a vocação da maioria que atua nas redes de ensino e nos órgãos de promoção e ação cultural não vai além das funções de controladoria e organização.

 

Disso, pode-se deduzir que ao longo das últimas décadas formaram-se poucos bibliotecários e que nestes prevalece o perfil que os identifica como “ferramenta” ou “máquina-ferramenta” para instrumentalizar ou “funcionalizar aparato tecnológico” de uma pequena porção de setores econômicos brasileiros: o industrial e o de serviços na liderança dessa funcionalização.

 

Como máquinas ferramentas não pensam mas reproduzem o programa que as comanda, parece que o bibliotecário brasileiro assimilou majoritariamente atitudes subordinadas como: não envolvimento com a política, não participação nos movimentos culturais de interesse social de base, autocensura que é censura aos usuários, etc. E hoje, sem discurso original, facilmente ele “compra” a ideia de que quem não se subordina a alienação que parece perpetuar-se está em uma metafórica zona de conforto. Isso requer debate. Será que a Federação de Associações de Bibliotecários, as Associações a ela vinculadas e a novíssima Associação Multiprofissões que estão constituídas conseguirão ao menos pautar isso em suas agendas de discussão? É esperar para ver.  


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB