PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA


  • A prática profissional e a ética voltadas para a área da Ciência da Informação.

PRÁTICA PROFISSIONAL E ÉTICA: BIBLIOTECA DE VIZINHANÇA

A edição número 1 (março de 2014), do 40º volume do IFLA Journal (http://www.ifla.org/files/assets/hq/publications/ifla-journal/ifla-journal-401_2014.pdf),   traz como primeiro artigo “A living, breathing revolution: How libraries can use ‘living archives’ to support, engage, and document social movements”. Esse artigo foi escrito por Tamara Rhodes e apresentado inicialmente no Congresso da IFLA realizado no ano de 2013 em Singapura.

 

Após uma discussão que leva em conta uma fenomenologia social  contemporânea, a autora apresenta como conclusão, em tradução livre, que:

 

O conceito moderno de uma biblioteca está enraizado no fornecimento de serviços à sua comunidade e com os constantes avanços tecnológicos e mudanças na forma como os indivíduos conduzem suas vidas diárias, a mudança é imperativo para a biblioteca. O movimento social moderno é fluido, amplo e de rápida formação. Ele incorpora fortes efeitos visuais e, necessariamente, os meios de comunicação social e arquivos virtuais. As bibliotecas têm a oportunidade de fazer o mesmo para apoiar, se envolver, e documentar o que está acontecendo ao seu redor, para participar nas mudanças que ocorrem na vida de seus usuários. A biblioteca futura é uma ponta de lança de sua comunidade. A biblioteca futura olhará para fora de seus muros e trabalhará em conjunto com outras agências e organizações. A biblioteca futura englobará todas as formas de expressão e de tecnologia para manter-se atualizada e relevante.

 

Ao concluir sua leitura me ocorreu a noção de “biblioteca de vizinhança”, que me parece mais ampla que os conceitos hoje existentes de “biblioteca pública” e “biblioteca comunitária”, tais como os utilizamos no Brasil. Salvo algumas exceções, em nosso meio sócio-terminológico o termo “biblioteca pública” significa a organização vinculada ao Estado e “biblioteca comunitária” significa a organização criada e mantida por iniciativa popular, contando ou não com apoio de programas públicos de fomento a atividades construídas  na base social.

 

Evidentemente, a autora não usa a expressão “biblioteca de vizinhança” em seu texto, mas essa noção não me pareceu estranha à sua reflexão. Em todo o seu discurso pareceu-me que há presença desse sentido. Em particular, vejo isso, em sua ênfase às iniciativas do movimento social moderno, que realiza também como parte do fortalecimento cidadão diversas atividades de protesto e ocupação física de espaços públicos.

 

No texto, a autora se reporta a diversas circunstâncias que devem envolver a biblioteca como suporte às ações de suas comunidades. Isso se dará pela dinamização de seus fundos documentais tomando a noção de arquivos viventes, pela perspectiva de interação com fontes e produtores de recursos visuais e pela integração das mídias sociais como parte dos meios que sustentam e vitalizam a atuação pública dos movimentos sociais.

 

Leio essa reflexão de Tamara Rhodes sentindo-a como articulada à ideia de responsabilidade social da biblioteca. Circunstância que, certamente, se torna muito mais evidente para todas as pessoas quanto mais clara for a concepção de biblioteca não como uma agência de fomento ao desenvolvimento humano simplesmente, decorrente do conceito tradicional de “portal de conhecimento da sociedade”, evocado em manifestos da IFLA/UNESCO. Esse conceito tradicional porta a noção de biblioteca como uma agência que “está lá” em algum lugar acessível a um público. Entretanto, em uma relação de situação geográfica, esse estar à disposição poderá surtir mais efeito, quanto maior for o sentido de vizinhança, provavelmente.

 

Mas, talvez ao associar essa situação geográfica da biblioteca com a ideia de vizinhança e, além disso, integrá-la com a ideia de forte sentido ético deontológico de responsabilidade social, ainda não se tenha feito tudo. Talvez seja ainda preciso destacar os benefícios propiciados pela biblioteca tanto funcionalmente como politicamente, dando relevância à ideia de teor ético pragmático. Por essa perspectiva, poder-se-ia firmar o entendimento de que a biblioteca de vizinhança é tão necessária e imediata para cada um de nós quanto a padaria, a farmácia, o açougue e a mercearia.

 

Obviamente, essa noção de vizinhança dada com esse perfil se esvai parcialmente para aqueles grupos humanos que se autoaprisionam nos condomínios residenciais fechados ultimamente difundidos nas grandes e médias cidades. Esses grupos talvez não estejam entre aqueles que vejam o mundo para além das “redes internéticas”, chamadas de redes sociais pela apropriação indevida dessa expressão, que tem na tradição sociológica o sentido de encontro real-presencial das pessoas.

 

Mas as redes sociais de fato, presenciais, sejam ativando os rolezinhos, sejam ativando o “Fora qualquer política ou político”, etc. carecem de sustentação em conteúdos apropriados e, nesse caso, se evidencia a responsabilidade social da biblioteca, que será tanto mais perceptível – suponho – quanto maior for o sentido de bem comunitário, de bem de vizinhança que ela adquira.

 

Mas, a mim parece que no estágio atual de civilidade e sociabilidade brasileiras tanto o conceito de vizinhança quanto o conceito de responsabilidade social estão fora de fase. O primeiro, porque a ideia de vizinhança se deturpou muito nos últimos vinte anos; o segundo porque responsabilidade social passou a significar ações realizadas com o propósito de resgatar pobres e miseráveis. Nenhum desses significados é verdadeiro se pensarmos vizinhança e responsabilidade social como expressões que significam tradicionalmente a interação humana despida de moralismo economicista.

 

No final da década de 1950 e início da década de 1960 bibliotecárias(os) brasileiras(os) defendiam e tentavam viabilizar a ideia de bibliotecas como parte de bairros e conjuntos habitacionais. Pensavam em iniciativas estatais que majoritariamente não foram correspondidas. Em anos recentes, algumas iniciativas particulares têm sido tomadas em municípios brasileiros a fim de constituir bibliotecas comunitárias. O que se tem percebido é que os bons resultados, quando ocorrem, vêm daqueles grupos em que maior e mais forte é o sentimento de vizinhança que reúne as pessoas como líderes e beneficiárias. E isso tem sido mais forte, quanto menor tem sido o envolvimento de bibliotecários “formados”.

 

Eu suponho que há, talvez, algo mais profundo a ser discutido pelos bibliotecários “formados” no Brasil quanto à ética e à responsabilidade social.

 


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FRANCISCO DAS CHAGAS DE SOUZA

Docente nos Cursos: de Graduação em Biblioteconomia; Arquivologia; Mestrado e Doutorado em Ciência da Informação da UFSC; Coordenador do Grupo de Pesquisa: Informação, Tecnologia e Sociedade e do NIPEEB