ARQUIVOS E ARQUIVISTAS


CRIAÇÃO DE CENTROS DE MEMÓRIA: MEMÓRIA INSTITUCIONAL E MEMÓRIA ORGANIZACIONAL

Como dissemos no artigo anterior, os centros de memória são centros de documentação especializados no tema memória, especificamente a memória de uma instituição ou área do conhecimento. Num primeiro momento, os pesquisadores consideravam que eles estivessem destinados a “reunir a memória dispersa pela falta de acumulação sistemática de parte dos documentos” de cada organização (1). 

 

Já vimos anteriormente que as próprias organizações mantenedoras desses centros não se satisfazem mais com essa linha de pensamento e entendem o centro de memória como uma área que reúne acervo e cria conhecimento a partir dele. 

 

Mas para compreender melhor o conceito de centro de memória, temos que compreender o significado que a palavra memória tem dentro do contexto organizacional.

 

Desde seu aparecimento, os centros de memória institucional vêm tentando encontrar um lugar legítimo dentro das organizações. Se, no início, a simples preservação do acervo recolhido cumpria esse objetivo, ao longo de sua existência, muitas dessas unidades de preservação precisaram definir mecanismos de atuação mais diretamente ligados à vida institucional, para garantir sua sobrevivência. 

 

Se analisarmos a criação de muitos desses centros, veremos que os problemas começam no início – nas motivações que levam à constituição de um espaço de preservação de acervo. A primeira, e mais importante motivação, está ligada à necessidade de reunião de conteúdo (documentos, objetos, referências) sobre a entidade para subsidiar produtos comemorativos. Seja um aniversário, ou um lançamento de produto, seja a necessidade de valorização da marca para reposicionamento da empresa no mercado, o processo de pesquisa costuma acumular um volume considerável de documentos e outros materiais, que, encerrado o projeto, precisam receber algum tipo de destinação. Muitas vezes, nesse momento surge a ideia de um “projeto memória” que poderá ou não configurar-se como um centro de memória posteriormente.

 

Esse é o primeiro problema que o centro de memória enfrenta. Ao ser tratado como “projeto” – algo com começo, meio e fim – a continuidade dos trabalhos não está intencionalmente prevista.  O que acontece depois que o livro foi publicado, a exposição foi inaugurada, os eventos já passaram? Quando não há um planejamento sistemático, o futuro do Centro de Memória é incerto. Esse planejamento deve ocorrer no início, na criação do centro. É necessário definir-se um bom planejamento estratégico que determine objetivos de longo prazo para a entidade. Esse planejamento deve incorporar o conhecimento da organização.

 

Esse conhecimento está intimamente ligado ao conceito de memória que, na definição de Jacques Le Goff, “como propriedade de conservar certas informações, remete-nos a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”(2). Memória é, portanto, uma representação. 

 

Se pensarmos no contexto organizacional, poderíamos dizer que a memória de uma organização é “a representação, ou o conjunto de representações, que o grupo faz do passado dessa organização, a partir dos elementos disponíveis para isso” (3).

 

Considerando essa definição, baseada na representação, poderíamos partir para a diferenciação de dois tipos de memória que coexistem nas organizações: a memória institucional e a memória organizacional.

 

No primeiro caso, trata-se da memória enquanto valor social do grupo, a memória da instituição. No segundo caso, trata-se da memória enquanto conhecimento produzido organizacionalmente e que deve estar à disposição da entidade para ser reutilizado.

 

Do ponto de vista da memória institucional, que é mais comumente trabalhada nos centros de memória, temos que refletir sobre a diferença existente entre o acervo recolhido sistematicamente pelos arquivos e o acervo escolhido para compor a memória de uma organização.

 

O centro de memória não pode ser confundido com o arquivo permanente na instituição, pois na maioria das vezes, sua composição passa por um processo de seleção que não é arquivística. A documentação é escolhida de acordo com o que a entidade compreende ou deseja que se compreenda como a “representação” da organização.

 

Essa representação muitas vezes se confunde com a imagem institucional que a organização deseja passar ao seu público. Ela serve como mecanismo de comunicação, mas devemos considerar que a memória dentro de uma organização é muito mais complexa do que isso. Ela influencia e é influenciada pela cultura organizacional.

 

A questão cultural tem sido deixada à margem por profissionais responsáveis pelos centros de memória. Qual a motivação existente na seleção de determinados ‘objetos’ para constituir a memória da empresa? A resposta poderia estar no estudo da cultura organizacional, uma linha de pesquisa que tem mobilizado um crescente grupo de teóricos, aliando conceitos da Psicologia Organizacional e da Teoria da Administração.

 

Numa definição clássica, Edgard Schein (4), define cultura organizacional como “um padrão de pressupostos básicos que um grupo inventou, descobriu ou desenvolveu ao aprender como lidar com os problemas de adaptação externa e integração interna e que funcionaram suficientemente bem para ser considerados válidos e, portanto, serem ensinados aos novos membros como o modo correto de perceber, pensar e sentir em relação a esse problema.”

 

O mesmo autor diz que a cultura organizacional pode ser apreendida em diversos níveis. Ele entende que há níveis mais superficiais de percepção e níveis mais profundos, muitas vezes inconscientes. O nível mais superficial é o nível dos artefatos, que incluem estruturas, objetos e processos organizacionais visíveis por seus membros. Além de questões ligadas ao ambiente físico e comportamental (como linguagem e vestuário), neste nível estão incluídos os mitos e histórias contadas, rituais e cerimônias realizados no interior da organização. Ao registrar esse tipo de artefato, representando-os, portanto, os documentos tornam-se eles próprios artefatos da cultura da organização. Muitos deles revestidos de um caráter icônico, tratados como representantes da memória da organização, os registros documentais, como artefatos que são, podem influenciar os demais níveis da cultura organizacional: os valores e pressupostos básicos.

 

Portanto, ao estudar os documentos escolhidos para compor a memória da organização, o profissional de documentação tem condições de compreender como a cultura organizacional alimenta a memória e se realimenta dela.

 

Nos próximos capítulos: um pouco mais sobre a relação entre cultura organizacional e a estratégia institucional e o que isso tem a ver com os centros de memória. Aliás, e o conhecimento produzido pelas organizações? Onde ele fica nessa história?

 

Espero vocês. Até lá!!!

 

Referências

 

(1) GOULART, Silvana. Patrimônio documental e história institucional. São Paulo, ARQ-SP, 2005, p. 26.

(2) LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 423-483, p.423

(3) PAZIN VITORIANO, M.C.C. Centros de memória empresarial: documentos de arquivo como artefatos da cultura organizacional. In: OLIVEIRA, L.M.V.; OLIVEIRA, I.C.B. Preservação, acesso, difusão: desafios para as instituições arquivísticas no século XXI. Rio de Janeiro: AAB, 2013. p.916-927

(4) SCHEIN, Edgar H. Cultura organizacional e liderança. São Paulo: Atlas, 2009.

 


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MARCIA PAZIN

Doutora e mestre em História Social (FFLCH/USP), Especialista em Organização de Arquivos (IEB/USP). Professora do Curso de Arquivologia da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - UNESP - Campus Marília.