OBRAS RARAS


MATERIALIDADE DE LIVROS - II

Quando comecei a ter contato com a questão da materialidade de livros e textos arquivísticos, pensei como poderia transpor o assunto para a realidade de uma catalogadora de livros raros. Farto material a ser explorado. Materialidade (palavra que, segundo o novo dicionário do Houaiss, provavelmente entrou para a língua portuguesa em 1836) está relacionada ao trabalho de impressão artesanal do livro, ao abate de animais domésticos para fazer do pergaminho suporte de escrita e encadernação, às dificuldades na confecção do papel e da tinta, e a todos os eruditos e bibliógrafos que dedicaram suas vidas aos aspectos técnicos dos tipos móveis, marcas-d'água, gravuras (mesmo que fossem apenas as letras iniciais de um texto gravadas em madeira), sem falar no peso de alguns livros - suas diversas "formas de empacotamento".

Basicamente, materialidade é qualidade do que é material, do que existe fisicamente, no caso, o livro como objeto, a simples existência de um livro.

Impossível não associar o assunto à efemeridade de alguns dos mais importantes livros relacionados à história do nosso país; daqueles que fizeram história justamente por terem se transformado em cinzas logo após o nascimento; daqueles que se materializaram no tempo graças à sua ausência.

A Historia da prouincia sãcta Cruz de Pedro de Magalhães Gândavo (Lisboa: na officina de Antonio Gonsalvez, anno de 1576) é um exemplo de livro (ou melhor, panfleto) "desmaterializado", por sorte não totalmente. O primeiro livro em português sobre o Brasil, em que o autor exalta as riquezas da terra na tentativa de promover imigração e investimentos, se tornou raro ao ser confiscado pelo governo português assim que veio à luz. Borba de Moraes nos lembra que no século 19 ele já era considerado muito raro. Estima-se que não haja 10 cópias hoje, todas em bibliotecas. Há também características bibliográficas interessantes na Historia, pois as aprovações/licenças no verso da página de rosto variam. A cópia da JCB, por exemplo, possui uma terceira aprovação, de 4 de fevereiro de 1576, assinada por Christovão de Matos, o que, segundo o bibliógrafo citado, a torna diferente das cópias da Biblioteca Nacional do Brasil.

 

Ilustração do monstro Ipupiara visto na praia de São Vicente

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"Eu emprehendi ordenar, e descrever hum Itinerario geografico, em que se incluissem os lemites do governo de Saõ Paulo, e Minas, naõ só por persuaçam de algumas pessoas curiosas, que dezejavaõ semelhantes noticias; mas para que se saibam os incognitos espaços daquelle Paiz ..."
Pois era justamente a divulgação de um segredo de Estado o que não interessava à Coroa Portuguesa. As palavras acima foram transcritas a partir da introdução do Itinerario Geografico com a verdadeira descripçaõ dos caminhos, estradas, rossas, citios, ... do Rio de Janeiro atè as Minas do Ouro. Composto por Francisco Tavares de Brito. (Sevilha: Na Officina de Antonio da Sylva, 1732). O Itinerario Geografico que, segundo consta, não foi impresso em Sevilha e menos ainda por um impressor de nome Antonio da Sylva, é um guia de viagem às minas de ouro do Brasil e nasceu sem licenças. Sobre o ouro brasileiro dizem alguns historiadores modernos que ele era de muito melhor qualidade do que o da América espanhola. Dizem também que, por conta disso, Portugal era uma nação tão rica que por muitos e muitos anos dispensou assembléias, conselhos, etc., uma vez que não precisava do apoio financeiro de ninguém para governar. Como a Inglaterra controlava o comércio do império luso-brasileiro, foi no final das contas outra grande beneficiada das riquezas do nosso país. Confiscada a edição pelo governo na época, não se encontra hoje facilmente cópia desse livrinho de 15 cm que deu trabalho ao governo português (menos de 5 exemplares disponíveis hoje, segundo consta). Não deve ter sido coincidência a publicação de uma alvará, no ano seguinte, proibindo a abertura de novas trilhas às minas e o acesso sem prévia autorização: Portugal. [Alvará (1733 Oct. 27)] Eu el rey faço saber aos que este meu Alvarà em forma de ley virem: que sendo eu informado da desordem, com que algumas pessoas no Estado do Brasil se intromettem a fazer picadas, e abrir caminhos para as Minas. . . . (Lisboa, 1733).

Na próxima falaremos do Antonil, uma das mais caras (em custo e em estima) aquisições da biblioteca nas últimas décadas. No que hoje penso que será o quarto e último artigo da série, voltaremos à idéia original de materialidade de livros e textos com um exemplo oficial brasileiro.
So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.