OBRAS RARAS


PARCERIA PERFEITA EM DOIS TEMPOS - I

Há pouco tempo atrás lemos na mídia brasileira um artigo sobre o pedreiro-bibliotecário Evandro dos Santos. Aprendeu a ler tarde, mas sua paixão pelos livros acabou por transformar a garagem de sua casa na Vila da Penha, subúrbio carioca, numa biblioteca pública com mais de 30 mil volumes, sem ajuda de governo ou de ONGs. O sergipano despertou em muitos de nós, acredito, um sentimento de admiração e respeito por seu trabalho, tão importante para todos, principalmente para os marginalizados da nossa sociedade. Sua vida será mostrada em documentário que deve se chamar "Carteiro Literário".

No extremo oposto dessa há outra história ainda pouco conhecida, essa de uma guardadora de livros, também bibliotecária de paixão, como se auto-intitula. Ela não tem tantos livros em casa como Evandro dos Santos, embora sua coleção de literatura de cordel já chegue a 800 peças. A recifense em questão mora em São Paulo e teve muito boa educação. Não sei se sua vida vai um dia estar em filme, mas já se pode conhecê-la através de um livro delicioso, ótima oportunidade para se saber com detalhe o que faz Cristina Antunes na melhor biblioteca particular de livros raros do Brasil, a biblioteca de Guita e José Mindlin.

Já lançado em Florianópolis e em São Paulo pela Escritório do Livro/Impressão Oficial, através da Coleção Memória do Livro, e com lançamento marcado para outras capitais além do Rio de Janeiro, a simpática caixinha na realidade guarda dois volumes: Memórias de uma Guardadora de Livros e Memórias Esparsas de uma Biblioteca, este último de José Mindlin. Como registra o web site dos editores, "... as tiragens são em boa parte doadas a bibliotecas estaduais e nacionais", mas também podem ser compradas no mesmo endereço de internet (www.escritoriodolivro.org.br).

A experiência de se trabalhar na biblioteca citada é, evidentemente, única. Com seu encanto, sabedoria, interesse, e constante incentivo aos felizardos que o rodeiam, o mais conhecido (e querido) bibliófilo do Brasil se transformou em exemplo para muitos, no país e fora dele. A biblioteca dispensa comentários. Cristina se encaixou como uma luva. A parceria de 23 anos vejo como perfeita.

As oportunidades a que nossa guardadora é exposta, reconheço, não podem ser reproduzidas em outro lugar, e a soma de encontros e livros e interesses, a magia que circunda aqueles quartos rodeados de biblioteca por todos os lados faz com que se sonhe que é possível existir o lugar ideal de trabalho. O que acontece no dia-a-dia da casa do Brooklyn Paulista é o que alguns de nós gostaríamos que acontecesse em nossos escritórios.

Desde os primeiros anos na biblioteca, a recém-formada pedagoga aprendeu que havia ali um mundo a ser decifrado, em cada livro, folheto, manuscrito, mapa, gravura, canto, estante e cômodo. Mais recentemente, encontros inesperados e visitantes como o poeta Manuel de Barros, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, ou o romancista (entre outros) peruano Mario Vargas Llosa têm sido o toque de classe, acontecimentos quase únicos, saboreados devidamente com simplicidade e inteligência. Ajuda a pesquisadores, horas de conversa com o dono da casa, organização de exposições em outras instituições, consultas por telefone, carta, e internet, gravações para programas de televisão e entrevistas com José Mindlin, tudo isso foi acrescentando à grande ledora um conhecimento difícil de se adquirir em outras bibliotecas. Talvez uma ou outra pessoa fosse capaz de identificar um personagem (o padre Benigno, que voou num balão no sertão da Bahia) num conto de Machado de Assis, e auxiliar um pesquisador estrangeiro, se não tivesse catalogado um grupo de folhetos sobre aeróstatos.

Poeta, tradutora, paleógrafa, e privilegiada, entre outros, Cristina Antunes é das poucas pessoas gabaritadas que conheço para falar de livros raros, brasileiros e estrangeiros, nos seus mais variados usos e contextos. Os bibliotecários, principalmente os que lidam com acervo antigo, podem se orgulhar dessa rara bibliotecária de paixão.

Como eu, que vocês possam também embalar essa cria que ora vem à luz.

So long!


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.