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OS CAVALEIROS CATALOGADORES DA TÁVOLA CATALOGRÁFICA E A BUSCA PELO CÓDIGO DA ALIANÇA – PARTE I

Talvez, só no Brasil, nota-se um certo desinteresse com os processos e as normas catalográficas entre profissionais e estudantes de biblioteconomia. Apesar da evolução destas normas, impactadas pela ambiência digital, a atividade da catalogação é interpretada como uma técnica e operada de forma isolada. A sua base teórica, construída sob fundamentos históricos, tem pouco apelo na sua própria compreensão e aplicação. Há 2000 enfrenta-se o desafio na elaboração de registros bibliográficos detalhados e consistentes com os propósitos de informar.

 

O estágio atual dos processos catalográficos certamente é resultado dos esforços iniciados por três indivíduos: Antonio Panizzi (1797-1879), Charles Coffin Jewett (1816-1868) e Charles Ammi Cutter (1837-1903), além do envolvimento de suas entidades profissionais: American Library Association – ALA e Library Association of the United Kingtom – LAUK. Entidades dedicadas a estabelecer uma aliança anglo-americana por meio de um conjunto em comum de regras catalográficas. Aliança materializada através da publicação conjunta do código anglo-americano de 1908, também conhecido como: Código AA ou Código Conjunto. O texto é um relato deste esforço.

 

No contexto destes “cavaleiros catalogadores” pode-se acrescentar a figura menos conhecida de Andrea Crestodoro (1808-1879), um assíduo frequentador da Biblioteca do Museu Britânico e insatisfeito usuário com a catalogação e ordenação do acervo existente. Sua paixão pela função da biblioteca o levou a publicar, em 1856, o ensaio The art of making catalogs, no qual defende a entrada principal para os autores e a inclusão da ordenação numérica com índice de nomes e de assuntos. Era crítico à ideia de associar a catalogação com a exclusiva ordenação alfabética dos acervos, fato a seu ver responsável pela demora no acesso e consulta do material. Em sua concepção, as bibliotecas deveriam ter dois tipos de listagens: um considerado o próprio catálogo e o outro funcionando como um índice. Ambos interdependentes, mas com funções distintas. Crestodoro com frequência é citado como o precursor da indexação por títulos permutados (KWIC, KOWOC, etc.), e o seu ensaio é considerado um libelo a favor de um catálogo universal. Para ele o mundo todo poderia, com o tempo, ser convertido em uma única biblioteca. Vale destacar que Crestodoro aplicou as ideias de Jewett (de quem era admirador) na Biblioteca Pública de Manchester onde atuou como bibliotecário. Outros personagens também menos conhecidos apoiaram os esforços dispendidos, e estão registrados na memória da Biblioteconomia a espera de algum resgate.

 

Para este relato histórico toma-se como base adaptada o artigo de Virgil L. P. Blake: Forging the Anglo-American Cataloging Alliance Descriptive Cataloging: 1830-1908. A ênfase destacada pelo texto refere-se à história da descrição bibliográfica de um recurso baseado em suas características físicas em acordo com as fórmulas prescritas, e o entendimento do que eram os pontos de acesso e como deveriam ser registrados. Afinal, Panizzi, Jewett e Cutter estavam envolvidos com esses problemas e nos legaram soluções ou alternativas.

 

O início

 

Até o século XIX o catálogo bibliográfico era um produto criado por indivíduos, aspecto que influía na sua qualidade. Nesta época, enquanto as coleções permaneciam pequenas e, da mesma forma, as demandas para os livros eram modestas, havia pouca pressão para o desenvolvimento de catálogos mais sofisticados. Entretanto, se algum destes fatores mudassem e a necessidade por recuperar os livros de forma rápida aumentassem, haveria uma crise. E foi isso que ocorreu no Museu Britânico, uma crise que iria contribuir para inovar os fundamentos da catalogação.

 

O Museu Britânico possuía um catálogo bibliográfico concluído em 1819, sob a direção do bibliotecário-chefe Henry Ellis (1777-1869), com a colaboração de Henry Hervey Baber (1775-1869), responsável pelo setor de livros impressos. Era um catálogo publicado no formato de livro impresso e composto de sete volumes, organizados em ordem alfabética de autor. Não continha índice de assunto. Para tanto foi adicionado mais vinte e dois volumes de entradas manuscritas, a partir de 1820.

 

Na década de 1830, o acervo do Museu Britânico encontrava-se desorganizado e com os livros catalogados por leigos trabalhando em tempo parcial. É neste cenário que Antonio Panizzi (ex-revolucionário italiano e advogado) foi contratado para o cargo de bibliotecário-assistente, em 1831.

 

Em 1833, os curadores do Museu Britânico preocupados com a situação, ordenaram a elaboração de um novo catálogo no formato de livro. Baber, que havia sucedido Ellis como bibliotecário-chefe, esperava realizar o trabalho seguindo o sistema que ele e Ellis haviam criado para o catálogo de 1813-1819, mas não havia ninguém para supervisionar o projeto. Ele, também, estava limitado pela decisão dos curadores em concluir o catálogo letra por letra e não prateleira por prateleira.

 

Com pouco progresso no curto prazo, a Câmara dos Comuns Inglesa, em 1836, nomeou uma comissão para investigar a situação do Museu Britânico, incluindo o seu catálogo bibliográfico. Denúncias sobre a incapacidade de encontrar livros e a defesa por um novo modelo de catálogo de assunto e alfabético, eram queixas recorrentes. Entretanto, as minúcias da catalogação nunca foram manifestadas pelos estudiosos, leitores ou o próprio governo. Como resultado da pressão, Baber nomeou Panizzi como responsável, e ele herdou tanto o projeto de catalogação, quanto a impaciência dos curadores, em 1837.

 

Panizzi era defensor do catálogo alfabético. Teve que apresentar um relatório sobre a situação do catálogo existente e do sistema de regras usadas por Ellis-Baber na criação do mesmo. O seu diagnóstico indicou o pouco progresso havido desde 1834, bem como a dificuldade em encontrar uma cópia das 16 regras elaboradas por Ellis-Baber.

 

Consciente da necessidade de um conjunto de regras detalhadas para a criação de um novo catálogo, Panizzi não dispunha de muita margem de manobra. Os curadores do Museu determinaram que as regras para criação do novo catálogo deveriam ser aprovadas por eles. Para Panizzi foi dada a permissão de elaborar o conjunto de regras. Ele tinha o objetivo de padronizar a descrição para prever detalhes suficientes na diferenciação de um registro de outro.

 

Neste sentido, ele constituiu um grupo de trabalho composto pelos bibliotecários:  John Winter Jones (1805-1881), Thomas Watts (1811–1869), Edward Edwards (1812–1886) e John Perry. Para cada um deles foi destinada uma tarefa individual. Nas reuniões de trabalho, ocorrendo divergências, as mesmas eram resolvidas pela maioria de votos. Neste processo de trabalho que as 91 regras de catalogação foram idealizadas. Ao final, em 1839, a nova política de catalogação do Museu foi submetida e aprovada pelos curadores, e publicada sob o título Rules for the Compilation of the Catalogue (Regras para a elaboração de Catálogo) no primeiro volume do novo catálogo, em 1841.

 

Donald J. Lehnus (citado por Blake), ao analisar as 91 regras, comentou que 13 regras (13-21) eram dedicadas à descrição e 13 outras regras (54-69) abordavam as remissivas, enquanto 61 das 91 regras referiam-se aos problemas de entrada para pessoas e cabeçalhos.

 

As 91 regras estavam baseadas em três princípios: (1) os dados são derivados do item em mãos, (2) a página de rosto é a principal fonte de dados, e (3) o título deve ser transcrito exatamente como aparece na obra.

 

Praticamente se considerou todos os aspectos da entrada de autor pessoal e de cabeçalhos. Apesar de inseridas, as entidades coletivas (com algumas exceções) ainda não eram consideradas como autores. Havia uma série de formas de cabeçalhos, por exemplo: Academias, Periódicos, etc., sob as quais outros tipos de publicações eram indexados. Os elementos de descrição indicados foram: título (e edição quando esta era uma parte desse elemento), lugar, impressor e data de publicação. Panizzi defendia o uso do nome na forma como ele aparecia na página de rosto, mesmo para os pseudônimos nos casos em que a verdadeira identidade do autor era conhecida.

 

A aparente ênfase na entrada e no cabeçalho é compreensível, uma vez que a preocupação essencial das 91 Regras era com o arranjo alfabética no catálogo em forma de livro impresso; e no qual as entradas relacionadas estavam agrupadas sob determinados títulos de acordo com os princípios enunciados nestas regras.

 

Compartilhamento de ideais

 

Charles Coffin Jewett formou-se na Universidade de Brown, em 1835. Em seguida, ingressou no Andover Theological Seminary, onde conheceu Oliver Alden Taylor (1801-1851) que elaborava o catálogo da biblioteca. Jewett tornou-se seu assistente. O catálogo da instituição era uma listagem alfabética de livros da coleção, ao qual se tentava adicionar um índice sistemático. 

 

Certamente, na América, não se previu a publicação de um catálogo estruturado em um método orientado para recuperação, baseado na listagem de nomes dos autores, no uso de entradas secundárias e remissivas, e na exatidão e integridade das descrições bibliográficas. Por sua participação no projeto é que Jewett se capacitou em catalogação.

 

Em 1841, com as 91 regras de Panizzi publicadas, Jewett assume o cargo de bibliotecário e professor de línguas modernas na Universidade de Brown. A biblioteca da instituição tinha uma coleção entorno de 10.000 volumes, sendo considerada uma das melhores coleções existe no país. No entanto, esta biblioteca havia publicado, anteriormente, apenas dois catálogos: um em 1793 (cobrindo 2.173 volumes) e o segundo em 1826 (cobrindo 5.818 volumes). Portanto, um novo catálogo era necessário, e Jewett considerou ser a sua primeira responsabilidade. O catálogo foi concluído em 1843.

 

Jewett seguiu o plano e modelo adotado por Taylor. Assim, o catálogo contemplou em uma ordem alfabética tanto a catalogação descritiva, quanto o índice de assuntos. No prefácio do catálogo impresso, Jewett explicou que no catálogo descritivo, as obras são colocadas em ordem alfabética sob os nomes dos seus autores. E, os próprios nomes são arranjados alfabeticamente. Quanto as obras anônimas, nas quais se é incapaz de determinar o autor, elas são colocadas sob a palavra mais importante do título, ou nos assuntos a que se referem.

 

No modelo catalográfico, o índice de assuntos contou com três tipos de entradas: (1) sob a palavra mais importante do título; (2) assuntos gerais, por exemplo: química; e (3) temas específicos, por exemplo: fotografias. Em relação ao índice de assuntos, Jewett comentou do seu esforço em organizá-lo de tal modo que respondesse a finalidade de um índice alfabético.

 

O catálogo desenvolvido representou um avanço importante para a catalogação norte-americana, até por não ser um catálogo de assunto. Jewett foi elogiado pelo trabalho realizado. Algum tempo depois, ele foi enviado à Europa para compra de livros. Oportunidade aproveitada para se reunir com Panizzi e Edward Edwards. Utilizou o tempo europeu para aprender o que podia sobre as 91 regras. Como observou Donald J. Lehnus (citado por Blake), o primeiro elo da cadeia de descobertas na catalogação, se inicia com Panizzi que conheceu e trabalhou com Edward Edwards, no Museu Britânico. E, agora, conhecia pessoalmente Jewett que no momento da reunião era bibliotecário na Universidade Brown. Neste mesmo período, um legado para os Estados Unidos estava sendo debatido [podendo ser acrescido, ainda, que a semente para um código de catalogação anglo-americano era plantada].

 

Outro fato, relacionado com o legado de inovação na catalogação, foi a morte de James Smithson, em 1829, e que deixa uma herança para o seu sobrinho Henry James Hungerford. Pelos termos do testamento, caso o sobrinho morresse sem filhos o restante de sua propriedade iria para o Governo dos Estados Unidos, com a finalidade de aumentar e difundir o conhecimento. Os recursos herdados irão constituir o Instituto Smithsonian, cujo diretor Joseph Henry, em 1847, nomeia Jewett como bibliotecário-chefe, e uma divergência entre os dois irá surgir.

 

Diante dos recursos recebidos, Henry entendia que o Smithsonian deveria financiar as pesquisas e a publicação dos seus resultados. Jewett acreditava que o Instituto deveria assumir as funções de uma biblioteca nacional e trabalhou intensamente para essa finalidade.

 

Na Conferência de Bibliotecas realizada em 1853, ele garantiu aos participantes que informações estatísticas sobre bibliotecas, e o aumento e a disseminação do conhecimento bibliográfico continuariam. Entretanto, o seu principal interesse era o projeto de um catálogo coletivo nacional, baseado na tecnologia da estereotipia. O projeto o obrigou a enfrentar o problema das regras catalográficas. Neste sentido, Jewett delineou o sistema do catálogo do Smithsonian sob os seguintes princípios: 1) o Instituto é responsável pela publicação das regras para a elaboração de catálogos; 2) outras instituições, com interesse em publicar o catálogo de seus livros podem prepará-lo de acordo com essas regras, desde que fizessem uso dos registros gerados pela estereotipia produzidos pelo Smithsonian.

 

Ao formular esses procedimentos Jewett tinha duas opções: 1) escrever um código inteiramente novo para a catalogação; ou 2) adaptar uma norma já existente. Ele optou pela segunda estratégia, e justificou que as regras foram elaboradas após um minucioso estudo das 91 regras adotadas no Museu Britânico. As regras redigidas por Jewett foram publicadas sob o título: On the Construction of Catalogs (sobre elaboração de catálogos). Era um código contendo 39 regras marcadas pelas exceções e observações. Estas características não existiam nas regras de Panizzi, que foram feitas unicamente para o catálogo do Museu Britânico.

 

O código de Jewett foi considerado melhor organizado do que o de Panizzi, e as regras podiam ser divididas em quatro partes: I. Títulos, isto é, a descrição bibliográfica (Regras 1-12); II. Cabeçalhos (Regras 13-29); III. Remissivas (Regras 30-31); IV. Arranjo (Regras 32-39).

 

Jewett adotou algumas das 91 regras textualmente. A regra 6 (primeiro os livros impressos sem páginas de rosto) é idêntica à regra 20 de Panizzi. Em outros casos, ele consolidou várias regras em uma única. Algumas características básicas se repetiram: 1) a catalogação dos dados será desencadeada a partir do item em mãos; 2) a confiança na página de rosto como a principal fonte de informação; e 3) a transcrição exata do título. Os elementos da descrição bibliográfica ainda eram o título (com o acréscimo do que é agora denominada indicação de responsabilidade), lugar de publicação, editora (em oposição a ao impressor de Panizzi), data de publicação e, um novo elemento, a extensão do volume.

 

Ao contrário de Panizzi, as regras de Jewett determinavam que, se o autor adotou um pseudônimo e sua identidade fosse conhecida, a obra seria apresentada sob o nome verdadeiro do autor. As entradas de título, no código de Jewett, foram inseridas sob a primeira palavra do título que não era a mais importante. 

 

Jewett não estava disposto a usar forma de cabeçalho como Academia ou Periódicos. A regra 22 colocava as publicações da academia sob seus próprios nomes. Os periódicos (Regra 7) foram colocados sob seus títulos. Apenas 16 das 39 regras foram dedicadas à principal preocupação de Panizzzi, as entradas e os cabeçalhos. Apesar de refletir um melhor equilíbrio entre as duas atividades na catalogação descritiva, o mais interessante no trabalho de Jewett era a ordem com que colocara as regras. A descrição antecedia as entradas e cabeçalhos neste código, algo que não iria se repetir até 1978.

 

Mas o Projeto de Jewett não aconteceu. Após o encerramento da Conferência de Bibliotecas em 1853, Jewett radicaliza sua posição ao requerer que 50% do orçamento do Smithsonian fosse alocado para o delineamento de uma biblioteca nacional. Essa posição o levou a ser dispensado das suas funções como bibliotecário, em janeiro de 1855. O que marcou o fim do seu protagonismo em forjar uma aliança anglo-americana.

 

No mesmo ano, Jewett aceitou uma posição como catalogador na Biblioteca Pública de Boston. Em 1858, ele já como diretor da instituição publica um índice do catálogo denominado: Index to the Catalogue of a Portion of the Public Library of the City of Boston Arranged in its Lower Hall. Muitas das características de suas regras para o Smithsonian foram mantidas, porém com algumas mudanças significativas.

 

Ele adota uma estratégia de alfabetação única, incorporando as entradas principais de autor, de título, e de assuntos. Adota entradas completas e incluídos na descrição o local de publicação, data e extensão sob a entrada de autor. No caso das entradas secundárias de autores, títulos e assunto, os dados bibliográficos não eram completos. Esperava-se que o usuário fosse para a entrada principal mais completa e detalhada. Jewett, uma vez mais, optou entrar as obras de autores que utilizavam pseudônimos por seus nomes verdadeiros quando passível de identificação. Em acréscimo à entrada de autor, cada volume também foi entrado sob um cabeçalho de assunto e novamente sob a primeira palavra de destaque no título.

 

Houve outra marca distintiva para este catálogo, as remissivas foram melhor aplicadas; o conteúdo das obras em vários volumes foi listado em detalhe; notas bibliográficas acompanhavam alguns dos títulos; e os registros bibliográficos foram preparados sob vários assuntos. Apesar de representar uma importante conquista para Jewett, ocorreu um imprevisto que impulsionaria a aliança catalográfica anglo-americana.

 

Neste mesmo período, Cutter começa a trabalhar como catalogador na Biblioteca Pública de Boston, sob a supervisão de Jewett e cujas ideias sobre catalogação ele irá assimilar, especialmente, as que dizem respeito sobre entrada de autor e de título.

 

O início das bases da catalogação

 

Charles Ammi Cutter graduou-se pela Universidade de Harvard, em 1855. Posteriormente, em 1859, também se formou na Escola de Teologia. No período de 1857 a 1859, ele trabalhou como estudante na biblioteca da Divinity School, mas nunca se tornou um pastor Unitarista. Em 1860, torna-se assistente de Ezra Abbot (1819-1884) bibliotecário-chefe e catalogador na biblioteca de Harvard College. Naquele tempo, Abbot estava dedicado à criação de um novo catálogo para a biblioteca. O seu plano delineava dois catálogos: um índice de autores e outro de assuntos. Abbot havia concluído que cada volume deveria ter pelo menos uma entrada de assunto.

 

Mais interessante, ele entendia que a entrada de assunto deveria ter como base o conteúdo do livro, e não as palavras significativas do seu título. Abbot rejeitou a ideia de uma lista única, em ordem alfabética de assuntos, sobre o motivo desta estratégia dispersar os tópicos relacionados unicamente com base em uma classificação. Por outro lado, ele concluiu que um catálogo classificado [também conhecido como catálogo sistemático pelo fato de ordenar as entradas por assunto conforme a notação que estabelece o sistema de classificação adotado] era muito difícil de consultar para a maioria dos usuários. Ele decidiu por um meio termo e planejava usar um arranjo classificado alfabeticamente para o seu índice de assunto.

 

Cutter ficou inteiramente envolvido na conclusão deste catálogo. Em seu The New Catalogue of the College Library Harvard, ele indicou que este iria ser um catálogo de fichas, ao invés dos costumeiros catálogos em livros impressos. A primeira parte era para ser uma lista em ordem alfabética de autores indicando não só livros e panfletos, mas todas as memórias importantes e comunicações das sociedades científicas. Cutter observou que um catálogo por assunto não admite nenhum momento de dúvida. E este foi um território no qual nem Panizzi e nem Jewett pisaram. Suas experiências na biblioteca de Harvard e na biblioteca pública de Boston, ambas relacionadas com o processo de criação de catálogos forneceu a Cutter um excelente aprendizado em biblioteconomia.

 

Em 1868, Cutter, baseado na sua extensa experiência, foi nomeado bibliotecário no Boston Athenaeum. Naquela época, esta biblioteca possuía 70.000 volumes e era a terceira maior biblioteca dos Estados Unidos. Ele também tinha um grande problema em relação à forma e o estado do seu catálogo. O seu antecessor, William Frederick Poole (1821-1894), havia começado a desenvolver um novo catálogo, em 1856, semelhante ao catálogo da Mercantile Library Association of Boston que era um catálogo em livro impresso com entradas organizadas em uma única lista alfabética de autores, títulos e assuntos com palavras derivadas dos títulos.

 

As entradas eram breves, ou seja, os títulos não foram transcritos exatamente. Muitos dos elementos da descrição do local de publicação, editora, data de publicação, colação. foram incluídos, mas Poole contou com uma série de abreviaturas para transmitir a informação. Enquanto todas as entradas foram intercaladas, não houve remissivas, nem notas de conteúdo e de analítica.

 

O esforço de Poole, no Boston Athenaeum, não se saiu melhor. Ele não exerceu uma cuidadosa supervisão do processo. A finalização do catálogo foi colocada nas mãos de assistentes inexperientes. Com pouco progresso aparente, em 1862, a supervisão do trabalho foi transferida para Charles R. Lowell que trabalhou diligentemente até sua morte prematura em 1870. Assim, Cutter herdou um projeto (como ocorrido anteriormente com Panizzi) que não era uma herança invejável, pois o trabalho que lhe foi passado estava em péssimo estado de desenvolvimento.

 

Cutter examinou o que fora desenvolvido até aquela data e se decepcionou com a qualidade. Admitiu o empenho dado em um catálogo construído de um plano totalmente distinto. Apesar disso, ele assumiu a tarefa com a intenção de realizar mudanças mínimas. O catálogo da biblioteca do Boston Athenaeum se constituiu em uma obra de cinco volumes lançados entre 1874 e 1882. Cutter fez uma grande mudança, ou seja, as palavras proeminentes no título que eram, tradicionalmente, a base do acesso aos assuntos dos itens, foram rejeitadas em favor dos verdadeiros assuntos baseados no conteúdo dos itens.

 

Havia 6.000 títulos de assuntos criados, bem como um sistema de remissivas de assuntos gerais por tópicos subordinados para os quais foram relacionados. Outras características foram as notas de conteúdo para indicar as obras individuais dentro de um volume coletivo e entradas analíticas para indicar partes de um livro que podem ser de interesse para o leitor. Estas são características que Jewett tinha empregado na Biblioteca Pública de Boston. O catálogo de Cutter foi reconhecido como um excelente trabalho. Ele também assegurou a predominância do catálogo dicionário nos anos seguintes.

 

A experiência de concluir este catálogo e as experiências anteriores com Abbot e Jewett, solidificaram o pensamento de Cutter em relação aos catálogos e a catalogação. Isto levou à publicação de suas regras para catálogo dicionário impresso: o Rules for a Printed Dictionary Catalog, como uma parte II do U.S. Bureau of Education Special Report on Public Libraries, em 1876. Haveria mais três edições do código até 1904, com a palavra impresso (printed) desaparecendo do seu título. Este foi o lugar onde Cutter externou os primeiros princípios da catalogação.

 

As regras para um catálogo dicionário cresceram de 205 (1876) para 368 (1904). Destas 368 regras, apenas 27 (Regras 161 e 188) estavam preocupadas com as entradas de assuntos. Incluído neste código a declaração clássica de Cutter sobre os objetivos e as funções da catalogação, e das 115 definições de termos. Uma premissa básica para os aspectos descritivos da catalogação foi a indicação para uma unidade bibliográfica cuja responsabilidade principal pelo conteúdo intelectual da obra será uma pessoa ou uma entidade coletiva. Carpenter (citado por Blake) argumenta que as entidades coletivas eram consideradas como autores de obras publicadas em seu nome ou autoridade. Cutter foi além dos limites estabelecidos por Panizzi e Jewett ao criar o conceito de autoridade corporativa. As suas regras revertem à preocupação de Panizzi com a entrada e o cabeçalho. O código proposto por Jewett tinha considerado a descrição em primeiro lugar e, em seguida, a entrada e o cabeçalho. Cutter concentrou foco na entrada: onde entrar e no cabeçalho (estilo): como entrar. Nas suas regras, a entrada é o tema das Regras 1 a 160, e os cabeçalhos discutidos nas regras 197 até 351. 314 (92%) das 341 regras são ocupadas com essas duas preocupações.

 

A descrição para Cutter foi uma reflexão tardia, da mesma forma que para Panizzi. Cutter, assim como Jewett, entraria as obras sob pseudônimos e obras anônimas pelos nomes verdadeiros dos autores se pudessem ser determinados. Até então, Cutter publicou suas regras na forma dos cabeçalhos usados por Panizzi, e que foi alterada por Jewett, posteriormente desaparecendo. Como Jewett, Cutter colocou obras anônimas cujos autores não podiam ser identificados sob o âmbito da primeira palavra do título e não do texto.

 

As regras de Cutter foram aclamadas após a sua publicação e, desde então, tornaram-se essenciais na catalogação descritiva. Observa-se, do trabalho de Cutter, que foi o último código de catalogação publicado e editado por uma única pessoa. Apesar das regras de Cutter terem influenciado a catalogação, elas não tiveram ampla aceitação como um código destinado à construção de catálogos dicionários, seja nos Estados Unidos ou na Inglaterra. Nem mesmo aprovação das associações profissionais então emergentes nestes dois países.

 

Fim da PARTE – I

 

Nota:

 

Este texto é uma tradução resumida e adaptada. Contém inserção de dados e de interpretação do colunista. Para leitura integral ver:

Blake, Dr. Virgil L. P. Forging the Anglo-American Cataloging Alliance: Descriptive Cataloging, 1830–1908. Cataloging & Classification Quarterly, n.35, p. 3-22, 2002. Acesso em: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1300/J104v35n01_02


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.