OBRA ADAPTADA É TEXTO ALTERADO E O CATALOGADOR QUE SE MEXA
Virou assunto nas redes sociais, e ganhou divulgação na mídia impressa, as intenções literárias com as obras de Machado de Assis. É previsto, para o mês de junho, o lançamento de uma versão simplificada de “O Alienista”, obra publicada em 1882.
A autora da versão é a escritora Patrícia Secco. Ela coordena um projeto que pretende “descomplicar” os clássicos para os leitores não acostumados a lê-los. O jornal Folha de São Paulo, em seu caderno “Ilustrada”, publicou matéria, no dia 10/05/2014, que teve por chamada: “Machado pra Burro”.
O mencionado projeto, autorizado pelo Ministério da Cultura do Brasil, captou cerca de $ 1 milhão de reais, via leis de incentivo, o que também possibilitará adaptar a obra: “A Pata da Gazela”, de José de Alencar. Estima-se tiragem de 600 mil exemplares a serem distribuídos pelo Instituto Brasil Leitor. O fato indica que as bibliotecas públicas e escolares devem receber os livros para inclusão em seus acervos.
Comenta-se no caso da obra “O Alienista”, que suprimiu-se virgulas, deixou-se as frases mais diretas e substituiu-se palavras (por exemplo, “filhos da nobreza” virou “filhos de nobres”; “reproche” virou “censura”). Nas redes sociais, ocorrem manifestação de toda ordem, e até petições contestando o endosso do Ministério da Cultura.
A coordenadora do projeto destaca que “o foco é a doação de livros para pessoas que não tiveram oportunidade de estudar, constantemente excluídos do acesso à cultura”. Na matéria citada, a discussão suscitada é uma disputa entre o purismo e a democratização da leitura.
As adaptações de textos clássicos é algo comum, mas a proposta divide escritores e acadêmico. Segundo a escritora e doutora em literatura brasileira, Noemi Jaffe, entrevistada para a matéria, “quando você adapta uma obra para adequá-la a um novo gênero, como uma HQ, tudo bem. Mas, no caso de ‘O Alienista’, o formato é o mesmo, mas a linguagem foi sequestrada. A literatura não é só conteúdo, é principalmente linguagem”.
Segundo a escritora Lya Luft, não é preciso ser gênio para ler um romance de Machado de Assis, “nem é necessário traduzir os termos e frases mais difíceis para um linguajar coloquial: basta colocar no fim do livro, como já vi ser feito, um conjunto de verbetes explicando os termos menos usados, como num minúsculo dicionário. O leitor aprende, cresce, instrui-se, e, mesmo que não vire leitor de clássico, terá uma ideia do que o país já produziu neste sentido”.
Enquanto o mundo literário e acadêmico debatem em variadas opiniões, resta ao bibliotecário inserir as obras na coleção da biblioteca, e reuni-las no catálogo por meio do estabelecimento dos relacionamentos bibliográficos. Como na equipe do projeto literário não deve haver bibliotecário, a preocupação com a clareza dos elementos bibliográficos e sua recuperação pelo público leitor fica em plano secundário, se ficar.
Assim, a questão até atinge as bibliotecas, pois a forma como o recurso for editado pode gerar dificuldades de recuperação para o usuário. Se na fonte principal da obra ou mesmo na sua editoria não constar menção clara ao leitor de que se trata de adaptação, isto obriga o bibliotecário definir inclusões de distinção e esclarecimento por meio da descrição e controle da autoridade.
Imagine a situação de um vestibulando que, precisando ler uma obra de Machado de Assis para o vestibular, o busque em uma biblioteca, e por uma falta de clareza na descrição, ele acabe lendo uma adaptação sem saber que não é a obra original. E se isto lhe causar prejuízos escolares. O bibliotecário que faltou com a informação bibliográfica pode ser responsabilizado? Bem, o catalogador que se cuide para não engolir em seco reclames sobre o recurso.
Outra situação é em relação ao título da obra adaptada. E se ela mantiver intocável o mesmo título da obra original (o que pode ser provável), o catálogo pode se tornar um repositórios de registros enganosos ao usuário, caso o catalogador não adote critérios de distinção. Mas será que o código de catalogação oferece critérios suficientes para clareza e distinção entre obras originais, adaptadas ou similares? Se isto se tornar uma tendência editorial para a literatura dos clássicos brasileiros qual o impacto para a atividade catalográfica? Pode ser muito, ou pode ser nenhum. Este texto, na verdade é sobre uma situação hipotética. Certamente, o citado projeto trará na produção do livro todos os dados bibliográficos necessários para perfeita descrição e informação do leitor, ou, no mínimo, notas explicativas do editor.
Entretanto, utiliza-se das discussões para abordar a questão das obras adaptadas na representação descritiva. De início, importa saber o que é uma adaptação.
Ao buscar no glossário da AACR2r, tem-se o termo relacionado ao aspecto da música e definida como “obra musical que representa uma alteração de outra obra (por exemplo, transcrição livre), ou parafraseia partes de várias obras ou o estilo usual de outro compositor, ou, ainda, que se baseia em outra música (por exemplo, variações sobre um tema)”. Entende-se que adaptação é alguma modificação inserida no conteúdo original e que gera um novo conteúdo.
A RDA apresenta, no apêndice J, as orientações gerais sobre o uso de designadores de relacionamento para especificar as relações entre obras, expressões, manifestações e itens, além das listas os indicadores de relacionamento usados para essa finalidade. Neste item, a regra J.3.2 (relacionamentos de expressão derivadas), define a adaptação como a expressão de uma obra que modifica a fonte de origem para uma finalidade, uso ou meio diferente daquela para o qual foi originalmente destinada.
Ao pesquisar o termo em um léxico, têm-se definições inseridas sob vários contextos. No âmbito de uma definição mais geral, adaptação é uma ação ou efeito de adaptar. Um verbo com sentido de acomodar ou ajustar uma coisa à outra. O termo apresenta diferentes definições que dependem daquilo a que é aplicado. No caso de uma obra artística ou científica, o conceito de adaptação é compreendido como a adequação da obra para publicação ou divulgação a um público diferente do inicialmente pretendido, ou através de uma forma diferente do original. (Fonte: Conceito.de).
Bibliotecários lidam com adaptações no tratamento técnico de seus recursos bibliográficos. No caso das obras adaptadas de Machado de Assis e José de Alencar, ou qualquer outro escritor brasileiro ou estrangeiro, os procedimentos aplicados são determinados pela AACR2, que é o código em uso no Brasil.
Em relação a definição do ponto de acesso principal para obras nesta condição, a regra 21.10 A (adaptação de texto), recomenda elaborar entrada de uma paráfrase, uma nova redação, uma adaptação, ou versão em outra forma literária para o adaptador. Se o nome do adaptador for desconhecido, a entrada será pelo título. Uma entrada secundária será elaborada para a obra original. Se houver dúvidas quanto a obra ser ou não uma adaptação, deve-se estabelecer entrada para a obra original.
Neste ponto há o questionamento para o caso do editor omitir tratar-se de adaptação ou o nome do adaptador, mantendo apenas o nome do autor da obra original. Como mencionado, este texto é sobre questão hipotética, e numa hipotética situação editorial, adota-se o exemplo:
Memórias Póstumas de Brás Cubas / de Machado de Assis; adaptado por Joca Reines Terron.
Entrada principal: 100 $aTerron, Joca Reines $eadaptador
Entrada secundária: 700 $aMachado de Assis $tMemória Póstumas de Brás Cubas
A AACR2 recomenda que na descrição da obra adaptada, aplique-se a regra 2.7B2 (para livros), com a redação de notas sobre o fato do texto ser uma tradução ou adaptação, a não ser que tais aspectos apareçam claramente no resto da descrição. Exemplo:
Se na descrição: A Missa do Galo / adaptado por Santiago Nazarian.
Então a nota: Adaptação de: A Missa do Galo / Machado de Assis
Mas se o título da adaptação se mantém igual ao título da obra original sem nenhuma outra informação sobre o título, usuário pode ter dificuldade com a identificação da obra que deseja, ou sobre qual é a original e qual é a adaptação. Ao buscar pelo título, uma relação lhe será mostrado, como no exemplo:
Missa do galo
Autor: Assis, Machado de; Schmidt, Afonso
Editora: Furuno
Ano: 2006
Missa do galo
Autor: Assis, Machado de
Editora: Cortez
Ano: 2006
Missa do galo
Autor: Secco, Patrícia
Editora: Releitura
Ano: 2014
Missa do Galo
Autor: Assis, Machado de; Nazarian, Santiago
Editora: Fundação Leitor
Ano: 2014
Missa do Galo
Autor: Assis, Machado de
Editora: José Olympio
Ano: 2014
Missa do Galo
SubTítulo: variações sobre o mesmo tema
Autor: Assis, Machado de
Editora: Summus
Ano: 2014
Certamente, incluir nota é importante, mas se não for visível e clara para o usuário, será de pouca serventia. Como alertá-lo? No caso do AACR2, a regra 1.1E6 orienta para a situação na qual o título principal necessita de algum esclarecimento. A ISBD – Edição Consolidada, indica a regra 1.3.3.2 no caso do título ser incompleto ou ambíguo, com a informação complementar retirada do conteúdo do recurso. Nestes casos, deve-se fazer um acréscimo sucinto como outras informações sobre o título, na língua do título principal. Assim, para o caso das adaptações de uma obra, um acréscimo pode ser útil, por exemplo:
Missa do Galo
SubTítulo: [adaptação]
Autor: Nazarian, Santiago; Assis, Machado de
Editora: Fundação Leitor
Ano: 2014
Na RDA, a regra 6.27.1.5 (Adaptações e Revisões), especifica que se uma pessoa, família ou entidade corporativa é responsável por uma adaptação ou revisão de uma obra anteriormente existente, que altera substancialmente a natureza e o conteúdo desta obra, e a adaptação ou a revisão é apresentada como uma obra de pessoa, família ou entidade, o ponto de acesso deve ser elaborado, representando a nova obra. Há exceções, mas nada que se refira diretamente à hipotética situação projetada.
Nazarian, Santiago.
A Missa do Galo / Machado de Assis.
Uma adaptação de Nazarian da obra de Machado de Assis.
É feita observação se a obra for simplesmente apresentada como uma edição da obra anteriormente existente, deve ser tratada como uma expressão dessa obra. Neste caso, usar o ponto de acesso, representando a obra previamente existente. Entretanto, a proposta do projeto literário brasileiro será desenvolver uma adaptação dos clássicos.
Em relação à descrição da obra adaptada, diferente da AACR2, a RDA não prescreve possibilidade de acréscimo complementar ao título, aspecto só possibilitado para recursos cartográficos e imagens em movimento (2.3.4.5 e 2.3.4.6). Mas oferece procedimento na indicação de responsabilidade para a clarificação das funções.
Se a relação entre o título, indicação de edição, etc. e qualquer pessoa, família ou entidade coletiva determinada em uma indicação de responsabilidade não for clara, deve-se adicionar uma palavra ou frase curta, que explicite as relações (2.4.1.7), na AACR2 têm-se a regra 2.1F2. Porém, o catalogador deve indicar que tal informação foi tirada de uma fonte externa ao recurso (2.2.4). Exemplo:
A Pata da Gazela / José de Alencar; [adaptado por] Patrícia Secco.
Em resumo, na RDA, a escolha dos pontos de acesso não difere das determinadas na AACR2 para as obras adaptadas. Aliás, na AACR e ISBD as explicações são mais objetivas. Na descrição da manifestação da obra, a AACR apresenta alternativas mais explicitas ao catalogador. A RDA não coloca isto claro, mas dá alternativa para determinar as funções na indicação das responsabilidades. Ademais, tanto a AACR2 e ISBD, quanto a RDA indicam as notas como espaço de inclusão de esclarecimentos sobre o recurso descrito.
Diferente da AACR2, a RDA é um conjunto de instruções de normas baseadas nos modelos conceituais FRBR e FRAD, que moldaram sua estrutura descritiva e de definição dos controles de autoridades. O conceito atual da atividade catalográfica tem foco no usuário. As necessidades dos usuários são definidas em termos de tarefas executadas na realização de buscas e utilização dos catálogos bibliográficos. Essa tarefas definidas pelo FRBR, são:
Encontrar |
Entidades que correspondem aos critérios de busca formulados pelo usuário (localizar tanto uma única entidade, quanto um conjunto de entidades). |
Identificar |
Uma entidade (saber se a entidade descrita corresponde a procurada, ou distingui-la entre outras com características similares) |
Selecionar |
A entidade que atenda a necessidade do usuário em termos de conteúdo, suporte, etc. ou recursar as inadequadas. |
Obter |
Acesso à entidade descrita. |
Os modelos conceituais baseiam-se na análise detalhada dos dados bibliográficos e de autoridade. A estrutura descrita, além de permitir a compreensão do universo bibliográfico, altera a perspectiva da atividade catalográfica ao projetar os dados bibliográficos pelo ponto de vista do usuário (Olivier, 2011). Independentemente de o catalogador estar utilizando a RDA, ou seguir no uso da AACR2, o entendimento desta perspectiva é que deve nortear o seu trabalho. O catálogo bibliográfico não pode impor dificuldades às tarefas do usuário, pois é orientado para ele.
Se é bom ou ruim a decisão de tornar primário os texto dos clássicos literários brasileiros, esta é uma discussão em outra esfera, dos acadêmicos e literatos. Em primeiro plano fica a nossa responsabilidade de separar o joio do trigo, sem pretender ameaçar ou substituir a obra original por sua versão, ou vice-versa. Nosso papel é o de fixar os relacionamentos entre a obra original e suas edições, com as suas adaptações e versões, identificadas de forma clara para o público leitor da biblioteca.
Recorda-se que este texto desenvolve-se sob hipóteses. Espera-se, que independe do debate de fundo sobre adaptar ou não os clássicos, os editores tenham a preocupação de informar os elementos bibliográficos que permitam ao leitor distinguir a obra adaptada de seu original. E, que o catalogador atente para esses acontecimentos, de modo a oferecer por meio da descrição e dos pontos de acesso, da fixação dos relacionamentos bibliográficos existentes, a opção de escolha ao seu usuário.
Indicação de leitura:
Conceito.de. Adaptação - O que é. Disponível em: http://conceito.de/adaptacao#ixzz31p0Xcr31
Luft, L. Aulas de mediocridade. Veja, edição 2374, ano 47, n.21, p.24, 21/05/2014.
Machado pra burro. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 10 de maio de 2014. Caderno Ilustrada, p. e1.
Oliver, C. Introdução à RDA: um guia básico. Brasília, DF : Briquet de Lemos/Livros, 2011.