AO PÉ DA ESTANTE


AO PÉ DA ESTANTE... COM UM ESCRITOR BISSEXTO


Um livro que, de tão gostoso, deve ser lido aos poucos, "homeopaticamente", para ser mais bem degustado, é o Na rolança do tempo, autobiografia de Mário Lago, nosso talentoso ator de teatro, cinema e TV, teatrólogo, radialista, poeta e compositor. Como ele mesmo gostava de se confessar, considerava-se um escritor bissexto, talvez porque esta não fosse a atividade que mais o apaixonava. No entanto, além destas suas memórias, deixou-nos numerosos títulos, como por exemplo o primeiro deles, 1o. de abril - estórias de uma História, sobre as experiências como preso político e, mais tarde, Chico Nunes de Alagoas, ensaio sobre um repentista de cordel, para citarmos apenas duas de suas obras. Mário é autor ainda de inesquecíveis letras de músicas como Aurora, Amélia, Atire a primeira pedra, e de inúmeras comédias para o teatro de revista.

Mário Lago nasceu no Rio de Janeiro em 1911 e faleceu em 2002, também no Rio. Quando muito jovem morou em São Paulo até sair de casa, e sua longa vida foi plena de peripécias, marcadas por um temperamento crítico, corajoso e ao mesmo tempo bem-humorado. O mundo artístico o encantou de tal forma, desde seus 4 anos de idade, que na adolescência fugiu da casa paterna para seguir uma companhia teatral. Chegou a formar-se em Direito, mas os tribunais nunca despertaram seu interesse.

Neste seu Na rolança do tempo, em edição antiga, de 1977, distribuído pelo saudoso Círculo do Livro, por cortesia da Editora Civilização Brasileira, Mário nos conta suas memórias em ritmo de conversa e num tom tão descompromissado, que acaba por nos fazer cúmplices de suas aventuras e as de seus colegas, bem como das eternas vicissitudes da nossa História.

Com ele, por exemplo, o leitor passeia pela São Paulo dos primeiros edifícios e também pelo Rio da antiga Lapa, no auge do famoso e temerário Madame Satã. Na rolança do tempo nos mostra um ser humano criativo, generoso e irreverente, de rara inteligência e sensibilidade, voltado para as causas populares e politicamente afinado com a esquerda, onde militou a vida toda desde a época da faculdade. Foi sempre um apaixonado pela música popular e um profissional sério mas alegre e comunicativo, sem papas na língua e pronto a encarar quaisquer desafios. O leitor que se aventurar com Mário Lago por estas páginas terá a seu dispor um mundo de informações e será muitas vezes surpreendido por certas revelações bombásticas, que deixam a nu personagens importantes da história do Brasil a partir dos anos 30. Além disso, certamente dará muita risada e se emocionará com as atitudes inesperadas ou bizarras ou inusitadas, do próprio autor e de seus companheiros de vida artística.

Nos versos que iniciam o primeiro e o segundo capítulos - este intitulado Eu, Lago sou - como é do seu feitio o autor já nos entrega saborosamente o "mapa da mina", ou seja, o roteiro e o tom de seu texto:

"Não é a vida que eu queria nem o mundo o que sonhei. Vida de paz e alegria num mundo de uma só lei. Mas me ensinaram, e guardei, que após um dia há outro dia. E rindo como o poeta, que o riso é minha saúde, fiz da alegria uma meta, fiz da esperança virtude."

"De medo não sei notícia, vaidade não faz meu jeito. Erro, sim, mas sem malícia, que nasceu morto o perfeito. Só uma vaidade eu aceito: dar certo medo à polícia. Mas no dito não se veja orgulho certo ou pretenso. Não medo do homem que eu seja, e sim daquilo que penso."

Certamente, um livro para ser lido e depois relido muitas vezes!


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SARASVATI

Nascida e criada na Índia, estudou na Universidade de Madras, morou em Goa (onde aprendeu português) e viajou pelo mundo em busca de autores e compositores diferentes. Apaixonada pela música brasileira, fixou-se em São Paulo, pela convivência pacífica entre religiões as mais diversas.