ALÉM DAS BIBLIOTECAS


MULHER-SOLIDÃO-PANDEMIA

Impermanência

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[...] toda vez que eu estou presa àquela falsa sensação de segurança que o apego traz, eu lembro que um dia estava à beira da praia observando uma mãe com um filho brincando, assim, à beira do mar. Eles tinham um balde e com o maior esforço de fazer uma escultura perfeita. Cada vez que conseguiam, vinha a onda e derrubava.

E aí eles riam e recomeçavam.

E por terem aprendido a construir tudo da primeira vez eles não tinham medo de começar de novo.

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Autor desconhecido. Texto divulgado graças a Allan Dias Castro

 

Assombro muitos ou poucos (agora, raramente vejo alguém e as conversas limitam-se às redes sociais), quando digo que estes mais de longos 100 dias de enfrentamento à Covid-19, nos quais me mantive totalmente só, pouco mudaram minha vida. Afinal, perdi a noção exata de há quantos anos vivo num mundo que construí à parte por imposição da sociedade, que repudia sem palavras, de forma silenciosa, os que envelhecem. Dias, meses e anos!

A princípio, a pandemia me pareceu algo transitório e finito. Repetindo um poeta qualquer, perdido num espaço qualquer, pensei: Ora, “se tudo que a gente planejou tivesse dado certo, alguns de nossos melhores momentos não teriam acontecido.” Breve, voltaria ao abrigo para idosos, onde ajudo a cada semana; reveria a turma querida do cineclube; iria ao supermercado, livre e faceira; visitaria algum amigo; continuaria meus estudos, como aluna especial numa pós-graduação qualquer; escreveria, escreveria, escreveria... Ledo engano. Minhas pobres certezas foram ao ar. Planos se desmancharam como brumas tristes em noites tristes e escuras sem luar. É preciso deixar o tempo comandar. É preciso deixar o tempo decidir quando tudo se transmutará numa história que soará como exagero para as gerações que virão e escutarão cansados de escutar.

Sem choramingar, agradeço aos céus a possibilidade de ler, escutar música e escrever. Choramingando, sinto falta dos filhos e dos netos queridos em outras cidades. Nenhuma possibilidade de viajar. Voos restritos. Aeronaves plenas de risco de contaminação. Sofro pelas famílias dos que se foram. Sofro pela significativa parcela da população desassistida e desabastada, num período que expõe as desigualdades de um país, que mesmo em época de pandemia, não se livra dos desonestos de “colarinho branco” e dos bandidos pé de chinelo, ambas as categorias perigosas e danosas ao país e a seu povo.

Assisti aos noticiários. Me surpreendi com a expansão vertiginosa do coronavírus mundo afora e no Brasil. Me surpreendi em saber que há brasileiros que morreram antes de nascer: são os nossos irmãos que sobrevivem sem qualquer documento, nem mesmo a certidão de nascimento. Os direitos sociais mínimos lhes são negados. As aldeias indígenas estão se contaminando e, ao que parece, não são prioridade para um governo instável e sem controle. Afinal, no país, além da praga do vírus e de todos os males por ele causados, de ordem psicológica, social, econômica, educacional e em todos os segmentos da vida da população, aliados ao colapso que caracteriza o sistema público de saúde, o presidente (assim mesmo, p minúsculo) e capitão reformado Jair Messias Bolsonaro tem protagonizado à parte um cenário de desordem e de inquietação, o qual dispensa qualquer comentário.

Porém, numa prova inconteste de que o ser humano é capaz de ressignificar seu cotidiano, em meio a tantos percalços, surgiram por todos os lados lives das mais diferentes naturezas. O que dizer dos memes, dos vídeos, das orações, das novenas, das fake news que dispararam numa corrida insana, das piadas grosseiras ou ingênuas que encheram ou enchem nossas caixas eletrônicas de correspondência? 

Os velhos nunca estiveram tanto tempo na linha de frente. No meu caso, nenhum medo da pandemia. Muito medo das carrocinhas que catam os velhos e as velhas (risos!). Nunca me senti tão velha no alto dos meus belos e bem vividos 72 anos. Anos transcorridos, e, de repente, a pandemia traz à tona a anciã em que me transformei. Resisto e, quando muito, admito que embalo, com carinho, a velhice instalada em minha vida. Tornei-me uma mulher-coruja-silenciosa ou, frente ao coronavírus, uma mulher-solidão-pandemia. Se antes, olhos aguçados e movimentos rápidos, hoje, olhos cada vez mais arregalados, de onde escoam lágrimas invisíveis e permanentes diante da dor dos que têm menos do que eu.

Volto à capacidade do homem de inventar, reinventar e se reinventar. O que dizer das peças publicitárias, algumas das quais sagazes e inteligentes, recorrendo, às vezes, à figura de crianças? O reconhecimento aos profissionais da área de saúde em geral, incluindo enfermeiros, técnicos de enfermagem, cuidadores, também me dá conforto, sobretudo, quando a eles, agregamos outros trabalhadores essenciais ao nosso cotidiano, em especial, neste momento de pandemia. Falo dos entregadores (delivery); carteiros; policiais de diferentes categorias; bombeiros; técnicos de manutenção de serviços públicos e privados; servidores funerários; porteiros; diaristas; motoristas de plantão; coletores de lixo etc. Em tempos de paz, são eles bravamente esquecidos! 

No entanto, como, assumidamente, sou um ser humano que prefere o sim ou o não, e odeia, com todas as forças, o quase ou o talvez, a falta de perspectivas me entristece. Refiro-me ao fato de que, em meio à avalanche de impactos trazidos pelo vírus, não sabemos quando ele partirá, não importam as previsões sem previsão que se espalham por aí. Desconhecemos, com segurança, as formas para sua cura rápida e/ou para paralisar sua expansão. As vacinas tardarão. É inevitável. Cedo, muito cedo, aprendi que nada é para sempre. Em oposição, tudo pode ser de verdade e, no caso da Covid-19, uma verdade cinza ou incolor, triste e trágica por tantas vidas ceifadas e famílias desfeitas. Mas ela partirá!

Dona Covid, nada mais! Só queria saber de ti! Nada mais nada menos. Só queria saber quando tu partes...

Só queria saber quando, como a mãe e o filhinho [da epígrafe], podemos recomeçar sem qualquer medo até porque estar vivo é ser capaz de viver doces ou amargas surpresas.


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”