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O PATRONO DOS BIBLIOTECÁRIOS E O PRECONCEITO RACIAL

No Brasil, o dia 12 de março é dedicado à profissão de Bibliotecária. Pode não ser feriado ou ponto facultativo no país, mas é uma data especial para os profissionais da informação.

Apesar de não haver interrupção das atividades, a data costuma ser comemorada pelas entidades de biblioteconomia, bibliotecas e a comunidade profissional, em geral. Oportunidade na qual é possível confraternizar e homenagear a Biblioteconomia, a profissão escolhida por livre vontade e a paixão. Paixão de Ser Bibliotecário(a).

O dia do Bibliotecário foi fixado pelo artigo 4º do Decreto nº 84.631, de 12/04/1980, ao dispor que a data será comemorada em todo o território nacional.

A escolha da data foi homenagem ao editor, escritor, poeta, humorista, teatrólogo ou revistógrafo, publicitário, compositor, engenheiro e bibliotecário Manuel Bastos Tigre, um profissional de múltiplos talentos, nascido em 12/03/1882, na cidade de Recife (Pernambuco). 

Engenheiro de formação, em 1906, ele realizou um período de aperfeiçoamento em eletricidade nos Estados Unidos. Oportunidade em que conheceu o bibliotecário Melvil Dewey, criador do Sistema de Classificação Decimal – CDD. Deve ter havido uma grande empatia de ideias entre os dois, pois o encontro foi decisivo na sua vida profissional. A ponto de, em 1915, aos 33 anos de idade, deixar a área da engenharia para exercer uma atividade nascente no país, a Biblioteconomia.

É considerado o primeiro bibliotecário concursado do Brasil. Prestou concurso para o cargo no Museu Nacional (Rio de Janeiro), sendo aprovado com a monografia “A aplicação do Sistema de Classificação Decimal, na organização lógica dos conhecimentos, em trabalhos de Bibliografia e Biblioteconomia”. Ocupou a função até 1945, quando se transfere para a Biblioteca Nacional, onde fica até 1947. Posteriormente, assume a direção da Biblioteca Central da Universidade do Brasil. Seu falecimento ocorreu em 2 de agosto de 1957.

No encômio dedicado ao Patrono é comum destacar que:

Manuel Bastos Tigre trouxe grande contribuição social e cultural para o Brasil, por isso, nada melhor do que a data de seu nascimento para celebrar o dia daqueles que comungam o mesmo objetivo: disseminar informação e conhecimento a fim promover o desenvolvimento cultural e social do país.

Mas será que o Patrono dos Bibliotecários merece relevante destaque pela comunidade?

Em tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, no ano de 2018, a doutora Maria Margarete dos Santos Benedicto aborda as relações entre humor e racismo na cidade do Rio de Janeiro.

Destaca a ideologia do branqueamento que influenciou, de modo decisivo, as representações dos negros e de seus descendentes. Influência refletida em textos, poesias satíricas e nas ilustrações impressas nas páginas das revistas humorísticas do período da belle époque aos anos 1920, no Rio de Janeiro.

Ressalta como a elite política e a intelligentsia brasileira, se debruçavam sobre a questão do “problema negro”, pois a “nova sociedade” republicana que surgia necessitava ser reconhecida como branca e fugir da cor preta.

A abordagem pelo humor buscou historicizar as representações dos conflitos políticos, econômicos, culturais e sociais motivados pelo contexto da belle époque carioca. Também pelas transformações por ela originadas, como as questões ligadas à nação, à identidade nacional e à política de branqueamento social.

A pesquisadora desenvolveu a sua análise e reflexão, a partir da investigação dos trabalhos de Antônio Torres (1885-1934), Emílio de Menezes (1866-1918) e da revista humorística D. Quixote (1917-1927).

Por meio da revista, propriedade e direção de Manoel Bastos Tigre (1882-1957), foi possível apontar como os preconceitos estavam entrelaçados e inspiravam a produção dos autores citados.

De certa forma, esses trabalhos não só propagaram, mas também perpetuaram os preconceitos no imaginário da sociedade brasileira. Nesse sentido, a pesquisadora sustenta que o humor é, simultaneamente, parte e uma reflexão sobre a estrutura social que habita.

Pelo estudo acadêmico, temos uma outra percepção sobre a pessoa de Bastos Tigres. Uma percepção, que os louvores bibliotecários não ressaltam e, ao que parece, apesar dos registros factuais, ainda é desconhecida para a maior parte da comunidade bibliotecária.

Na tese é dedicado um capítulo específico a Bastos Tigres, dividido em dois tópicos: 1) “Manoel Bastos Tigre e toda a verdade dita a sorrir”; 2) “Bastos Tigre, o humorista que silenciou o riso”.

No primeiro tópico, apresenta-se uma biografia e análise do trabalho literário de Bastos Tigres, com ênfase na sua função de proprietário e editor da revista “D. Quixote”. Nesta análise descritiva, a pesquisadora comenta que:

Nas páginas da D. Quixote, encontramos fontes que nos deram acesso a uma vasta diversidade de informações econômicas, políticas e culturais que expressam o reflexo do passado escravista de nosso país e a representação do negro e seus descendentes em diversos setores da dinâmica social da cidade.

A revista, dentro do contexto de outras publicações da época, serviu de expressão para as ideias relacionadas à pseudociência da eugenia racial. Ideias essas, que recrudesceram o discurso da melhoria da raça, e que foi representada tanto nas charges, quanto nas caricaturas publicadas.

Segundo a pesquisadora, o racismo exposto na revista, em enquetes humorísticas tinha a “intenção” de provocar o riso. A ideia disseminada do branqueamento social, visava dissolver a questão sobre a cor da pele entre os brasileiros e, assim, atenuar a discussão racial.

No segundo tópico, a abordagem biográfica analisa o papel de promotor cultural e artístico de Bastos Tigres. Ele era um compositor e teatrólogo preocupado com os problemas dos direitos autorais.

Neste sentido, extrai-se um fato desabonador sobre Bastos Tigres, enquanto presidente da Sociedade Brasileira de Autores de Teatro – SBAT, no período de 1927-1928.

Na época, a Companhia Negra de Revistas fazia grande sucesso em cidades brasileiras, como Recife, Salvador, Porto Alegre, entre outras. Momento em que surgem comentários, pela imprensa, da conquista de um contrato para excursionar por países da América do Sul e Europa (Argentina, Chile, Uruguai, Portugal, Espanha, França e Alemanha). Fato que gerou reações negativas na elite cultural.

Entra em cena a SBAT, então reconhecida representante do meio artístico. Em reunião promovida pelo seu Conselho Deliberativo e presidida por Bastos Tigre, em 05/07/1927, no Rio de Janeiro, deliberou:

O Sr. Bastos Tigre participa que, chegando ao seu conhecimento que os empresários Jaime Silva e Avelar Pereira pretendem levar a Argentina e Uruguai a Companhia Negra de Revistas, o que redundará em descredito do nosso país, a SBAT, como lhe cumpre, irá agir energicamente a fim de impedir a consumação desse atentado aos foros da nossa civilização.

Para encerrar a questão, durante a reunião, foi nomeada uma comissão para tratar diretamente com o dono da companhia, a desistência da empreitada. Em caso de insistência pela companhia teatral, a SBAT agiria por outros meios eficazes. Entretanto, a pressão teve sucesso, com a desistência, pela Companhia, de excursionar ao exterior.

Segundo a Dra. Benedicto, sobre as “ameaças” feitas pela SBAT à Companhia Negra de Revistas, teve o uso do Projeto de Legalização do Fundo de Patrocínio de Recursos, do governo federal; assim como, a Lei de Direitos Autorais aprovada em 1928. Ambas as legislações apoiadas pelo então deputado federal Getúlio Vargas.

A mensagem transmitida pela SBAT foi: “nos desobedeça e não conseguirão patrocínio para futuras peças”; bem como, “poderemos dificultar os tramites burocráticos dos direitos autorias, logo, impediremos vocês de trabalharem”.

Além de outros meios que a SBAT poderia se utilizar, como contato com o Ministério das Relações Exteriores para dificultar os tramites legais da viagem e a consequente execução da turnê.

Apesar da qualidade do trabalho, apresentado pela Companhia Negra de Revistas, ela foi impedida de realizar a turnê internacional. Impedida, justamente, por uma entidade que deveria garantir os diretos dos profissionais de teatro e não os impedi-los de trabalhar, apenas por serem pretos.

Outro fato, decorrente deste acontecimento, foi a extinção da Companhia. Acontecimento, sintetizado pela Pesquisadora: “O humorista Bastos Tigre silenciou o riso preto”.

Uma característica, do racismo de Bastos Tigre, era a sua prática dissimulada. Neste aspecto, é destacado que a revista D. Quixote era mantida por anúncios publicitários que, na sua maioria, era da autoria do editor-proprietário. Assim, ele publicou aquilo em que acreditava e corroborava.

Noutro aspecto, o seu racismo dissimulado passa a ser evidente na presidência da SBAT. Ele representava uma instituição que ao invés de proteger e incentivar a classe artística, a segregava. Uma entidade que impedia, quando não dificultava, o trabalho de artistas negros por considerá-los prejudiciais à imagem do país, ainda que associados. Talvez, ele pudesse ter feito a diferença, até por ser bibliotecário. Bibliotecário em um centro de estudos, com acesso a informações e conhecimentos universais.

Na tese é observado que Manoel Bastos Tigre, dentre as diversas atividades exercidas, gostaria de ser lembrado como poeta e humorista. Justifica esta percepção, pela luta travada em prol da profissionalização da literatura, via entidade de classe. Por três vezes, candidatou-se à Academia Brasileira de Letras, sem êxito. Em um homem de tantas habilidades, convivia a arte, a alegria e a emoção, porém permeados do preconceito.

O preconceito racial descrito, do Patrono dos Bibliotecários, embora individual, alerta para o viés contido nos instrumentos e processos biblioteconômicos.

Enquanto profissionais criadores de representações, devemos ter a consciência das nossas próprias visões de mundo (históricas, culturais, raciais, de gênero e religiosas). Neste sentido, trabalhar na identificação de onde essas visões podem excluir outras experiências humanas.

Também, compreender o viés inerente aos padrões e protocolos aplicados em dados são uma competência central em nosso trabalho. O desenvolvimento de padrões, protocolos e processos inclusivos de dados ou de boas práticas é uma competência a ser desenvolvida e aprimorada durante a carreira profissional.

No passado, por exemplo, a atividade catalográfica podia ser tratada como uma prática mecânica e dogmática. Concepção devida as suas "regras", vocabulários controlados e sistemas de classificação, aplicados quase que mecanicamente.

Na atualidade, há uma preocupação global de desenvolver processos meta cognitivos que possibilitem avaliar criticamente o impacto que os nossos próprios vieses culturais e técnicos possam gerar.

Certamente, há bibliotecários que passaram pelo desconforto de serem obrigados a aplicar um determinado termo, na indexação de um item. Apesar de reconhecerem o termo como problemático para o público.

Embora os profissionais debatam a ética há décadas; também deve haver uma luta contínua contra os preconceitos. Preconceitos que perdurem ou se encontrem dissimulados em nossos padrões e protocolos, e mesmo em nossa ideologia.

Preocupação relevante, principalmente, em uma época em que as bibliotecas compartilham dados, e os sistemas de descoberta importam dados de múltiplas fontes. Aspectos que impõe a necessidade de aderir aos padrões internacionais.

Por fim, ao mesmo tempo que precisamos policiar nossas crenças e valores, aprimorar nosso código de ética, fiscalizar nossos padrões e protocolos para incluir e não segregar pessoas; também precisamos promover a igualdade, a justiça social e os direitos humanos no acesso à informação e ao conhecimento. Como consta em nosso juramento profissional:

“Prometo tudo fazer para preservar o cunho liberal e humanista da profissão de Bibliotecário, fundamentado na liberdade de investigação científica e na dignidade da pessoa humana"

Na oportunidade, convém lembrar que nenhum símbolo é irremovível. Recorde-se o caso do bibliotecário Melvil Dewey. Ele possui uma história de preconceitos relacionada com racismo, antissemitismo e assédio sexual. Por conta disso, teve retirado o seu nome da principal honraria profissional concedida pela ALA. Seria esse o caso do Patrono dos Bibliotecários Brasileiros?

Indicação de Leitura:

BENEDICTO, M. M. S. Quaquaraquaquá quem riu? Os negros que não foram... A representação humorística sobre os negros e a questão do branqueamento da belle époque aos anos 1920 no Rio de Janeiro. 2018. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-30072019-150411/pt-br.php

MELO, D. A importância do discurso da ética na Biblioteconomia: Bastos Tigre um exemplo de ética profissional. InfoHome, setembro 2012. Disponível em: https://ofaj.com.br/textos_conteudo.php?cod=417

MENEZES, R. Bastos Tigre e la Belle Époque. São Paulo: Edart, 1966.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.