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O SEPULTAMENTO DO MARC CHEGOU! E AGORA CATALOGADORES?

A Library of Congress (LC) anunciou que, a partir de 1º de julho de 2022, todos os seus sistemas catalográficos serão alterados do formato MARC (MAchine-Readable Cataloging), para o BIBFRAME (Bibliographic Framework Initiative).

Os registros bibliográficos, codificados em MARC não serão mais criados ou disponibilizados pela LC. Já, os registros existentes serão armazenados e compartilhados como triplas RDF.

O RDF (Resources Description Framework) é um arcabouço para representar informações na Web. Permite construir afirmações sobre recursos, que podem ser qualquer “coisa” (concreta ou abstrata). Por exemplo, uma determinada empresa, uma pessoa ou uma página Web são considerados recursos. Da mesma forma, um sentimento ou uma cor. Uma afirmação RDF consiste de três elementos (tripla) e tem a seguinte estrutura: <sujeito> <predicado> <objeto> para expressar uma relação entre dois recursos, como a tripla de um livro:

<Livro> --> <título> --> <Biblioteconomia brasileira>

Simultâneo ao anúncio de encerramento do Formato, a OCLC divulgou seu plano de transformar o WorldCat de um banco de dados baseado em MARC, para um triplestore baseado em BIBFRAME. A ideia é criar um tipo de banco de dados gráfico que armazena os dados como uma rede de objetos e usa inferência para descobrir novas informações baseadas nas relações existentes. Sua natureza flexível e dinâmica permite vincular diversos dados, indexá-los para busca semântica e enriquecê-los por meio da análise de texto para construir gráficos de conhecimento.

A OCLC também irá desativar o seu serviço cliente de catalogação: Connexion, a partir de 1º de julho de 2022, o substituindo pelo Sinopia para permitir que os membros da OCLC criem e gerenciem metadados bibliográficos, agora nativo do BIBFRAME.

As comunidades aderentes ao BIBFRAME e ao linked data saudaram o anúncio como o “apogeu” de uma década de desenvolvimento do modelo. Com o anúncio, é destacado o êxito do investimento financeiro e de horas dedicadas ao desenvolvimento de novos padrões e de processos conectores para a catalogação.

Quando os usuários realizarem suas pesquisas em sistemas de dados bibliográficos, serão apresentados não mais às listas de recursos informacionais, mas para blocos de informações e conhecimentos. Blocos também de links para “coisas” com mais links para outras “coisas” sobre “coisas” com mais links para outros links de “coisas”, com links para mais “coisas” ainda com links para “coisas” (informações).

Esse conceito de “coisa” como informação pode ser encontrada no texto de Michel Keeble Buckland, em seu artigo “information of thing” (Journal of the American Society for Information Science. v.42, n.5:351-360, 1991). Ele destaca que a informação registrada, é em si intangível, porque é algo expresso, descrito ou representado de alguma forma física.

O universo bibliográfico refere-se a todo o conhecimento registrado (escritos e documentos registrados). Isso inclui as “coisas” que são representadas em bases de dados ou registros bibliográficos, e “coisas” encontradas em bibliotecas. A palavra “coisas” tem sido usada como um termo de valor neutro para expressar todo dado, informação e conhecimento registrado no âmbito do universo. Assim, “coisas” são informativas.

O sistema tradicional de descoberta existente em bibliotecas, projetado para conectar usuários aos recursos, tornou-se obsoleto das tecnologias computacionais e das transformações digitais. Os modelos conceituais suportados por novos sistemas ambientados ao contexto digital começam a habilitar processos de conexão dos usuários para tudo o que é significativo e de seu interesse.

Diante da descontinuidade dos formatos MARC, é comentado que Roy Tennant, autor do artigo premonitório de alguns anos atrás: “MARC must die” (MARC deve morrer!), finalmente foi ouvido. Consultado, sobre o comunicado da LC, comentou: “finalmente!". Ele começava a pensar que o formato poderia nunca morrer.

Lorcan Dempsey (OCLC Chief Strategist), observou que graças ao abandono completo do formato MARC em favor do BIBFRAME, a descoberta bibliográfica acontecerá em todos os lugares, mesmo quando o usuário não puder perceber o que está acontecendo em sua consulta.

A expectativa é que a experiência do usuário na sua descoberta bibliográfica, prometida pelo desenvolvimento do BIBFRAME e a aplicação do linked data, seja agora uma realidade. Ao invés de responder perguntas como: Onde posso conseguir este livro?

Os novos sistemas devem permitir que os usuários formulem questões como:

Mostre-me todos os recursos das autoras francesas e alemãs chamadas Maria, e que viveram no século XVIII, e publicaram em Berlim ou Paris. Indicar as autoras quem tinham cabelo ruivo ou castanho.

Resta uma questão pendente no processo deste acontecimento, ou seja, como bibliotecas menores e com menos recursos e/ou pouca experiência técnica local irão lidar com essa mudança. Isto se refere também à realidade de muitas bibliotecas brasileiras.

Em resposta sobre o problema, representantes da LC comentam desconhecer ou que não têm certeza sobre como agir. Neste cenário, discussões devem ocorrer, pois trata-se de situação delicada, com impacto para os serviços de tratamento bibliográfico, bem como sobre os usuários. Afinal, o AACR2 foi descontinuado a pouco tempo. Agora, o sagrado MARC com seus códigos secretos foi implodido.

Era fato que o nosso padrão básico de intercâmbio não atendia, como deveria, em um mundo digital e conectado. Era anacrônico diante do estágio tecnológico dos dispositivos computacionais e digitais. Porém, saliente-se que a descontinuidade não significa que os catalogadores estão em extinção, mas desafiados a aplicarem processos dinâmicos de trabalho na organização e tratamento dos recursos informacionais.

A própria LC havia admitido que os dias do MARC estavam de fato contados, e que trabalhava para desenvolver um substituto baseado em linked data. Entretanto, estava consciente da necessidade de uma transição a ser realizada pelas bibliotecas. É preciso agora começar a dar um primeiro passo que é planejar as mudanças, ainda que essas levem tempo.

Um aspecto desta situação de mudança forçada é o fato de o MARC ter sido uma realização genial na década de 1960. Roy Tennant destaca que quando o formato MARC bibliográfico foi criado, o grupo popular no mundo era os Beatles, e como premonição dos versos de um de seus sucessos:

Yesterday / All my troubles seemed so far away / Now it looks as though they're here to stay... (Paul Mccartney / John Lennon)

Sim, ontem todos os meus problemas pareciam tão distantes, agora eles vieram para ficar. Mas são problemas para estabelecer perspectivas de futuro.

Décadas atrás, os computadores eram grandes, complexos e caros. Era até ridículo pensar que um dia teríamos um em casa, quanto mais segurá-lo na palma da mão.

Embora a idade por si só não seja necessariamente um sinal de obsolescência tecnológica, veja-se o caso, por exemplo, do lápis de madeira, quanto melhorou nos últimos 50 anos.

A própria natureza do registro MARC (catalogação legível por máquina) é, até certo ponto, um anacronismo. Ele foi desenvolvido em uma época em que memória, armazenamento e poder de processamento eram mercadorias raras e caras. Agora são onipresentes e baratos.

Neste sentido, no início do moderno ILS (integrated library system), na década de 90, teria sido o momento ideal para trocar formatos. Isso não aconteceu por conveniência. Agora estamos atados à uma escolha única de uma tecnologia pouco familiar, para uso em futuro próximo.

Ocorre que o MARC sempre foi um padrão arcano. Nenhuma outra comunidade de informação faz uso deste formato ou algo parecido. Quando procuramos softwares para lidar com esses registros, estamos limitados ao nicho de mercado de fornecedores.

De sua parte, os fornecedores devem projetar sistemas que possam receber e processar registros no formato MARC. Enquanto isso, a indústria de tecnologia da informação, em geral, transfere a produção de seu sistema para o XML (Extensible Markup Language) como meio de codificar e transferir informações.

Tal movimento não significa que abandonamos os nossos sistemas existentes, por qualquer ferramenta de busca com reconhecimento de XML. Mas se redesenharmos nosso padrão de registro bibliográfico para usar essa linguagem de marcação, os fornecedores podem achar mais fácil e barato desenvolver os produtos de que precisamos.

A verdadeira razão é que as bibliotecas existem para atender às necessidades presentes e futuras de uma comunidade de usuários. Para fazer isso bem, é preciso saber fazer uso do melhor que a tecnologia tem a oferecer.

Com o advento da web, XML, computação em nuvem, algoritmos de inteligência e outros avanços tecnológicos, as bibliotecas podem se tornar organizações flexíveis e responsivas no atendimento público, ou não.

Se as bibliotecas mantiverem apego a padrões desatualizados, encontrarão dificuldades em atender as demandas, como o público espera e merece. Em ambiente social ou de negócio, o público certamente será acolhido por prestadores de serviços informacionais e empreendedores mais atentos.

Outro ponto crucial, neste cenário que se delineia para o campo da catalogação bibliográfica, refere-se a enorme pilha de dados legado e os zilhões de registros contendo todos os tipos de “coisas” fora do padrão, que as bibliotecas irão querer reter e migrar.

O pior de tudo, é milhares de bibliotecas, em todo o mundo, que se encontrem presas aos sistemas baseados em MARC e cujos fornecedores – se ainda estiverem no mercado – serem extremamente lentos para oferecerem suporte para o novo padrão, BIBFRAME. O mesmo vale para os cursos de biblioteconomia e as disciplinas de catalogação bibliográfica.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.