ALÉM DAS BIBLIOTECAS


MISTÉRIO DA MANSÃO ABANDONADA EM BAIRRO NOBRE DE SÃO PAULO

Há duas ou três semanas atrás, a mídia nacional, em seus vários formatos, sobretudo os meios televisivos exploraram, sem interrupção, o tema da mansão abandonada em bairro nobre da capital São Paulo, cuja moradora é uma senhora identificada como Margarida.  Em suas raras aparições em alguma das janelas do casarão, a mulher, de idade indefinida, sempre aparece com o rosto manchado com uma pomada branca. Acusada junto com o marido por escravizar serviçais na casa da família, à época, nos Estados Unidos da América, Margarida Bonetti conseguiu escapar das garras do Federal Bureau of Investigation, o célebre FBI norte-americano, enquanto o marido cumpriu a pena imputada, e ao que se sabe, o crime já está prescrito.

Na realidade, a casa antes suntuosa, que comporta 20 cômodos, foi literalmente invadida por autoridades sanitárias, médicos, assistentes sociais, detetives e outros profissionais no dia 5 de julho último, a pedido dos vizinhos. Como resultado, atestaram a lucidez da proprietária em meio a uma imundície indescritível. O máximo conseguido foi salvar dois ou três cães que ali viviam em condições deploráveis. Afinal, pelo menos até então, a mulher não cometeu qualquer crime em território nacional. Trata-se de vítima de uma síndrome ainda pouco conhecida, descrita pela primeira vez na década de 60. Sabe-se que decorre de outras patologias. Nunca está só e já consta do rol de enfermidades da Organização Mundial da Saúde, com a denominação de Transtorno de Acumulação ou Síndrome de Diógenes ou Disposofobia ou Hoarders ou Síndrome de Noé. Neste último caso, o acúmulo refere-se a animais, evidenciando a inter-relação entre o personagem bíblico e o transtorno.

Mais comum entre idosos e pessoas do sexo feminino, suas vítimas apresentam necessidade compulsiva de acumular coisas, objetos, animais, ultrapassando os limites do razoável, ao ponto de impedir o convívio com os demais pelo mau cheiro insuportável e por atitudes extremas que não permitem ajuda de quem quer que seja para limpar ou arrumar. Sua denominação mais comum – Síndrome de Diógenes – “homenageia” o filósofo grego Diógenes de Sinope (404 a 323 a.C.) ou “Diógenes, o Cínico”, que apregoava liberdade total diante da imposição de regras sociais, argumentando ser adepto do minimalismo radical, ou seja, pretendia possuir o mínimo de posses. Num gesto de recusa a qualquer dependência dos outros, usava um barril como casa, e a partir de então, começou a acumular coisas ao redor. 

Assim sendo, o epônimo terminou por se mostrar totalmente inadequado, pois os acumuladores nada têm de minimalistas. Em oposição, juntam de forma desordenada coisas inúteis e imprestáveis, e, então, o armazenamento perde sua função utilitária e específica. Por décadas, o Transtorno de Acumulação foi visto como vertente do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) sem constar como diagnóstico especificado na classificação de transtornos mentais como a Classificação Internacional de Doenças (CID) da OMS ou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Psiquiátrica Americana (APA).


                                  Fonte: Autor anônimo

Entretanto, na atualidade, não restam dúvidas de que evidências acumuladas nos últimos 20 anos sugerem que a Disposofobia apresenta diferenças em confronto com o TOC, apesar de classificada na esfera dos Transtornos Obsessivo-Compulsivos. O caso das pessoas sós, no sentido extremo do sentido, desperta atenção por vários motivos. Primeiro, o ambiente onde vivemos revela o que somos ou em sentido inverso, somos mais verdadeiros em nosso próprio ambiente. Nossa casa é onde expomos o que temos de mais belo ou o que temos de mais repulsivo. Ao contrário da dona de casa, que limpa a casa o dia todo, a semana toda, a vida toda, a vítima da Síndrome de Diógenes – homem ou mulher – se isola por completo, num mundo só seu e transforma a própria casa ou a própria vida num amontoado de coisas inúteis e imprestáveis, em nítida simbologia para identificar o desprezo por si mesmo. 

Em segundo lugar, a divulgação de casos veicula informações sobre tal transtorno psicológico, haja vista que os sintomas não são fáceis de identificar. A prova está na dificuldade de os visitantes identificarem o transtorno da mulher. De início, a vítima sustenta escusas para sair de casa. Escusas para receber visitas. Depois, o mau odor que chega à vizinhança. E já está a doença instalada. Em terceiro lugar, revela a fragilidade da velhice e, mais, da velhice solitária. Eis a Síndrome de Diógenes reforçando a premência do amor, em qualquer estação da vida. O amor filial, o amor entre irmãos, o amor entre amigos ou o amor entre velhos: por que não? Repito: o cidadão é velho não tanto porque o seja na idade, nas artérias, nos ovários, na vagina ou nos testículos. O cidadão é velho por decreto implícito da sociedade. É ela que diz que velhos só amam netos e repudiam o amor carnal...

Para quem driblou o FMI, deve ter sido fácil encontrar esconderijo – Margarida sumiu. Dizem que está num dos porões do casarão. Dizem que um carro a levou durante a madrugada daquele dia... O importante é o entendimento de que ela precisa de ajuda e não de dedos em riste!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”