ALÉM DAS BIBLIOTECAS


O JOGO DA VIDA E A VIDA EM JOGO

“Estou pagando!” Eis um bordão que, adotado por uma personagem de programa humorístico da TV brasileira, caiu em voga dentre a população. A explicação é óbvia. Aplica-se às mais diferentes situações, mas, sobretudo, confirma o poder do dinheiro na sociedade contemporânea. As relações do dia-a-dia parecem pautadas por valores econômicos muito mais do que por padrões éticos de comportamento. É uma distorção que se vê em diferentes segmentos, incluindo política, mídia, educação e até saúde pública.

 

Na verdade, somente o amor exacerbado ao vil metal (expressão antiga que se eterniza, quando é preciso reforçar sua força) justifica o sucesso do programa norte-americano da Fox intitulado originalmente The moment of truth. Não há novidade em reconhecer que os formatos dos programas televisivos são idênticos, por toda parte. Quase sempre, uma cópia (e quase sempre inferior) do que se faz nos Estados Unidos, apesar das insistentes críticas que dirigimos a esse país. Além do flagrante paradoxo, a percepção de que eles podem ser piores do que os originais ou até dos nossos. Por exemplo, Gran hermano (“nosso” Big Brother Brasil, BBB), na Espanha, tem produção bem aquém da brasileira, sem contar a seleção menos rigorosa ou mais apelativa dos candidatos...

 

Porém, no caso específico, o que chama a atenção é a sordidez de The moment..., embora haja quem o considere engraçado e o enquadre como programa humorístico. Flagrante ironia, ao que nos parece! Está ele adaptado em mais de 40 países, com destaque para México, Espanha, Brasil e Índia. Neste último, uma mulher de 32 anos se suicidou, em 21 de setembro de 2009, após assistir a transmissão de Sach Ka Saamna, por se sentir identificada com o nível de podridão do ser humano que o programa traz à tona. Isto porque, seu formato consiste em fazer perguntas as mais escabrosas possíveis aos candidatos, preferencialmente, anônimos, advindos de diferentes meios sociais. Estes se submetem à verdadeira humilhação e vergonhosa execração pública ao responderem a 21 perguntas sobre sua vida íntima, em presença de familiares ou amigos. Sendas escuras e inescrutáveis da alma, quase sempre conflitantes, são impiedosamente expostas. As respostas são submetidas a um detentor de mentiras, a chamada “máquina da verdade”. Consiste em tipo especial de polígrafo, que registra reações fisiológicas, como variações da pressão arterial, frequência respiratória e ritmo cardíaco. À medida que as perguntas se “aprofundam”, o aspirante tem chance de ganhar mais e mais dinheiro.

 

No Brasil, semanalmente, o Nada além da verdade, em sua segunda fase, que estreou em setembro de 2009, no Sistema Brasileiro de Televisão, sob o comando do sempre polêmico apresentador, Ratinho, incita os candidatos a conquistarem o valor máximo – 100 mil reais. Na Espanha, El juego de tu vida, do canal Telecinco e comandado por Emma García, concede 100 mil euros. E é assombrosamente mais cruel do que a versão brasileira. A prova está que permite a um dos três ou quatro amigos convidados acionar um comando eletrônico para vetar uma única resposta.

 

Há pais que descobrem a bissexualidade ou homossexualidade dos filhos. Há mulheres e maridos que se vêem traídos. Há um pai, cuja filha conquistou sua mulher (a madrasta), praticamente, “em sua cara”. Há filhos que descobrem ter roubado os pais e, ademais, acusado outra pessoa. Há quem revele consumo de drogas; prática de masturbação em locais públicos; paixão correspondida (ou não) pelo cunhado (a); maldades contra deficientes físicos ou anciãos; prática de prostituição; sonhos eróticos de fazer sexo com a mulher e a cunhada, ao mesmo tempo; hábito de roubar em grandes lojas e assim segue...

 

Disfunções alimentares vêm a público. E mais do que tudo isto, desvios sexuais, desamores improváveis e muita coisa mais aparece. Um senhor casado há mais de 40 anos, por exemplo, confessa diante da companheira de toda a vida, que sua união sempre fora uma farsa, a traíra mil vezes e seria capaz de voltar aos braços de sua primeira namorada, em suas palavras, seu eterno amor.

 

Desnudos perante as câmaras de TV, expostos ao julgamento do público, haja vista a avidez do ser humano em conhecer a sordidez do outro, ou a ansiedade de muitos outros, como nós, ávidos para avaliar até que ponto chega a falta de princípios de parte da mídia, há quem fature dinheiro, muito dinheiro. Sem dúvida, é a vitória da moeda, a favor da degradação do ser humano... São os meios de comunicação a desserviço à população! Aqui, porém, ressaltamos que a mídia, impressa, televisiva, radiofônica e digital / eletrônica, reflete os anseios da coletividade e não determina a natureza humana. Quer dizer, ninguém se prostitui porque existe a internet como elemento facilitador. Ninguém se torna pedófilo, porque há fortes conexões de pedofilia na Grande Rede. Ninguém segue os exemplos mostrados nas variações de The moment..., se não possui fortes tendências para aderir à degeneração exibida...

 

De qualquer forma, ao final, nos resta sempre uma dúvida. Não sabemos o que é mais aterrador: conhecer a fragilidade, a sordidez, a fealdade do ser humano ou comprovar o amor insano ao dinheiro. Em todos os casos, apesar do espanto / surpresa / indignação, enfim, sentimentos expressos nos rostos dos familiares, ninguém ou quase ninguém pediu para os candidatos pararem. Sempre repetem o refrão (ou similar) – é sua meta, há que alcançar. Isto se evidenciou, agora, dia 22 de novembro de 2010, quando 100 mil euros ganhos por um homem, relativamente jovem, parece apagar a baixeza / infâmia / vileza das confissões feitas, pouco antes, diante dos pais e da própria mulher. Casado, três filhos, um dos quais com quatro meses, nada foi suficiente para lhe impedir o exercício da prostituição ou para praticar a honestidade, assumindo suas tendências homo. A pergunta final e o rotundo SIM lhe concederam 100 euros e proporcionaram gritos de júbilo dos pais e da esposa. Eis o teor da pergunta: “você deixaria sua mulher se o homem de sua vida aceitasse viver com você?” 


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”