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O ESPÍRITO NO ESPÍRITO DA CATALOGAÇÃO

Circula na lista do Grupo de Estudos e Pesquisas em Catalogação (gecat@googlegroups.com), questionamento sobre o registro de autoridade para a comunicação de espíritos nos códigos de catalogação. William Shakespeare (1564-1616) já dizia em sua obra Hamlet que Há mais mistérios entre o Céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia. Independente dos mistérios compete ao catalogador indicar e facilitar o acesso.

 

A AACR2r, no capítulo 22 (cabeçalhos para pessoas) para acréscimos aos nomes (em geral), contempla a regra 22.14A, que orienta acrescentar a entrada estabelecida para a comunicação de espírito, a palavra espírito, entre parênteses. A mesma regra indica outra (21.26A – Comunicações de Espíritos), contendo orientação para a entrada de uma comunicação apresentada como recebida de um espírito, pelo nome adequado ao espírito. Indicar entrada secundária relacionada para o médium ou a pessoa que registrou a comunicação. Saliente-se que as regras não esclarecem a identificação do autor terreno com o seu posterior espírito, apenas indica acrescentar a denominação. O apêndice à edição brasileira – Entradas para Nomes de Língua Portuguesa, não acrescenta ou altera a orientação específica. A regra 2.9 – Entrada para nomes de Espírito, apenas repete as recomendações. Entre vivos e mortos, nenhuma indicação sai ferida, apenas assinalada. Afinal, acredita-se que é dado ao usuário o conhecimento suficiente para fazer seu próprio julgamento dos materiais. A identificação do autor vivo (data) e do autor espiritual (espírito) é um alerta no catálogo para a diferença autoral.

 

O significativo no código é a sua capacidade de construir entrada para definir a autoridade de um ponto de acesso mantendo até mesmo controle sobre aqueles espíritos incontroláveis - conhecidos espíritos de porco. Independente da perspectiva da comunicação de espíritos, a pertinência de dar entrada para o médium (se indicado) e o espírito (se atribuído) é evidente. Na nova norma catalográfica – RDA, é observado na seção 3 – Registro de Atributos de Pessoas, Família e Entidade Coletiva (relacionada ao Grupo 2 dos FRBR), o capítulo 9 – Identificação de Pessoas.

 

Provê orientações sobre o registro de nomes e outros atributos de identificação como elementos separados, como partes dos pontos de acesso ou como ambos. O nome adotado pela pessoa é usado como base para o ponto de acesso autorizado. A variante de nome ou nomes para as pessoas são utilizadas como base para os pontos de acesso variante. Outros atributos de identificação de pessoa também podem ser incluídos no ponto de acesso. Como Pessoas estão incluídas entidades fictícias, como figuras literárias, figuras lendárias, etc. Sobre o termo Espírito, o Capítulo apresenta a seguinte estrutura normativa:

 

·         9.6 – Outras Designações Associadas com uma Pessoa.

·         9.6.1.1 – Escopo: Outra designação associada com a pessoa é outro termo de um título que está associado com o nome de uma pessoa.

·         9.6.1.2 – Fonte de Informação: Obter informação sobre outras designações associadas com uma pessoa a partir de qualquer fonte.

·         9.6.1.3 – Registrar outras denominações associadas com a pessoa.

o    Para Santos, ver 9.6.1.4.

o    Para Espíritos, ver 9.6.1.5.

·         Registrar outras designações associadas à pessoa como elementos separados, como partes dos pontos de acesso ou como ambos. Para obter instruções adicionais sobre registro de uma designação como parte do ponto de acesso autorizado, ver 9.19.1.2.

·         9.6.1.5 – Espírito: Para espírito, registrar Espírito.

·         9.19.1.2. Título ou Outra Designação Associada com a Pessoa: recomenda adicionar a um ou mais nomes os seguintes elementos (nesta ordem), se aplicável:

o    Indicação do título de realeza (ver 9.4.1.4) ou nobreza (ver 9.4.1.5)

o    Indicação do termo Santo (ver 9.6.1.4)

o    Indicação do título da posição religiosa (ver 9.4.1.6–9.4.1.8)

o    Indicação do termo Espírito (veja 9.6.1.5)

o    Indicação da profissão ou ocupação (ver 9.16) para uma pessoa cujo nome seja composto por uma frase ou denominação que não transmite a ideia de pessoa.

 

Em realidade, a RDA mantêm as mesmas premissas contidas na AACR2 para o tratamento da comunicação de Espírito.

 

É certo pretender estabelecer relacionamento de autoria entre a manifestação física e do espírito, adotando data (biográfica)? A profa. Elaine Mey, em comentário na citada lista de catalogação, destaca que no caso do espírito:

 

“A solução com datas é tipicamente utilitarista (pensamento anglo-saxão), e preconceituosa. Se acreditarmos seriamente em espíritos, este só pode nascer como PERSONA [personalidade, personagem] a partir da morte do autor. E, certamente, não terá data de morte. Portanto, estamos divulgando uma informação errônea. A segunda informação errônea é que o espírito de Beethoven pode não compor músicas, ou compor músicas que não se igualem à grandeza de um dos maiores compositores de todos os tempos. Portanto, HÁ DUAS PERSONAE [latim plural de persona]: uma persona do Beethoven original com suas datas; outra persona que é o espírito de Beethoven, sem data alguma, por que datas NÃO FAZEM SENTIDO PARA ESPÍRITOS”.

 

A observação da Professora levanta a necessidade de atenção devida pelo catalogador. Se a entrada não é dada ao espírito, não será possível, ao usuário localizar as obras de autoria a ele atribuídas. Se a entrada dada ao espírito é a mesma forma adotada para pessoas históricas (pessoa física), as obras comunicadas por espíritos estarão relacionadas com os autores vivos ou espíritos não manifestados de mesmo nome. O conceito de entrada principal permite distinguir os espíritos dos viventes, assim como as entradas sob o médium identificaria as obras de comunicação do espírito. Se apenas uma forma de nome é para ser usada, e este nome é também de uma pessoa histórica como podemos ter certeza que se trata do mesmo autor ao que é citado? Só pela interpretação da filosofia espírita não poderia o catalogador fazer a distinção, mesmo se o reino espiritual for interpretado como a continuação do terreno. Afinal, ainda haveria diferenças. Não é ilógico supor os homônimos, duas entidades com o mesmo nome um terreno e outro espiritual.

 

Não se pretende nenhum desrespeito à crença espírita ao comentar a entrada para espírito. É uma questão de autoria relacionada à entidade bibliográfica. A conexão entre as duas dimensões é uma questão espirita e espiritual, porém a discussão tratada é apenas técnica bibliográfica. Neste sentido, o uso da data biográfica serve unicamente para autores de existência terrena.

 

O código de catalogação apresenta uma deliberação pragmática. Com o apoio do texto de Nancy M. Babb: Cataloging Spirits and the Spirit of Cataloging, encontra-se algumas explicações para a inclusão da comunicação de espíritos nos processos catalográficos. É observado que as diretivas contidas na AACR2, em um primeiro momento, até parecem visionárias, porém não deixam de ser pitorescas e curiosas, entretanto são arcaicas no foco e anômalas nas especificidades, e sobre isto há toda uma justificativa desde o século 19 até o final do século 20.

 

Destaca-se que desde a criação da AACR2, em 1967, e nas revisões de 1978 e 1988, não se promulgam regras claras para situações específicas, e persistem agora na RDA. As regras que regem a comunicação de espírito parecem uma esquisitice em relação à situação de autoria, que é ponto discutível. Com a complexidade da catalogação para artigos eletrônicos, páginas web e outros formatos não tradicionais integrados aos modelos biblioteconômicos estabelecidos, parece esotérico as regras da AACR para espíritos.

 

O conceito da comunicação de espíritos com os vivos é antigo e generalizado, encontrados em diversas culturas. A comunicação como gênero literário, com textos atribuídos a autoria de espírito floresceu no século 19, com o advento do Espiritismo. O interesse científico e social da época facilitou a popularização. A maior parte da comunicação realizava-se por meio de mensagens psicografadas, produzidas por médiuns ou algum outro escriba. Se de inicio, os escritos espíritos e seus médiuns suscitam ceticismo, a noção de um autor continuar a escrever, ou começar a escrever depois de morto foi surpreendente, até hoje. No período a produção textual ganhou prestígio. Na virada para o século 20, com a significativa produção, houve um boom editorial, que pressionaria os catálogos e códigos de bibliotecas.

 

Recorde-se que, ao longo do século 19, a Biblioteconomia se consolida como ciência, com bases orientadas a categorizar e organizar o conhecimento. Com os cientistas explorando e expandindo suas descobertas do mundo, tem as bibliotecas de dar lugar ao ordenamento sistematizado destes achados. Tal fato estimula aos teóricos da catalogação na interpretação da organização do conhecimento. Definem e refinam a arte e a prática bibliográfica e a descrição baseada em uma estrutura padrão. Panizzi, Jewett e, Cutter (a tríade P.J.C.) são os motivadores das mudanças teorias e práticas. Desenvolvem o conceito de código de catalogação uniforme, com padrões adotáveis por qualquer biblioteca. O reconhecimento da página de rosto como descritor único permite desenvolver práticas exclusivas para o desenvolvimento da coleção na biblioteca. Neste desenvolvimento, a autoria – um elemento único e frequente no detalhe bibliográfico – pode ser explorada e analisada sob as diferentes formas de ocorrência. São as primeiras tentativas que, posteriormente, evoluem para normas de inserção de espíritos. P.J.C. não propuseram a inclusão explícita do espírito como autor. Eles refletiram a atenção para as necessidades e expectativas do público a ser expressa pelo catálogo, sem a intervenção do bibliotecário. Abordaram o sentido e a importância da autoria ao discutirem a questão do pseudônimo, das obras anônimas etc.

 

Jewet entendia que nada deveria ser deixado ao gosto individual ou julgamento do catalogador que deveria ser uma pessoa de aprendizagem contínua, e de competências suficientes para aplicar as regras. Para Cutter a conveniência do público devia ser prioritária. O surgimento do catálogo dicionário é significativo na facilitação do acesso bibliográfico. Na determinação da função do catálogo, indicou não estar limitado a facilitar a busca de uma terminada obra, mas mostrar o que há de um determinado autor. Nesta função origina-se a necessidade do controle de autoridade, e a estruturação de informações sobre o autor.

 

Regras específicas para as comunicações de espíritos não constavam dos códigos do século 19. Pela ótica da conveniência do usuário sugere-se que o espírito possa ser um autor procurado. Se a comunicação de espírito figura na página de rosto, a sua transcrição poderia justificar a entrada. A determinação da responsabilidade intelectual para o espírito, no entanto, levanta questões complexas e acende um tipo de desafio enfrentado pelos catalogadores ao longo do século 20.

 

O código anglo-americano: Catalog Rules, Author and Titles Entries, de 1908, editado pela American Library Association e a British Library Association, estabelecem bases de uniformidade para a catalogação. Define autor como o escritor do livro, distinto do tradutor, editor etc. e, em sentido mais amplo, como sendo o criador da obra, ou a pessoa ou entidade responsável pela sua existência. Os espíritos e suas produções não são realçados nas regras. Se os autores espíritos tiverem destaque na página de rosto podia haver a entrada principal. Se a responsabilidade intelectual do espírito fosse questionada era sugerido entrada para o médium.

 

A citação às comunicações de espíritos ocorre na segunda edição do código, publicada em 1941, contendo revisão e expansão. No prefácio manifesta-se a insatisfação com a edição de 1908 pelas suas omissões. As regras passam a ser mais pormenorizadas. Em relação ao espírito, uma obra recebida através de um médium, terá entrada pelo nome do médium, com entrada secundária para o suposto autor.

 

O código de 1941 recebeu críticas pela complexidade e multiplicidade de regras. A edição de 1949 substitui a terminologia obra para livro. Prescreve a alteração do cabeçalho para autoria: pseudônimo, pseudo-autor, mas não esclarece a aplicação para autores espíritos. Estabelece uma confusão interpretativa, existindo entrada para espíritos autores, médiuns, e outros tipos de coautoria ou autoria conjunta.

 

Em 1953, Seymour Lubetzky analisa o código de catalogação da ALA e sua multiplicidade de regras. Comenta que quando se projeta uma regra para atender caso específico, ao invés de situar uma condição ilustrativa, cria-se a necessidade de duplicar essa regra para cada novo caso distinto encontrado. A variação de tratamento para a comunicação de espírito, nos catálogos bibliográficos, exemplificava o problema da duplicação. Lubetzky dizia da necessidade de simplificar a indicação de entrada, para a determinação da entrada sob um autor sempre que conhecido, e sob o título se o autor for desconhecido. Prescrevia, também, simplificar as questões postuladas da autoria conjunta em três tipos: a) autor principal e colaborador, com entrada principal para o primeiro; b) obras editadas ou compiladas, com entrada sob o editor/compilador; c) e a verdadeira autoria conjunta, com entrada para todos.

 

O seu código de catalogação, publicado em 1960, mantinha essas diretrizes. No que referia as comunicações de espírito era orientado para a identificação e a indicação sobre a autoria da obra, separada em duas partes: a) uma obra preparada de uma pessoa para outra em cujo nome é apresentado, será indicada a entrada sob a pessoa que supostamente é a responsável por ela, com uma entrada secundária para a pessoa que a preparou; b) uma obra que fictícia ou erroneamente é atribuída à outra pessoa, ou é atribuída ao espírito de outra pessoa, será indicada a entrada sob a pessoa que a preparou, com entrada secundária para a pessoa a quem a obra é atribuída.

 

Lubetzky buscou distinguir o papel do espírito na participação do conteúdo, e a atribuição da autoria, dada ao médium responsável pela transcrição. Sua decisão refletiu o sentimento de seu tempo, no qual o Espiritismo como religião mudou-se do mainstream e o espiritualismo enquanto um conceito retoma aplicação mais ampla.

 

Ao longo do século 20, as mudanças nas regras de catalogação foram sendo desenvolvidas e revistas, conforme variaram as interpretações dos catalogadores para os diferentes tipos de obras e de autoria. Porém, a questão da comunicação de espíritos, precocemente abordado nos códigos de catalogação anglo-americanos, se insere a partir da revisão de 1978 da AACR2, com regra específica. Parece estranho encontrar no catálogo bibliográfico contemporâneo, espíritos identificados na autoria nominal da obra, substituindo o médium e obtendo um tipo de destaque bibliográfico a semelhança da pessoa física. Neste sentido, vê-se removido o papel do catalogador como árbitro da indicação de autoria.

 

Lubetzky destacou que, apesar da desconfiança e descrença com que via todas as regras da AACR2, concordava com o desejo dos médiuns, e que poderia agradar também aos espíritos ao serem considerados responsáveis pela indicação feita. Certamente, a pergunta sobre a autoria esteja além do saber do catalogador, bem como a resposta esteja ocultada no domínio dos espíritos.

 

Arnold Wajenberg comenta que a regra tem um significado importante ao considerar o aspecto bibliográfico ao invés das questões existenciais. Para ele sejam quais forem as crenças pessoais do catalogador em relação à comunicação dos espíritos, ele ou ela não tem o direito de permitir que suas crenças pessoais interfiram nas decisões catalográficas. Estas decisões devem ser baseadas no registro bibliográfico.

 

Na esfera da catalogação bibliográfica, segundo Helen Sword, a comunicação de espíritos, sugere que a entrada é uma validação da autoria do espírito; e isso remove apenas a questão do debate e, o mais importante, nega o catálogo como arena para tal discussão.

 

Em suma, o catalogador pode não ser neutro (deveria), mas a catalogação é laica.

 

Com os padrões emergentes atuais há uma expansão mais ampla da catalogação e que redefinem a entidade bibliográfica, exclusivamente representativa do conceito ampliado de autoria. Certamente, o tema ganha muito mais discussão; provavelmente não esgotada em nossa vida profissional.

 

Mas quem sabe, se ao fim de nossa existência terrena, ela não vá prosseguir. No livro A cidade dos espíritos é descrito a existência de bibliotecas e sua importância (ao menos no além há algum reconhecimento). Os livros são feitos de energia psíquica, o que os torna livres de fungos. Há também publicações em forma de disquetes. As bibliotecas são equipadas e conceituadas como centros de pesquisa e comunicação. Tudo indica que o bibliotecário, de verdadeiro espírito profissional, tem carreira garantida na eternidade.

 

Desculpo-me pelo tamanho do texto.

 

Indicação de leitura:

 

Anaclara (Espírito). A cidade dos espíritos: a vida no mundo espiritual. Psicografado por Rosabela Paz. São Paulo : Madras editora, [200?]

 

Babb, N. M. Cataloging spirit and the spirit of cataloging. Cataloging & Classification Quarterly, vol. 40, n. 2, p. 89-122, 2005.

 

Lubetzky, S. Cataloging Rules and Principles: a critique of the ALA Rules for Entry and a Proposed Design for their revision. In: Svenonius, E.; McGarry, D. (ed.). Seymour Lubetzky: writings on the classical art of cataloging. Englewood : Libraries Unlimeted, 2001.

 

Sword, H. Necrobibliography: book in the spirit world. Modern Language Quarterly, vol. 60, n. 01, mar. 1999.

 

Wajenberg, A. A cataloger´s view of authorship. In: Svenonius, E. (ed.) The conceptual foundations of descriptive cataloging. San Diego : Academic Press, 1989.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.