BIBLIOTECONOMIA DIGITAL


A IMPORTÂNCIA DOS ACERVOS PESSOAIS

Os acervos pessoais constituem um conjunto documental relevante ao propiciarem o agrupamento de documentos realizados por intelectuais. Sua importância tem aumentado recentemente, com instituições reunindo, organizando e disseminando esses conjuntos, que podem ser representados por bibliotecas e arquivos.

 

De acordo com Bellotto (2006), os arquivos pessoais traduzem a concepção de arquivos privados, uma vez que reúnem papéis produzidos ou recebidos por entidades ou pessoas físicas de direito privado, onde os documentos refletem a personalidade e o comportamento de seu titular, ligados a seu cotidiano, atuação social, política, econômica e cultural.

 

Segundo Gonçalves (2006, apud CUNHA, 2008, p.113), os acervos são conjuntos entendidos como patrimônios, designando um conjunto de documentos, peças ou obras reunidas e abrigadas (custodiadas) por instituições ou presentes em coleções particulares. Eles podem ser de duas naturezas: 1) reunidos pela vontade de quem os selecionou, motivados por gostos pessoais, hobby ou interesse, quando recebe a denominação de coleção; ou 2) reunidos em função de atividades realizadas por quem os reúne, identificado como arquivo ou fundo. O arquivo é, normalmente, composto por documentos produzidos em função das obrigações e necessidades profissionais e espelha a história da instituição ou pessoa que o reúne.

 

Segundo Chartier (1996, p.160, apud CUNHA, 2008, p.112), arquivar e guardar são práticas comuns de intelectuais e pessoas voltadas ao estudo e leitura, o que os leva a reunir e preservar documentos e papéis diversos. Guardar não é esconder, mas preservar para partilhar uma informação que poderia ficar dispersa e perdida.

 

Acervos pessoais são formados por publicações, anotações, cartas, fotografias, objetos tridimensionais, manuscritos ou quaisquer outros suportes documentais que carregam informação relevante à pessoa que os reuniu durante sua vida pessoal e profissional. Existem muitos estudos sobre acervos de bibliotecas públicas, universitárias, escolares etc., porém poucos registros sobre os acervos pessoais. Segundo Moles:

 

“Todo intelectual possui uma biblioteca, cujo arranjo e extensão são testemunha dele mesmo, e é bem sabido que uma olhada na biblioteca de um intelectual diz muito sobre o que ele é, o que pensa, o que faz, sobre suas orientações políticas, seus gostos artísticos ou seus projetos recentes, pois ela é uma testemunha de sua atividade específica” (MOLES, 1978, p.40, apud SILVA, 2010).

 

Usualmente os acervos pessoais são transferidos por familiares ou terceiros após a morte do titular, porém ocorrem casos em que o próprio responsável pela formação e reunião da documentação decide transferir seu acervo a uma instituição depositária, normalmente com a qual tem ou mantém algum vínculo. Dessa forma a preservação do acervo para consulta é possibilitado, não incorrendo em riscos de perda ou dilapidação do conjunto. Ao transferir seu acervo pessoal a uma instituição, o conjunto continuará a ser atualizado e somente será considerado um conjunto fechado com o falecimento do titular. Após esse fato novos itens podem ser agregados ao conjunto original do acervo, porém como uma documentação complementar, muitas vezes frutos de pesquisas geradas nos documentos reunidos ou estudos.

 

Os itens de um acervo pessoal são reunidos a partir de critérios estabelecidos em função de objetivos e finalidades do seu responsável, não sendo relevante a quantidade de itens, mas sua importância, sinalizando a organização do pensamento considerando-se a possibilidade de utilização como referência na produção e organização da atividade intelectual do colecionador. A constituição de um acervo pessoal é balizada pela relevância do conteúdo do material selecionado (SILVA, 2010, p.18).

 

Segundo Bellotto (2007, apud VOGAS, 2011, p.17) a organização estabelecida no acervo pessoal deve ser preservada, mantendo os documentos agrupados, sem serem misturados a outros, de outras origens ou produtores. Dessa forma a integridade do acervo é mantida, com o arranjo original refletido, assim como os processos que o criaram, identificando a natureza e o significado dos documentos em seu contexto de seleção. Dessa forma, fica injustificada a dispersão de fundos sob qualquer pretexto, sendo inaceitável que os itens tenham seu arranjo alterado por assunto, ordem cronológica, formatos ou suportes documentais. Em termos de manutenção da ordenação, não são aqui relacionados necessariamente a ordem física, mas à organicidade. Vogas (2011, p.30) pondera que:

 

“A organização lógica, dissociada da organização física por meio do recurso às tecnologias de informação, permite recuperar o elo existente entre os documentos e as atividades que lhes deram origem, no intuito de preservar, evocar ou representar as circunstancias e o contexto que justificaram sua acumulação e guarda”.

 

De acordo com Vogas (2011, p.25), os acervos pessoais são naturais na forma como são acumulados e não foram coletados artificialmente como os objetos de um museu. Os documentos são interdependentes e únicos, uma vez que ocupam um lugar específico na estrutura documental do grupo ao qual foram inseridos. Segundo a autora:

 

“Os eventos e atividades ligados a uma atividade profissional – seja de um funcionário público, de um cientista ou de um escritor – produzem documentos diversos que serão acumulados seguindo a lógica pessoal daquele que guarda ou de secretários sob sua orientação. Esses papéis constituirão, junto com outros, acumulados por diversos motivos, um arquivo pessoal que ganhará ordenação específica correspondente à expectativa que o titular projeta para seu acervo” (VOGAS, 2011, p.26).

 

A documentação de um acervo pessoal orbita em seu titular, não apenas como um reflexo das atividades desenvolvidas, mas como representação de seus interesses ou dos eventos. A organização é entendida como a relação do titular com o mundo à sua volta e nas respostas que a documentação pode oferecer de si para o público.

 

Camargo; Goulart (2007, p.50 apud VOGAS, 2011, p.31) discorrem que:

 

“Os arquivos pessoais de cientistas, artistas e políticos constituem matéria privilegiada para que se possa compreender os processos de conhecimento, criação e decisão, razão por que, aliás, têm sido objeto de iniciativas de recolhimento por instituições diversas”.

 

Segundo Vogas (2011, p.26), um arquivo pessoal pode vir a integrar um acervo institucional de acordo com a importância do titular com a sociedade e o vínculo com a instituição depositária.

 

As bibliotecas universitárias possuem acervos para atender à demanda informacional da comunidade a qual atende. Seus objetivos estão interligados com o plano de ensino da instituição, visando oferecer ao corpo docente e discente os itens necessários para o aprendizado e realização de pesquisas, mantendo um conjunto de informações atualizadas e acessíveis. Uma característica recorrente é a doação (ou venda) de acervos pessoais de professores ou intelectuais de renomada competência para compor os acervos de bibliotecas universitárias, possibilitando, assim, maior oferta de itens para pesquisa, além de contar com uma coleção formada por toda uma vida de atividade profissional, agregando valor ao acervo existente. Esses conjuntos representam uma fonte inesgotável de pesquisas, desde o acesso às fontes como pelo entendimento do pensamento do titular do acervo. Uma instituição educacional abrigar acervos pessoais proporciona uma fonte enorme de recursos informacionais, além de franquear a consulta pública.

 

Por cinco anos tive a responsabilidade e a honra de coordenar acervos pessoais. Sob minha guarda estavam os acervos de Lygia Fagundes Telles, Decio de Almeida Prado, Otto Lara Rezende, Paulo Autran, Erico Verissimo, Clarice Lispector, José Ramos Tinhorão, Rachel de Queiroz, Mario Quintana entre tantos outros intelectuais. Essa experiência permitiu ter a completude do que é um acervo pessoal e os cuidados que merecem.

 

Toda a transferência de guarda de um acervo pessoal – quer seja por compra ou doação – deve ser regida por um contrato, onde a instituição recebedora compromete-se a preservar, manter a integridade do conjunto e permitir a consulta pública, de acordo com o nível de confidencialidade estabelecido. Pode ocorrer do doador manifestar intenção de proteger parte do conjunto, agregando temporalidade para acesso público de documentos que julgar sigilosos. Essas prerrogativas devem ser garantidas pelo gestor do acervo.

 

A organização pessoal do intelectual deve ser preservada ao máximo, garantindo que o arranjo dado pelo proprietário seja mantido. Essa organização explica muito da formação do acervo, representando o pensamento e as conexões dos itens dentro do conjunto. A retirada de um acervo não é uma simples mudança ou transporte. Sempre que possível deve-se reproduzir a ordem original. Os cuidados para transferência de acervos vão desde sinalizações até formação de grupos dos itens, preservando a ordem e sequência do colecionador, além dos cuidados necessários para garantir a segurança física do transporte, muitas vezes realizados com apólices de seguro.

 

Nenhum item deve ser descartado de um acervo pessoal, mesmo que a instituição de destino já possua exemplares idênticos. Se a própria coleção tiver mais de um exemplar do mesmo item, é necessário verificar se existem anotações em um deles ou em ambos. Caso não ocorram divergências, o item a ser descartado deve ser devolvido ao doador (o próprio colecionador ou seu representante legal) com um aditivo do contrato relacionando os itens devolvidos. Descartar itens de um acervo pessoal descaracteriza uma coleção, dificultando a compreensão completa do acervo. Com o descarte de itens a coleção perde sua unicidade e características únicas, dificultando ou até mesmo inviabilizando estudos sobre o olhar do colecionador a partir dos itens presentes em seu acervo.

 

Esse entendimento é balizado por Lopes (2003, p.75, apud VOGAS, 2011, p.29) ao afirmar que:

 

“[...] Em situações extremas onde a guarda dos documentos foi corrompida – isto é, não permitem mais a identificação das atividades das quais, supostamente são o registro probatório – o estatuto do documento arquivístico é seriamente comprometido.”

 

O nível descritivo deve contemplar especificidade, destacando itens apensos ou anotações presentes em textos ou publicações. Essa é a parte rica da coleção, com o proprietário depositando sua marca sobre os itens.

 

Acervos pessoais são formados por ampla gama de publicações e suportes, variando de itens textuais (manuscritos ou editados) até peças tridimensionais. Normalmente as preciosidades concentram-se nos itens não editados, manuscritos, missivas, publicações seriadas ou artigos dispersos, muitas vezes com formação de dossiês ou compêndios, reunindo textos diversos, a partir de uma percepção do colecionador. Esse tipo de material, além de proporcionar um arranjo do conjunto, permite vislumbrar com clareza o ponto de vista do titular, permitindo a compreensão de sua visão sobre determinado tema. Mesmo que estejam presentes cópias de obras (xerográficas), microfilmes, reproduções não autorizadas etc., os itens não devem ser descartados ou omitidos do conjunto. Os livros podem constituir uma parte significativa de um acervo, principalmente quando estão presentes obras raras ou notáveis, aqui compreendidas as dedicatórias e anotações marginais incluídas nas publicações. Se por um lado as obras impressas constituem uma parte importante de um acervo, por outro, devido a possibilidade de reposição caso algum exemplar seja danificado ou extraviado, os livros não são, usualmente, a parcela de maior importância em um acervo pessoal, visto que podem estar presentes em outros conjuntos. Os destaques são voltados aos documentos manuscritos ou dossiês e compêndios, formados de forma única e exclusiva, que dificilmente poderão ser repostos caso o material seja perdido. Esses são os itens que suscitam maiores estudos sobre uma coleção e cabe à instituição recebedora, zelar por eles, principalmente no tocante de sua preservação física e integridade.

 

Discute-se qual será o futuro dos acervos pessoais em tempos de digitalização de obras e documentos, com e-mails substituindo as cartas, os itens perdendo sua forma física e tendo sua reunião comprometida por sistemas de armazenamento ou mídias, suscetíveis a questões de preservação digital, ou então a transferência de obras digitais licenciadas. Talvez esses sejam fatores que valorizem ainda mais os acervos pessoais existentes, devido sua perenidade e a dificuldade de, no futuro, reunir e manter materiais.

 

Referências

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 318 p.

 

CUNHA, Maria Teresa Santos. Essa coisa de guardar...: homens de letras e acervos pessoais. História da Educação, Pelotas, v.12, n.25, p.109-130, maio-ago. 2008. Disponível em:http://fae.ufpel.edu.br/asphe. Acesso em: 12 Mar. 2014.

 

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO. O que são arquivos pessoais. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/acervo/arquivospessoais>. Acesso em: 12 fev. 2014.

 

SILVA, Edineuza Oliveira. O acervo pessoal na formação intelectual universitária. Cadernos de Pedagogia, São Carlos, v.4, n.8, p.13-22, jul.-dez., 2010

 

VOGAS, Ellen Cristine Monteiro. Estratégias e possibilidades dos arquivos pessoais frente aos novos usos dos documentos arquivísticos: o Arquivo Darcy Ribeiro. 2011. 108 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciência da Informação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. Disponível em: <http://www.ci.uff.br/ppgci/arquivos/Dissert/Dissertacao_Ellen_Vogas-corrigida.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2014.


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LILIANA GIUSTI SERRA

Postdoctoral Researcher Associate na University of Illinois at Urbana-Champaign (UIUC). Doutorado em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquisa Filho (UNESP). Mestrado em Ciência da Informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Profissional da informação dos softwares Sophia Biblioteca, Philos e Sophia Acervo.?