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A IMAGEM DO BIBLIOTECÁRIO É UM RETRATO OU UM ESPELHO?

A questão da imagem profissional do bibliotecário é assunto recorrente na área. Este texto não é uma análise aprofundada do tema, nem tem a pretensão. É uma livre manifestação, motivada pela participação em eventos nos quais a questão foi abordada. Um dos eventos foi o da semana de Biblioteconomia organizada, no último dia 20 de outubro, pelos alunos do curso de Biblioteconomia e Ciência da Informação da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto/SP. Aliás, os estudantes merecem parabéns pela organização. O outro, mais recente, foi promovido pelo sistema Conselho Federal e Conselho Regional de Biblioteconomia (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro). Em realidade, foram dois Seminários Regionais: Biblioteca Escolar e Pública, e de Ética Profissional. Ambos ocorridos no dia de encerramento do Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias - SNBU XVIII, em Belo Horizonte, MG. E, ambos, também fortemente vinculados à discussão do trabalho bibliotecário e sua relação com a sociedade.

 

Dentro deste contexto, opto por relembrar fatos da história bibliotecária nacional e internacional, a começar pela figura do primeiro profissional com a função de "bibliotecário", no país. Luís Joaquim dos Santos Marrocos (1781 – 1838) aqui desembarcou junto com o acervo da Biblioteca Real, dois anos após a chegada do Rei Dom João e a família real, ocorrida em 1808. A biblioteca acabou esquecida no porto, quando da partida da corte imperial. A diligência dos bibliotecários portugueses evitou que uma das mais ricas coleções bibliográficas, da época, pudesse cair nas mãos do exército de Napoleão. A história está retratada no livro "A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil", de Lilian Schwarcz e outros (Companhia das Letras, 2002). Convêm ressaltar que, anteriormente, até houvesse “bibliotecários” no Brasil colônia, mas estes eram padres responsáveis por bibliotecas então restritas aos conventos.

 

Com relação ao bibliotecário Marrocos, o seu perfil pessoal e profissional apresentava como características: formação religiosa; mal-humorado; queixoso por ofício; detalhista; cuidadoso das técnicas; cioso das responsabilidades.

 

Curiosamente, entre as queixas de Marrocos estava o desejo de voltar logo para Portugal, e a sua opinião sobre as condições de vida na Colônia. Porém, ele não retornou, aqui constituiu família, ocupou cargos e desempenhou altas funções no Império, após a independência, até pela sua formação e competências, e aqui morreu. Tomando por base a figura de Marrocos seria possível falar de um perfil comum aos bibliotecários brasileiros, no bom ou mau sentido? Certamente não, sua história e seu perfil profissional é apenas um retrato de alguém pendurado na parede, e que não deixou legados.

 

Vale recordar que o primeiro curso formal e superior de biblioteconomia foi criado por Melville Louis Kossuth Dewey (1851- 1931), nos Estados Unidos, em 1889. Era denominado “Escola de Economia em Bibliotecas”. Segundo o seu "projeto pedagógico", para usar um termo da atualidade, o Curso visava capacitar Bibliotecários dentro de um determinado perfil: busca da eficiência; respeito a hierarquia; exercício da intermediação entre o livro e o leitor; identificar necessidades dos usuários; padronizar serviços; enfatizar atividade técnica; e subordinação aos especialistas.

 

O Curso tinha como diferencial, em relação aos demais cursos superiores, a aceitação de mulheres. Algo avançado para os padrões sociais da época. Porém, Dewey admitia mulheres pelas mesmas razões que as empregava nas bibliotecas – para rebaixar a profissão bibliotecária. Saliente-se que as mulheres eram socialmente subalternas em relação aos homens que tinham cargos em universidades. Na visão de Dewey, a subordinação espelhava adequadamente a submissão das bibliotecárias em relação a professores e especialistas, que ele considerava necessária para o funcionamento eficiente da biblioteca. Segundo Battles, em seu livro "A conturbada história das bibliotecas" (Planeta Brasil, 2003), Dewey contribuiu para negar aos bibliotecários a possibilidade de alegar qualquer espécie de autoridade. Atuou, portanto, para limitar significativamente a posição profissional no universo das profissões.

 

Não se pode acusar apenas a Dewey como a principal causa de uma situação de desvalorização social da profissão. Percebe-se, porém, elementos contributivos para a formação de um estereótipo do bibliotecário, em geral, norte-americano. Mesmo a visão caricata que por vezes a mídia divulga da profissão no Brasil, é importada. Estudiosos dizem que está baseada na imagem dos bibliotecários públicos norte-americanos. E deve ser, afinal, no país, a maioria das bibliotecas públicas é gerida por leigos. Já, bibliotecas escolares inexistem, e bibliotecários acadêmicos por serem mais reconhecidos pelos seus públicos apresentam menor projeção de estereótipo ou do sentimento de desvalorização profissional.

 

Ademais, a imagem profissional, em geral, está projetada em filmes, programas ou séries de TVs, desenhos animados, revistas em quadrinhos importados também dos Estados Unidos, e, normalmente, como alguém carrancudo, usando óculos grossos, e dificultando o acesso a informação. Convenhamos, uma interpretação fora de época. Em tempos de internet, redes sociais, que profissional aparece tão taciturno. A geração atual é mais para pírcingue, tatuagens e cabelos coloridos. Ressalte-se as exceções, o canal de televisão paga TNT prepara o lançamento de uma série tendo o bibliotecário como protagonista, trata-se do The Librarians.

 

No Brasil, grande parte do público não sabe muito sobre os bibliotecários. Entretanto, a questão do estereótipo tornou-se generalizada, como um atalho para certos tipos de profissão. Assim, a profissão bibliotecária não é a única vítima. É possível listar os outros profissionais que sofrem até mais com a situação, como: enfermeiros, professores, aeromoças etc. Nos tempos atuais, o estereótipo pode ser relacionado também ao bullying.

 

Entretanto, é importante haver uma autocrítica para entender se estes retratos estão desbotados, ou são espelhos que refletem uma imagem social da profissão.

 

Na década de 1990, a IFLA preocupada com o tema desenvolveu um estudo de amplitude mundial, abordando a questão do prestígio, imagem e reconhecimento profissional. Os pressupostos da pesquisa eram: "O público, em geral, tem uma imagem negativa da profissão e das práticas bibliotecárias".

 

A profissão usufrui de escasso reconhecimento e, como consequência, o seu prestígio é também baixo, uma situação que se reflita nos baixos salários e nas condições de trabalho.

 

A investigação coordenada pelos pesquisadores Hans Prins, Wilco de Gier e Russell Bowden, encontra-se manifestada na publicação “The Image of the Library and Information Profession. How we see ourselves: An investigation”, 1995 (IFLA Publications; n. 71). Os resultados retratam um determinado contexto e período histórico. Sinaliza-se apenas alguns pontos da pesquisa. Na opinião dos profissionais, os bibliotecários deveriam saber quem ou o que desejariam ser. Tinham que desenvolver sua atividade em mercado aberto. Abrirem-se ao mundo exterior, ao mundo que avança além das paredes das bibliotecas. E que, mudar o nome da profissão é apenas uma operação cosmética.

 

Quanto ao reconhecimento profissional, era entendimento (por suposição) que milhões de pessoas consideravam de valor o serviço da biblioteca, entretanto, os bibliotecários não eram objetos de debates públicos ao contrário das bibliotecas.

 

Na opinião dos usuários, os bibliotecários não causam problemas, se limitam a fazer seus trabalhos, não ganham e nem perdem em termos econômicos ou de sobrevivência. Acumulam livros, dão-lhes tratamento administrativo e não se planejam a serem de importância vital para nada.

 

Para 82% do total de bibliotecários consultados, a profissão gozava de escasso prestígio. Algumas das causas compreendiam:

 

·         Desconhecimento da profissão;

·         Atividade feminina;

·         Cultura profissional deficiente;

·         Qualidade dos serviços com pouco valor agregado;

·         Papel marginal;

·         Pouca responsabilidade social;

·         Imagem insossa;

·         Baixos requisitos acadêmicos.

 

Ainda, segundo opinião dos profissionais, as bibliotecas consideradas de maior prestígio eram: Nacional e Universitária; a de menor prestígio: Pública e Escolar.

 

Em relação ao Brasil, dentre vários trabalhos sobre o tema, cito a tese desenvolvida por Maria Teresa Machado Teles Walter “Bibliotecários no Brasil: representações de uma profissão” (UNB, 2008), que teve o objetivo de verificar a forma com que os bibliotecários e o corpo docente, no país, constroem a imagem profissional do bibliotecário, e se os fatores que representam essa imagem são positivos. Das diversas questões levantadas e analisadas, por questão de espaço, sinaliza-se apenas poucos pontos. Para os bibliotecários o melhor espaço de atuação ainda era a biblioteca, até por serem formados para a gestão das mesmas. Isto, apesar de destacarem a capacidade de atuar em outras áreas. Detectou-se como fator negativo, a opinião de haver profissionais acomodados, e com resistência a mudança. Além do pouco interesse no atendimento ao usuário. Por outro lado, há forte sentimento de orgulho em ser bibliotecário. Um ponto em comum nas opiniões é a necessidade de uma cultura e formação acadêmica mais sólida.

 

A questão da formação profissional, é outro assunto recorrente nas discussões relacionadas a imagem ou ao mercado de trabalho. Laura Russo em seu livro "A Biblioteconomia Brasileira: 1915/1965" (Rio de Janeiro, 1966), comenta que após a promulgação da lei de regulamentação profissional, Lei n° 4.084/1962, o Conselho Federal de Biblioteconomia que então se organizava, por meio de uma Comissão de Trabalho, desenvolveu a proposta do primeiro currículo mínimo obrigatório para os cursos de Biblioteconomia. Elencava as seguintes disciplinas:

 

§  Bibliografia,

§  Catalogação,

§  Classificação,

§  Documentação,

§  História da Arte,

§  História da Ciência e Tecnologia,

§  História da Literatura,

§  História do livro e das Bibliotecas,

§  Introdução à Filosofia,

§  Introdução às Ciências Sociais,

§  Organização e Administração das Bibliotecas e Serviço de Documentação,

§  Referência,

§  Seleção de Livros, e

§  Estágio de 300 horas.

 

Junto com a proposta para a graduação, a Comissão também apresentou proposta de programas para a pós-graduação, em três linhas:

 

§  BIBLIOTECOLOGIA: Patologia do livro, Artes Gráficas, Encadernação e Restauração de Material Bibliográfico, História do Livro, Paleografia, Iconografia, e Crítica de textos.

§  BIBLIOTECA INFANTO-JUVENIL: Psicologia Infantil e do Adolescente, Literatura Infantil e Juvenil, Organização e Administração de Bibliotecas Infanto-Juvenis e Escolares, Bibliografia e Referência em Bibliotecas Escolares, e Atividades em Grupo.

§  Documentação e Bibliotecas Especializadas: Normalização, Catalogação especializada, Classificação Decimal Universal, Técnicas de Indexação e Resumo, Pesquisa Bibliográfica, Armazenagem e Recuperação da informação, Organização e Administração de Bibliotecas especializadas e Serviços de Documentação, Reprodução de documentos, Teoria da informação e Cibernética.

 

Como justificativa à proposta apresentada, a Comissão composta por: Abner Lellis Corrêa Vicentini, Cordélia Robalinho de Oliveira Cavalcanti, Edson Nery da Fonseca, Etelvina Lima, Nancy Westefallen Corrêa, Sully Brodbeck, Zilda Machado Taveira; enfatizava que:

 

“O extraordinário desenvolvimento da ciência e da tecnologia teve como consequência um aumento vertiginoso da produção de documentos. Este já se constitui num dos problemas cruciais do estudioso moderno, sem tempo para tomar conhecimento de tudo o que se divulga no setor de seu interesse”.

 

Nota-se nas ementas uma espécie de presságio para a realidade da atividade bibliotecária vivida na atualidade. Se inserirmos os comentários em alguma proposta atual de formação, dificilmente se perceberia a distância histórica de 50 anos. Mas prossegue a Comissão:

 

“Há que preparar bibliotecários capazes de organizar e dirigir bibliotecas e serviços de documentação, selecionar material bibliográfico altamente especializado, redigir resumos de trabalhos científicos, realizar pesquisas bibliográficas, orientar leitores, lidar com processos eletrônicos de armazenagem e recuperação de informações”.

 

Apesar das palavras estarem em contexto cultural e tecnológico de um passado distante, são atuais e pertinentes. Como se o retrato de nossa realidade profissional fosse um espelho côncavo, distorcendo nossa imagem.

 

Segundo Laura Russo, a proposta não foi aceita pelas Escolas de Biblioteconomia, na época, por entenderem que o curso era e deveria ser técnico e não humanístico. Assim, gerações de bibliotecários acabaram condenados a uma formação técnica e limitante. E a serem pejorativamente denominados de "tecnicistas", no sentido de bullying ou, ainda, se acomodarem com tal formação e nas suas práticas profissionais e cidadãs. As mudanças propostas de formação ficaram para a história.

 

No citado seminário do CFB/CRBs, constatou-se que praticamente a maioria das Escola de Biblioteconomia não oferecem disciplinas específicas para biblioteca escolar, pública, sem dizer das universitárias. Pouca ênfase é dada a questão da ética profissional.

 

Ao que parece, em nosso espelho profissional atual, falta uma identidade, uma face mais socialmente reconhecida. Parece que queremos tudo, conseguimos pouco e, menos ainda, algum reconhecimento social.

 

Não basta, também, apenas discutir para onde vamos ou o que podemos fazer. Valeria repensar quem somos. Talvez seja este o rumo que perdemos ou deixamos a deriva, esquecido em algum retrado de 50 anos atrás.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.