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O SERVIÇO TÉCNICO E AS MUDANÇAS TECNOLÓGICAS

Nas discussões sobre a atual demanda dos usuários enfrentada pelas bibliotecas, costuma-se citar o conceito "princípio de mínimo esforço", proposto pelo filósofo George Zipf, no qual as pessoas não apenas utilizam informações de fácil localização, mas intencionalmente fazem uso de informações de má qualidade e pouca confiabilidade, contanto que requeira pouco esforço para ser encontrada; ao invés de utilizar informações de qualidade e confiável, embora de difícil localização. Isto apesar do esforço bibliotecário em prover acesso a informação qualificada.

 

Um relatório desenvolvido pelo Bibliographic Services task Force Force of the University of California Libraries apontou as expectativas dos usuários para com os serviços bibliotecários:

 

§  Oferecer um sistema de pesquisa que cubra um amplo universo de informações a exemplo do Google.

§  Prover metadados descritivos enriquecidos com sumários e imagens das obras.

§  Dispor acesso ao texto completo de forma fácil; apenas fornecer o registro bibliográfico não é suficiente.

§  Classificar os resultados da consulta por ordem de relevância.

§  Permitir navegação auxiliada através de recuperação estruturada por tópicos ou assuntos hierarquizados.

§  Ajuda na escolha das melhores fontes de informação por meio do índice de relevância.

§  Serviço de consulta customizado e personalizado.

§  Privacidade e segurança.

§  Dispor vários formatos: e-books, MPEG, JPEG, RSS e outras tecnologias (push) para circular a informação.

§  Links diretos para mensagens instantâneas e conteúdos compartilhados.

§  Acesso às comunidades virtuais.

§  Acesso ao que a biblioteca tem a oferecer sem ter que visitá-la presencialmente.

 

A questão decorrente que é levantada se refere ao entendimento sobre o que há neste ambiente idealizado pelo usuário, de interesse para os bibliotecários que trabalham no setor dos serviços técnicos?

 

Deanna Marcum, em artigo de 2006, "The Future of Cataloging" (Library Resources & Technical Services, v. 50, n. 1), observa que as bibliotecas não detêm mais o monopólio do acesso a informação, e para a sobrevivência necessitarão adentrar ao ambiente digital. Assim, destaca se os livros e periódicos, que já se encontram acessíveis online, não deveriam considerar os motores de busca como meio de acesso pelo bibliotecário. Questiona se diante da maciça digitalização, que muda radicalmente a natureza das bibliotecas, não faria mais sentido dedicar esforços na catalogação de materiais exclusivos, ao invés de livros e revistas.

 

Na atualidade, vê-se a introdução de novas normas catalográficas e o formato MARC praticamente se encontra em todas as bibliotecas do mundo, bem como sua substituição já é processo em desenvolvimento. Como podemos realizar mudanças massivas na biblioteca sem criar o caos? Neste questionamento, adicionava-se a preocupação em relação ao proceder com a RDA (Recurso: Descrição e Acesso) em um ambiente que está mudado até mesmo por desejar mudar?

 

Uma das variáveis que tem afetado as bibliotecas norte-americanas, nos últimos anos, são os cortes orçamentários enfrentados por grande parte delas, e que obrigam a repensarem seus processos, quando não a fechar algumas das suas unidades ramais.

 

No Brasil, as bibliotecas, em sua maioria, não enfrentam problemas orçamentários, até mesmo por não terem verbas próprias para gerir seus processos. Porém, há algo em comum entre os dois contextos, quando se comenta sobre o setor de serviços técnicos.

 

A identificação, por parte do catalogador, da contribuição dada para suas comunidades com os seus métodos (regras catalográficas, etc.), e o produto decorrente - o catálogo.

 

Segundo Karen Calhoun, na identificação desta contribuição, ocorre o perigo do chamado “miopia em marketing”, conceito adotado para descrever uma visão incorreta sobre o produto e/ou serviço que uma organização oferece ao invés da identificação das necessidades que estes produtos e serviços se destinam, ou seja, se concentrar no produto em vez dos usuários deste produto. No contexto das bibliotecas a miopia é comum.

 

Outra questão que paira sobre o setor de tratamento da informação é a ociosidade existente. Entretanto, catalogadores negam tal ociosidade, pois materiais bibliográficos continuam a inundar o espaço de aquisição e de catalogação, ocupando as equipes. Porém, surgem questionamentos direcionados aos catálogos online e à diminuição de sua procura como recurso de busca.

 

Na economia, uma empresa é considerada saudável quando a demanda por seu produto e a capacidade de produzi-lo estão em equilíbrio. Para Lee Eden (Information Technology and Libraries, 2010), as bibliotecas acadêmicas, por exemplo, investem na infraestrutura de produção de seus catálogos bibliográficos, mas os motores de busca são os recursos favoritos dos estudantes e docentes para iniciar uma pesquisa acadêmica.

 

Muitos usuários ignoram ou desconhecem os catálogos bibliográficos, mesmo assim, as bibliotecas seguem investindo nos mesmos e nas coleções por eles descritas sem muita reflexão sobre as mudanças de interesse do seu próprio público.

 

Seria interessante buscar formas melhores e mais eficiente para se organizar e descrever as informações não baseadas apenas na sua finalidade de localização dos registros.

 

Bibliotecas tradicionalmente têm trabalhado no fornecimento de recursos como controle de autoridade, classificação de assunto e localização de registros bibliográficos, algo essencial quando se detinha o monopólio do acesso às informações, mas que já não representam excelente custo-benefício nas estratégias atuais do mercado de informação.

 

Estudos em bibliotecas norte-americanas indicam que mais de 80% das pessoas não acessam o catálogo bibliográfico, iniciam suas pesquisas por meio dos motores de busca da web. Entretanto, bibliotecas investem recursos humanos e prioridades no trato de registro em formato MARC como uma luta para sobreviver e adaptar-se a um ambiente no qual são apenas mais um dos muitos agentes do novo mercado de informação.

 

No Brasil, não há dados completos sobre a questão, porém não cria nenhuma surpresa o fato de existirem bibliotecas sem catálogos, outras ainda na idade da ficha lascada, e várias iniciando migração para catálogos online, sem planejamento ou adequação às características da comunidade a ser servida.

 

Baixos recursos financeiros, baixo estímulo da equipe, surgimento de novos formatos de informação exigem atenção, e os usuários são impacientes na utilização do OPAC. Isto decorre do fato de cada biblioteca seguir apoiada em uma infraestrutura de compra e oferta dos mesmos livros, CDs, DVDs, revistas etc., enquanto o novo ambiente tecnológico descortina às bibliotecas a possibilidade de apresentar seus recursos informacionais e coleções exclusivas para o mundo.

 

Coleções bibliográficas antes restritas às pesquisas e às bibliotecas públicas, no mundo, podem agora ser digitalizadas, e os recursos financeiros escassos das mesmas devem ser ajustados para possibilitar competir e oferecer essas coleções exclusivas e seus serviços para os usuários e para o mundo conectado.

 

A bibliotecária Frank Cervone (Dreaming of a Better ILS, Computers Libraries, n. 27, 2009), considera que os catálogos são um anacronismo. Os sistemas integrados de bibliotecas deveriam oferecer um sólido processo de negócio que pudesse favorecer as funções da biblioteca que são únicas, como circulação, aquisição de materiais e a catalogação no nível do item para equivalência aos processos de controle de inventário. Outras funções dos sistemas integrados tradicionais poderiam operar em um sistema centralizado, como o fornecido pela OCLC no modelo de catalogação cooperativa. O catálogo deveria ser tratado apenas como um outro banco de dados de recurso que temos acesso. Uma interface única para recursos que combinaria acervos impressos locais, textos eletrônicos (revistas e livros eletrônicos), e material multimídia.

 

Lee Eden recomenda aos catalogadores a leitura do livro de David Weinbergers: Everything is Miscellaneous. Na obra é descrito três processos de ordenamento (auto-organização, metadados, e conteúdo digital); fornece uma ampla história da civilização ocidental sobre como ordenou-se as informações, especialmente as conexões para a era Vitoriana do século 19; e o conceito de agregados. Finaliza com o argumento de que o ambiente digital permite que os usuários manipulem informações em seu próprio sistema de organização, desconsiderando as tentativas anteriores de organização realizadas por supostos especialistas, baseados em sistemas desatualizados e arcaicos. Na desordem digital de informações, um objeto (como uma folha) pode ser colocado em muitas prateleiras (ramos), de forma figurativa, e esta nova forma de conhecimento apresenta quatro princípios estratégicos:

 

§  Filtrar o caminho externo, não o caminho interno.

§  Colocar cada folha em todos os ramos quando possíveis.

§  Tudo é metadados e tudo pode ter uma etiqueta.

§  Dar o controle.

 

O último princípio coloca-se como desafio para as bibliotecas. Estar de acordo com o princípio é secundário. Ignorá-lo ou seguir do mesmo modo na condução do modelo de negócio da biblioteca, dificilmente mudará o fato de que a informação é controlada pelo usuário no ambiente digital.

 

Autores observam que, embora não se tenha plena certeza, as estratégias de pesquisa e de descobertas de informações pelos usuários são indicações a serem consideradas pelos bibliotecários para desenvolverem novas opções e novos direcionamentos de seus serviços.

 

Nesta encruzilhada causada pelos impactos das mudanças na biblioteca, o setor técnico apesar de diretamente afetado, é pouco dimensionado em seu ajuste às mudanças.

 

Karen Calhoun em relatório para a Library of Congress: The Changing Nature of the Catalog and its Integration with Other Discovery Tools, comenta que o setor de serviços técnicos tem sido o patinho feio na lagoa biblioteca, trombeteado por um quinteto de cisnes composto pelos setores: de referência (aquele com respostas para um público agradecido); de tecnologia (residência dos magos que mantêm os computadores funcionando); infanto-juvenil (área dos educadores acolhedores e aconchegantes); outros setores de serviços especiais (especialistas em boa leitura, música, arte, direito, negócio, saúde, documentos governamentais, obras raras e manuscritos); e os grupos administrativos (composto pela chefia e subchefias). Parte do problema é que muitos colegas desconhecem o que realmente fazem o pessoal de serviços técnicos. Eles só sabem que a atividade pode ser feita de porta fechada e comunicada em uma linguagem que ninguém entende. Se não pode ser vista, não pode ser compreendida, e não pode ser discutida, é como fumaça, sem substância real. Assim, é fácil de ser ignorada.

 

Olhe no caso brasileiro, você encontra grupo de bibliotecários jurídicos, de profissionais da saúde, grupo de vocabulário controlado. Já, de catalogadores, inexistem, mesmo em grandes universidades com catálogos coletivos.

 

Assim, o que fazem os catalogadores tradicionais em tempo de transição: operam dentro dos limites dos padrões; descrevem itens um-a-um integralmente; tratam itens destinados a caber no aplicativo do catálogo; ignoram o resto do mundo de informações.

 

O que poderiam fazer como bibliotecários de metadados: pensar sobre os dados descritivos sem preconceito em torno do nível descritivo ou vocabulário; considerar a totalidade das questões de descoberta e acesso em torno de um conjunto ou coleção de materiais; estar consciente da evolução da necessidade dos usuários; estar familiarizado com os formatos e codificações de metadados no universo da informação. Até mesmo interligar externamente os catálogos.

 

Na característica do ambiente de serviço técnico sob novo contexto digital, o enfoque não é mais o sistema de gerenciamento de biblioteca; as utilidades bibliográficas passam a se tornarem nós centrais para todos os dados (ver exemplo da OCLC – WorldCat). Ninguém, ao certo, sabe onde tudo isso vá chegar, mas bibliotecários de metadados já se mostram essenciais para forjar soluções em um novo ambiente da biblioteca.

 

Bibliotecários de metadados, são em essência a reconfiguração sob novas competências e cultura técnica dos bibliotecários tradicionais de catalogação.

 

No contexto brasileiro, esta reconfiguração ocorre no setor dos serviços técnicos existentes em biblioteca? Certamente sim, porém lenta e em geral apenas em poucas bibliotecas universitárias.

 

Apesar de considerar as mudanças no perfil do catalogador, Peter Brantley (Educause Review 43, n. 2, p. 31-38, Mar./Apr. 2008), lista uma série de mantras que alertam a biblioteca para não desconsiderar nos esforços de construir um novo ambiente de informações:

 

§  Bibliotecas devem estar disponíveis em todos os lugares.

§  Bibliotecas devem ser concebidas para ficarem melhores com o uso.

§  Bibliotecas devem ser móveis.

§  Bibliotecas devem saber onde estão.

§  Bibliotecas devem contar histórias.

§  Bibliotecas devem ajudar as pessoas a aprenderem.

§  Bibliotecas devem ser ferramentas de mudanças.

§  Bibliotecas devem oferecer caminhos para a exploração.

§  Bibliotecas devem auxiliar a forjar a memória.

§  Bibliotecas têm que falar para as pessoas.

§  Bibliotecas devem estudar a arte da guerra.

 

Os mantras ilustram que cada uma das questões deve estar alinhada com o trabalho realizado pelo setor de serviço técnico, enquanto atividade de suporte aos demais serviços da biblioteca.

 

Definitivamente, não há um caminho certo para a biblioteca e para o seu setor de serviço técnico seguir em frente. Cada biblioteca com as características únicas de seus serviços e de sua equipe tem que definir, iniciar e gerir diálogo sobre as mudanças e a direção estratégica a ser adotada.

 

Entretanto, qualquer objetivo a ser tomado para as mudanças deve ter por foco os usuários, ainda que estes prefiram consultar a internet. Afinal, podem encontrar a biblioteca no espaço digital, nós (bibliotecários) precisamos saber como. De outro lado, não esquecer que a atividade do catalogador também é uma atividade de referência e, portanto, também é uma atividade de mediação, seja no presencial ou no virtual, apenas precisamos saber como acentuar mais está característica.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.