INICIANDO DIÁLOGOS SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E OS PROCESSOS INFORMACIONAIS
Gracy Kelly Martins
Gisele Côrtes
O Grupo de Estudos e Pesquisas em Mediação e Representação da Informação e Marcadores Sociais da Diferença (GeMinas), vinculado à Universidade Federal da Paraíba, dinamiza estudos e pesquisas com foco na Mediação, na Organização, na Representação e na Apropriação da Informação em interface com as categorias gênero, raça/etnia e classe social. Foi criado em maio de 2020, objetivando contribuir para a intersecção dos estudos informacionais e questões sociais, políticas e culturais, na perspectiva do protagonismo social e do respeito à alteridade.
Iniciamos este texto agradecendo pelo convite para participar do diálogo e abordaremos um dos temas pesquisados por integrantes do GeMINAS - a violência contra as mulheres, que é uma grave violação dos direitos humanos. Todes nós conhecemos uma mulher que sofre/sofreu violência. Infelizmente, esse fenômeno é uma prática presente no cotidiano das mulheres, o que explicita a misoginia de nossa sociedade.
Dados do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) apontam que, no Brasil, em 2021, houve 1.341 casos de feminicídio, dos quais 62% eram mulheres negras. A cada hora, duas mulheres negras são estupradas no país, conforme o Dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva (CRIOLA, 2020/2021). No que tange às travestis e às mulheres trans, de acordo com o Dossiê Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras (ANTRA, 2021), em 2020, a cada dois dias, uma travesti ou mulher transexual foi assassinada no Brasil. Um levantamento da Associação de Gênero e Número (2020) (1), com base no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), mostrou que, em 2020, uma média de sete mulheres com deficiência foram vítimas de violência sexual por dia. Pesquisas evidenciam que a maior parte das agressões acontecem no âmbito doméstico e familiar, e os agressores, em geral, são homens com quem as mulheres têm ou tiveram vínculos de afeto. (SILVA; CÔRTES, 2021).
Os vários tipos de violência cometidos contra as mulheres são o cerne do sistema patriarcal, um regime em que as mulheres são dominadas e exploradas pelos homens, presente na sociedade como um todo, conforme Heleieth Saffioti (2015). Nesse sistema, a categoria social homem tem legitimidade para controlar e normatizar a conduta das mulheres. Para isso, pode utilizar a força física, caso julgue necessário (SAFFIOTI, 2001).
A magnitude dos casos consubstanciados nas vivências das mulheres e nos registros de órgãos específicos de atendimento, como, por exemplo, as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres, reflete a lógica patriarcal de gênero e denuncia que as mulheres brasileiras lutam intensamente para sobreviver e viver com autonomia apesar da violência a que são submetidas cotidianamente.
Nas ações praticadas para prevenir e enfrentar a violência contra as mulheres, um dos desafios envolve a falta de consistência e a insuficiência de dados quantitativos oficiais, que obstacularizam o real panorama do fenômeno, a tomada de decisões e a implantação de políticas públicas condizentes com as necessidades informacionais das mulheres. Os índices, em geral, são subnotificados, no que diz respeito à realidade cruel, porquanto uma parcela significativa de mulheres não consegue acessar os órgãos de atendimento. Fatores como o medo, a vergonha de expor a intimidade, a falta de acesso à informação e aos serviços de atendimento e a máxima ainda presente no imaginário social de que “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” dificultam a formalização da denúncia e o rompimento com o ciclo de violência.
No auge da pandemia da Covid-19, por exemplo, devido ao isolamento e às restrições sociais - medidas fundamentais para conter a contaminação do SARS-CoV-2 – as vítimas tiveram mais dificuldades de acessar as redes de apoio, como familiares, amigos/as e os serviços de saúde, assistência social, segurança pública, dentre outros. Além disso, o fato de pertencerem a classes sociais menos favorecidas economicamente causou (e ainda continua causando) mais obstáculos para que as mulheres e os homens tivessem/tenham acesso à educação, à saúde, à assistência social e a capitais culturais e informacionais, potencializando situações de exclusão e marginalização social.
Neste cenário, consideramos fundamental analisar o multifacetado e complexo fenômeno da violência contra as mulheres sob o prisma interseccional, com vistas a mostrar como as categorias de gênero, classe social e raça se entrelaçam na dimensão institucional, simbólica e individual dessas vivências. Angela Davis (2018, p. 21) refere que “[...] raça, gênero e classe são inseparáveis nos contextos sociais em que vivemos.”
As categorias de análise que incluem raça, classe e gênero, como estruturas de opressão distintas e entrelaçadas, contribuem para compreendermos as bases estruturais de dominação e subordinação, alimentadas pelas instituições, por ideologias socialmente validadas, pelas imagens simbólicas e pelas dimensões individuais de poderes e privilégios (COLLINS, 2015).
No Brasil, algumas ações impulsionaram o reconhecimento e a visibilidade das mulheres, num desencadeamento histórico, por meio de um sistema de igualdade, como a permissão para frequentar escolas em 1827; o direito de ingressar na universidade em 1879; a criação do primeiro partido político - o Partido Republicano Feminino - em 1910; o sufrágio feminino, garantido pelo primeiro Código Eleitoral Brasileiro, no ano de 1932, e o protagonismo social das mulheres em prol desse direito.
Ressalte-se, no entanto, que, no âmbito das políticas públicas específicas, para as mulheres em situação de violência, somente no ano de 1985 foi criada a primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM), em São Paulo, que visa proteger e investigar crimes de violência doméstica e sexual contra as mulheres e que se expandiu para outros estados. Essa iniciativa suscitou a criação de Casas Abrigos, Centros de Referência Especializados no Atendimento às Mulheres (CRAM), Centros de Referência Especializados em Assistência Social (Creas), Defensorias das Mulheres, além da criação de legislações específicas.
Em 1988, a promulgação da Constituição Brasileira garantiu alguns direitos legais e abriu caminhos para as mulheres se fortalecerem e conquistarem a cidadania. No que diz respeito à garantia da segurança e da integridade das mulheres em relação à violência, destacamos a significativa luta, em especial, dos movimentos feministas e de mulheres, para tipificar a violência e sua criminalização. Assim, em 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha - Lei nº 11.340/2006 - voltada para combater a violência doméstica e familiar contra as mulheres. A referida Lei foi inspirada na história de violência sofrida por Maria da Penha, uma farmacêutica que foi vítima de tentativas de homicídio por parte de seu ex-marido, que só foi preso e condenado 20 anos depois. Em 2015, foi reconhecido o feminicídio, um homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher ou de violência doméstica, como crime hediondo qualificado com a criação da Lei nº 13.104/2015. Outras leis importantes também foram criadas, direcionadas às mulheres, como a Lei nº 13.718/2018, que tipifica os crimes de importunação sexual, a divulgação de imagens de estupro, crimes contra a liberdade sexual e crimes sexuais contra vulneráveis; e a Lei nº 14.192/21, recentemente promulgada, que previne, reprime, combate e penaliza a violência política contra as mulheres relativa à divulgação de materiais de conteúdo inverídico no período de campanhas eleitorais e assegura a participação das mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de pessoas candidatas.
Essas são, sem dúvida, importantes conquistas feministas, de longas lutas, por igualdade e equidade nos espaços sociais. Entretanto, muitas dessas violências são naturalizadas e se repetem diariamente no ambiente privado e no público. Para além da violência física e sexual, elas se manifestam de várias maneiras e precisam ser disseminadas a fim de serem enfrentadas.
Nessa perspectiva, o Geminas discute sobre esses tipos de violência presentes nos regimes informacionais vigentes e entranhados nos processos informacionais, buscando a interface com as categorias gênero, raça e classe social. Nas discussões sobre conceitos e práticas, essas questões recebem especial atenção quanto aos processos de mediação da informação, implícita e explícita, com o fim de promover, por meio da organização, do acesso e da apropriação da informação, um protagonismo social que previna a violência, combata-a e proteja as mulheres na sociedade.
Assim, constantemente, evidenciamos a violência, desnaturalizamos o silenciamento e ficamos omissos aos acontecimentos e à culpabilização das mulheres. Nesse contexto, as informações são importantes recursos e dispositivos de segurança e fortalecimento para as mulheres. Dentre os tipos de violência doméstica e familiar contra as mulheres, tipificadas pela Lei nº 11.340/2006 (BRASIL, 2006, online), estão:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou sua saúde corporal;
II – a violência psicológica: qualquer conduta que cause à mulher dano emocional, prejudique-lhe a autoestima ou seu pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual: qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, por meio de coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial: qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer às suas necessidades;
V – a violência moral: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
A tipificação e a criminalização dos tipos de violência, delineados nas diretrizes da Lei Maria da Penha, contribuem para o enfrentamento da naturalização da violência. São questões importantes a serem enfrentados nas ações de mediação, organização e representação, por meio da produção de novos sentidos e da geração de conhecimentos.
Para além dos espaços onde comumente presenciamos e vivenciamos essas formas de violências, o GeMinas tem empreendido esforços investigando e discutindo sobre as violências no ambiente digital, como por exemplo, a reprodução dessas violências a assistentes digitais (SAMPAIO, MARTINS, CÔRTES, MOTA, 2021) e como a agressão física e sexual têm se transmutado para espaços como o Metaverso - plataforma da empresa Meta (2) (MARTINS, MOTA, SAMPAIO, CÔRTES, 2022, no prelo). Nessa direção, apresentamos aqui um primeiro diálogo sobre a temática e deixamos um questionamento para refletirmos e continuarmos esta discussão em outras oportunidades: “Em nossas pesquisas e atuação em unidades informacionais como podemos ter uma práxis comprometida com a prevenção e o enfrentamento à violência contra as mulheres?”
REFERÊNCIAS
BENEVIDES, Bruna (Org.). Dossiê assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf. Acesso em: 5 nov. 2022.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 29 nov. 2022.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 ago. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 29 nov. 2022.
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BRASIL. Lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo [...]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 set. 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm. Acesso em: 29 nov. 2022
BRASIL. Lei nº 14.192/2021, de 4 de agosto de 2021. Estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher [...]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 ago. 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14192.htm. Acesso em: 29 nov. 2022.
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Notas
1 - https://www.generonumero.media/reportagens/retrospectiva-2020/
2 - https://about.meta.com/br/metaverse/
Gracy Kelly Martins – gracykelly@gmail.com
Gisele Côrtes – giselerochacortes@gmail.com