CMAI – COMPETÊNCIA E MEDIAÇÃO EM AMBIENTES DE INFORMAÇÃO


  • O objetivo do grupo CMAI se concentra em aprofundar percepções teóricas e práticas da Ciência da Informação, Biblioteconomia e áreas correlatas, que dialoguem com as temáticas oriundas da sociedade contemporânea. As repercussões do grupo estão focadas em um sistema aberto de retroalimentação constante, no qual reflexões se interrelacionam com as práticas, direcionadas para a consolidação da comunidade científica e profissionais mais atuantes, criativos, motivados, inovadores e protagonistas. O grupo reúne pesquisadores, alunos e profissionais interessados em investigar objetos de estudo que dialogam com as teorias basilares do CMAI, quais sejam: Competência em Informação e Midiática; Comunicação e Divulgação Científica; Mediação, visando propor diagnósticos, reflexões, ações e modelos que atendam as demandas sociais.

DESINFORMAÇÕES E A FORMAÇÃO DO BOLSONARISMO

Stephan Sandkötter

Informações são um conjunto de dados e conhecimentos, que podem constituir referências sobre um determinado fato ou fenômeno e contribuir para resolver problemas. Mas o contrário faz também sentido: Desinformações, ou seja, informações enganosas ou falsas são intencionalmente divulgadas para promover uma agenda e enganar ou manipular pessoas.

Com o avanço da tecnologia, a geração de informações está aumentando exponencialmente. A mesma exponencialidade vale também para o aumento de desinformações. Ainda que faltem indicações exatas sobre as quantidades e a gravidade do fenômeno de desinformações, se faz evidente constatar que fake news se espalham via internet e, em especial, por meio de plataformas sociais como Facebook, Twitter, Instagram, TikTok, WhatsApp, Telegram ou portais de vídeos como YouTube. O fenômeno relevante dessa divulgação rápida de desinformações desde o lançamento de Facebook em 2004, implica em graves consequências para as áreas política e cultural da sociedade brasileira.

A internet se popularizou como mídia de massas a partir de 2007 com o surgimento de smartphones, e, a partir de 2013, redes sociais digitais se tornaram amplamente disponíveis para a população brasileira. Em 2018, 64,7% da população brasileira tinha algum acesso à internet o que implica evidentemente o uso de redes sociais – majoritariamente por telefones celulares (DUNKER, 2019, p.120-122).

Essas redes sociais têm sido criticadas por facilitar a criação de bolhas sociais. O termo bolha social é usado para descrever um coletivo de pessoas que troca ideias, pensamentos, opiniões que permanecem dentro do próprio espaço e servem como apoio da própria visão do mundo. Este fato pode levar à dificuldade ou falta de vontade em compreender as perspectivas de pessoas fora da bolha social. Esse fenômeno pode levar a uma limitação na diversidade de informações e pode perpetuar preconceitos e polarizações (PARISER, 2017, p.11).

A conexão entre informação, desinformação, redes sociais e a existência de bolhas sociais é um excelente ponto de partida para analisar a aparência e o estabelecimento do neologismo bolsonarismo, um termo que se refere a um movimento político e ideológico que representa um Brasil autoritário, nacionalista, antidemocrático e que defende valores como oposição a opiniões contrárias, polarização emocional e acentua o bordão da campanha: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos“ (SOLANO, 2019, p.316-320).

Vale a pena lembrar o surgimento e desenvolvimento desse movimento cujo homem que deu nome ao movimento, se tornou o trigésimo oitavo Presidente do Brasil em 2018. O aparecimento do bolsonarismo deve ser analisado da perspectiva do desenvolvimento econômico e político da sociedade a partir da segunda década dos anos 2000.

O aparecimento do bolsonarismo e o papel de desinformações

A primeira década dos anos 2000 trouxe uma valorização expressiva das commodities e a consequente ampliação das possibilidades na área social. A crise financeira do mercado econômico mundial, a partir de 2007, fez emergir os velhos problemas de falta de produtividade e competividade do mercado brasileiro numa economia global ainda em declínio por causa das consequências da crise financeira. É preciso lembrar que: dentro de uma década 42 milhões de brasileiros e brasileiras passavam da miséria para a pobreza e da pobreza para a classe média (baixa). Desde então, o povo se acostumou com melhorias materiais e reagiu, compreensivelmente, de forma insensata e indignada com a recessão econômica (ALVAREDO, 2018, p. 211-214;  SANDKÖTTER, 2019, p.158-161).

Em 2013, o símbolo de 20 centavos nas tarifas de ônibus em São Paulo, se tornou símbolo nacional pelo descontentamento das massas com a vida cotidiana e deu início a um amplo movimento em segmentos da sociedade até esse momento não conhecidos como grupos de protesto e manifestantes. Havia muito descontentamento e crítica, e a agenda se expandiu rapidamente: qualidade de serviço público, gastos em estádios construídos para a Copa do Mundo, e, evidentemente, a ineficiência da representação pública (MELO, 2019, p.217-227). Em suma, podem ser registrados três aspectos que documentam a profundidade da crise e que seguiram da crise inicial com os protestos e manifestações nas ruas em 2013 até a campanha eleitoral de 2018.

Em primeiro lugar, a crise econômica durante o segundo mandato de Dilma, que implicou além da queda da produção industrial, em aumentos de inflação e desemprego que dificultaram o cotidiano de grandes contingentes da população brasileira.

Em segundo lugar, o país foi abalado por vários escândalos de corrupção. Segundo Gomes (2019, p.178-181), o Mensalão e a operação Lava Jato se tornaram símbolos de uma crise que acelerou a consolidação de um discurso, que identificou a corrupção promovida por políticos e seus partidos (não somente o PT), como o grande responsável pelo profundo mal-estar de expressiva parcela da população brasileira.

E em terceiro lugar, a crescente da instabilidade política. Pouco a pouco, aliados políticos de Dilma se voltando contra ela, impuseram o ilegítimo impeachment mas não conseguiram mudar o precário cenário nacional. Pelo contrário, o que deve ser constatado, é o fim da bipolaridade partidária entre o PT e o PSDB que assegurava o desenvolvimento nacional desde o primeiro mandato de FHC em 1994.

Os dois partidos, PT e o PSDB, incluindo ainda os mais tradicionais como, por exemplo, o (P)MDB, ocupados com a burocracia do poder e das responsabilidades de governabilidade, sofreram um enorme desgaste da institucionalidade e são culpados pelas crises econômicas, sociais e morais (SOLANO, 2019, p.308-310). A impressão de roubo dos políticos piorava a completa situação política e econômica com os próximos passos já conhecidos: impeachment (2016) e continuação da crise econômica até as eleições de 2018.

A ascensão do fenômeno e o papel de desinformações

Um homem do chamado baixo clero de políticos brasileiros, conhecido por reiteradas declarações homofóbicas, racistas, misógimas e de enaltecimento a torturadores, tendo 8% de intenção de votos no mês de abril de 2018, percebeu a situação política alarmante e preocupante, além do fato da exaustão de expressivas parcelas da população brasileira com a situação geral. Essa exaustão serviu de base para que Bolsonaro começasse uma verdadeira marcha triunfante até o Palácio do Planalto, que culminou com sua eleição no dia 28 de outubro daquele ano, algo que não pode ser explicado apenas pelo fato da inelegibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva – decretada pelo STF no dia 31 de agosto de 2018 -, até então o candidato mais cotado em todas as pesquisas de intenção de voto.

Na reta final da campanha e, em especial, depois do primeiro turno, a aprovação dele aumentou em setores da sociedade até então pelo menos distantes ao candidato: mulheres e pessoas de baixa renda. Apesar da maior mobilização na campanha contra ele, por exemplo, a campanha #EleNão, Bolsonaro conseguiu mais intenções de voto de mulheres através de uma operação de envio de fake news nas redes sociais. (1). Desinformações com respeito à família, ao candidato advesário Lula, às instituições democráticas, em especial ao STF, entre outras, provocaram uma mudança de opinião em mulheres, especialmente nas camadas com menor formação e qualificação (SINGER; VENTURI, 2019, p.358-368) (2).

Segundo a Folha de São Paulo a equipe de Bolsonaro contratou serviços de impulsionamento de mensagens em longa escala no WhatsApp (3). É evidente que a manipulação de dados e informações de forma intencional ou ingênua e orquestrada e financiada por interesses empresariais e enviadas por empresas estrangeiras de comunicação foi decisiva para a vitória do candidato e mostra com muita clareza a relevância de fake news no resultado da eleição (presidencial) daquele ano (4). Este tipo de comunicação digital produzia uma extensa divisão social ( GOMES, 2019, p.176-178).

Deve ser acrescentado ainda o discurso de ódio e intolerância. Foi provado por várias mídias - tanto convencionais como televisão, rádio, jornais, revistas e outras como também através das novas mídias, como rede sociais e podcasts - que ele fez diversas declarações polêmicas e equivocadas em relação a minorias sociais, incluindo mulheres, negros, indígenas, LGBTQIAP+ e outros grupos vulneráveis (idem, p.181) (5).

Além disso, ele se aproveitou do esgotamento político por causa dos escândalos de corrupção e da vida cotidiana do cidadão e abordou temas que outros candidatos e outras candidatas pelo menos não privilegiaram: a liberação de armas como aspecto fundamental para diminuir a sensação de insegurança, um nacionalismo chauvinista e um liberalismo econômico radical desejados pelo menos por grandes partes do mercado financeiro (MELO, 2019, p.213-216).

Um outro fator essencial vale ser mencionado. O Brasil, desde sempre, conta com uma direita fundamentalista em relação à tradição e aos costumes; lembrando da entidade ultraconservadora TFP (Tradição, Família e Pátria) nos anos 60 ou a Ação Integralista de Plínio Salgado e a União Democrática Nacional, mas também o malufismos e outros grupos mais recentes (SANDKÖTTER, 1999, p.62-68). Ou seja, a raiz do fenômeno Bolsonaro tem uma longa tradição.

Fora dessa tradicional ala autoritária, três segmentos da atual sociedade brasileira apoiam, preferencialmente, a visão política de Bolsonaro: A parte conservadora do militar, especialmente no exército militares jovens e de patentes mais baixas por causa da posição positiva dele em relação a ditadura militar e o seu discurso quanto ao combate de corrupção. Um outro setor pequeno, mas poderoso e influente de apoiadores se encontra nos grupos dos ruralistas, porque Bolsonaro defende constantemente e rigorsamente os interesses dessa aglomeração que representa interesses do agronegócio (FAUSTO, 2019, p.136-138).  

Contudo, o grupo maior dos eleitores e apoiadores de Bolsonaro vem das Igrejas evangélicas – em especial as de cunho pentecostal -, porque os fiéis apoiam e aprovam um presidente cristão, com valores decididamente conservadores com respeito ao aborto e ao pensamento em dimensões de gênero (6).

Considerações finais

É ainda muito precoce ousar uma análise profunda dos quatro anos de governo de Bolsonaro. Mas já no início de 2023, se faz evidente ressaltar que o novo governo tem que enfrentar imediatamente um legado do governo Bolsonaro que se compõe de dois aspectos: o combate ao fenômeno de desinformações (7) e a polarização antagônica na sociedade, que se mostra na lógica binária o bem versus o mal. Se faz necessário a tentativa de reconciliar os lados opostos.

Vale acentuar que as instituições brasileiras demonstravam uma notável robustez nas crises dos últimos anos, inclusive quando mais de mil vândalos invadiram o Congresso, o Planalto e o STF no dia 08 de janeiro de 2023 e deixavam um rastro de destruição. Essa robustez parece ser um elemento necessário e importante para a defesa da democracia. Mas será também necessário o engajamento permanente dos cidadãos e das cidadãs em favor da democracia.

Um aspecto central do engajamento para a democracia é a conscientização pela redução substancial de fake news. Embora seja um desafio de toda a sociedade, vale acentuar a responsibilidade de (pelo menos) três setores. Em primeiro lugar, deve ser insistido na responsabilidade das mídias – tanto convencionais como as chamadas mídias sociais – que devem pensar juntos na instalação de um sistema de verificação completa de fatos. A instalação de um tal sistema de verificação pode provocar até um grande movimento na sociedade civil, para poder aperfeiçoar esse projeto de esclarecimento.

É tambem de fundamental importância o papel da religião, em especial a Igreja católica e as Igrejas evangélicas. Poderia surgir um projeto ecumênico que ressalta a necessidade da cooperação para erradicar o mal da desinformação, que afeta toda comunidade religiosa e toda sociedade.

E em terceiro lugar, há a possibilidade de uma grande contribuição da comunidade científica, ou seja, de estudantes e professores que poderiam acentuar um trabalho de conscientização e esclarecimento por meio de projetos e eventos públicos. Segundo os dados do MEC de 2021, existem 2574 instituições de ensino superior e são matrículados quase nove milhões de estudantes (8). Esse grupo total junto com as professoras e os professores podem se tornar multiplicadores de informações verídicas, e fomentar uma verdadeira e autêntica discussão em todas áreas da sociedade brasileira.

Referências

ALVAREDO, Facundo et al. (Orgs.). The World Inequality Report. München. 2018.

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Psicologia das massas digistais e análise do sujeito democrático. In.: Abranches, Sergio et al. (Orgs.). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras. 2019.116-135p.

FAUSTO, Boris. A queda do foguete. In: Abranches, Sergio et al. (Orgs.). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras. 2019.136-146p.

GOMES, Angela Castro. A política brasileira em tempos de cólera. In: Abranches, Sergio et al. (Orgs.): Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras. 2019. 175-194p.

MELO, Carlos. A marcha brasileira para a insensatez. In: Abranches, Sergio et al. (Orgs.). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras. 2019. 211-229p.

PARISER, Eli. Filter bubble, München. 2017.

PIKETTY, Thomas. Eine kurze Geschichte der Gleichheit. München. 2022.

SANDKÖTTER, Stephan. Modernisierungsforschung in Brasilien. Frankfurt. 1999.

SANDKÖTTER, Stephan. Polarizações socioeconômicas na Alemanha: as duas faces de uma sociedade de bem-estar social. In: Contti, Castro, Aline et al. (Orgs.). Polarizações políticas e desigualdades socioeconômicas na América Latina e na Europa. João Pessoa: UFPB. 2019. 147-172p.

SINGER, André; VENTURI, Gustavo. Sismografia de um terremoto eleitoral. In: Abranches, Sergio et al. (Orgs.): Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras. 2019. 355-371p.

SOLANO, Esther. A bolsonarização do Brasil. In: Abranches, Sergio et al. (Orgs.). Democracia em risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras. 2019. 307-321p.

 

NOTAS

1 - Veja também o seguinte artigo esclarecedor, disponível em:

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160416_porque_deu_errado_ab  (acesso em: 17 fev. 2023).

2 - Veja os detalhes; disponíveis em:

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/11/03/interna_politica,717241/eles-bolsonaro-elas-haddad-eleicoes-dividiram-jovens-por-genero.shtml (acesso em: 18 fev. 2023).

3 - Veja Folha de São Paulo, 18.10.2018, p.A-4

4 - Veja a dimensão em geral; disponível em:

https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2021/10/20/fake-news-cpi-da-covid-presidente-jair-bolsonaro-filhos.htm (acesso: 18 fev. 2023).

(5) Entre as suas declarações afirmou que mulheres devem ganhar salários menores que homens, que homossexualidade é uma questão de escolha e que não deveriam existir cotas raciais, entre outras

(6)  - Veja os números dos eleitores evangélicos, disponível em:

https://www.ihu.unisinos.br/categorias/188-noticias-2018/584304-o-voto-evangelico-garantiu-a-eleicao-de-jair-bolsonaro  (acesso em: 17 fev. 2023). As tabelas demonstram os votos de evangélicos contribuiram enormemente para a vitória de Bolsonaro.

(7) Veja a dimensão de Fake News: disponível em:

https://noticias.uol.com.br/confere/ultimas-noticias/2021/10/20/fake-news-cpi-da-covid-presidente-jair-bolsonaro-filhos.htm  (acesso: 18 fev. 2023).

(8) Disponível em:

https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2021/apresentacao_censo_da_educacao_superior_2021.pdf (acesso em: 20 fev. 2023).

 

Stephan Sandkötter - Doutor em Sociologia, professor adjunto de Sociologia da Universidade de Vechta (Alemanha), professor visitante da UFPB no período de 1998 a 2003 e fevereiro de 2018 a abril de 2018, atua na área de pesquisa de desigualdades sociais focalizando a situação de países europeus e do Brasil


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