OBRAS RARAS


O PADRE REPENTISTA

Sou grande curiosa e admiradora dos repentes nordestinos, inteligentes e engraçados, que nosso povo é mestre em criar. Repente, como vocês sabem, é um canto com versos improvisados, numa definição bem simples. Sem me deter muito na história, o que posso falar é que eles tiveram origem na tradição ibérica dos trovadores medievais, que iam de canto em canto com suas violas e versos. O calango de Minas e o samba de roda do Rio têm a mesma origem, embora não tenham o improviso que os cantadores de repente têm, dizem os entendidos. Para o "Sul", e assim para a fama não apenas local, acho que primeiro foram os pernambucanos e paraibanos, seguidos pelos cearenses. Acho até que a Paraíba ainda é considerada a Meca do repente.

Em princípio, eu não associaria nenhuma religiosidade ao repente, embora saiba que Dom Helder Câmara usou a cantoria em algumas de suas pregações e que os violeiros costumavam levar a palavra de Deus ao interior do Nordeste antes de os padres lá chegarem, isso nos idos anos, cantando histórias de Jesus menino, José do Egito, etc.

Mas quando a gente pensa em repente, não é comum imaginar um padre galhofeiro fazendo versos meio chulos, um homem capaz de manter uma conversa somente com versos rimados e satíricos no século 18 no Brasil. Esse homem existiu, foi fundador e presidente da Academia de Belas Artes de Lisboa (mais tarde Nova Arcádia, rival em prestígio com a extinta Arcádia Lusitana) e pertenceu à Arcádia de Roma com o nome de Lereno Selinuntino. Consta também que foi ele quem introduziu nas cortes portuguesas as modinhas e os lunduns brasileiros; segundo José Ramos Tinhorão, em sua Pequena História da Música Brasileira, o padre cantava "a autêntica música popular da colônia". Figura querida por alguns e odiada por outros, estamos falando do padre carioca, filho de português e africana, Domingos Caldas Barbosa.

Sacramento Blake, no Dicionário Bibliográfico Brasileiro, descreve uma obra curiosa do padre Barbosa, a Viola de Lereno, cujos versos foram "salvos", compilados e editados por seus amigos, uma vez que ele não guardava os improvisos que abundantemente fazia.

Seguem alguns versos de "Crime Gostoso", do primeiro volume de 1798 de Viola de Lereno, sobre uma cantoria do padre a um grupo de moças:

"Si he hum crime o ser amante,
Bem criminoso sou eu;
Mas he tão gostoso o crime,
Que eu gosto bem de ser reu."

Recriminado por uma das senhoras, retrucou:

"Não cuides formosa Elfina,
Que Eu ímpias lições te dicte,
Hum puro amor he virtude,
He crime amar de appetite."

A senhora, ainda: "mas não sou eu quem o censura, é o mundo, a gente quer o ouvir." E ele:

"Gosto de amar, vou amando,
Que importa murmure a gente,
Se a gente que assim murmura,
Talvez não seja innocente!"

"E como se chama a sua amada?" perguntou-lhe uma jovem fidalga, em outra ocasião.

"Não quero dizer seu nome
Que dizel-o não convem,
Basta só que este segredo
Saiba-o eu, saiba-o meu bem."

Diante da insistência da jovem, disse, ainda:

"Menina, minha menina,
Que tanta gracinha tem,
Deixe lá fallar quem falla,
Que só você é meu bem."

O segundo volume de Viola de Lereno, por algum motivo, só veio a ser publicado em 1826. Em 30 anos, o livro teve umas cinco reimpressões, um sucesso para a época.

 

[Barbosa, Domingos Caldas]. Viola de Lereno: collecção das suas cantigas, offerecidas aos seus amigos. Lisboa: Na Officina Nunesiana, anno 1798 (v.2 na Typografia Lacerdina, 1826).

Acima, a reprodução dos primeiros versos de "Crime Gostoso". A cópia da John Carter Brown Library praticamente não foi encadernada, tendo apenas um papel azul colado à lombada manuscrita unindo os cadernos, muitos com folhas ainda por cortar, em formato oitavo. Uma característica interessante do livro é a paginação:
v. 1: 32, 32, 32, 32, 32, 32, 32, 32, 4 p.
v. 2: 32, 32, 32, 32, 32, 32, 32, 32, 6, [2] p.

O padre é também patrono da cadeira número 3 da Academia Brasileira de Música.

So long!

PS: A coluna do mês foi escrita em homenagem ao especialista no assunto Dom Braulio Tavares.


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.