ARTIGOS E TEXTOS


ÁGORA INFORMACIONAL

A biblioteconomia tem a estranha (talvez nem tão estranha assim) tendência em valorizar exageradamente, demasiadamente, desmesuradamente determinados “modismos”. Essa valorização incomedida tem por motivo a busca, a procura por uma “tábua de salvação”. A interdisciplinaridade que se apregoa intrínseca à área, parece ser entendida como a mera apropriação, o mero escaneamento, sem as devidas modificações, alterações e adequações, de técnicas e teorias de outros segmentos do conhecimento. Apossa-se do que é produzido em outras áreas, com ênfase em algumas delas, e aplica-se, tal e qual, na vã pretensão de solucionar velhos e insistentes problemas.

Várias foram essas “tábuas da salvação”. Entre outras, vale lembrar: o planejamento bibliotecário, o marketing, a automação, a qualidade, a reengenharia e, mais recentemente, as redes, as bibliotecas virtuais (eletrônicas, digitais, ou com que outras designações são elas conhecidas) e a globalização. Não estou, espero que fique evidenciado, construindo um manifesto contra as novas idéias provenientes de outras áreas do conhecimento, nem fazendo uma apologia anti-interdisciplinaridade. Ao contrário, defendo o uso de propostas, de teorias, de modelos práticos que surjam, apesar de elaborados visando um determinado segmento, com possibilidades de emprego em outras áreas. É necessário, todavia, uma adaptação, uma adequação às características e especificidades da Biblioteconomia, da Documentação, da Ciência da Informação. Além disso, também se faz necessária a consciência de que uma única idéia não resolve todos os problemas enfrentados pela área. “Enfrentado” talvez não seja o termo mais apropriado, pois na Biblioteconomia, muitos desses problemas são escamoteados, escondidos.

Em alguns momentos (poucos, com certeza), o usuário, nosso grande e maior problema, é resgatado pela literatura como tema de análise e preocupação. São avaliados o seu comportamento, suas atitudes, seu conhecimento dos serviços oferecidos pelas Unidades de Informação, suas expectativas e desejos de novos trabalhos etc. Vários textos reproduzem pesquisas que visam traçar seu perfil e avaliar, de maneira concreta e efetiva (como se isso fosse possível), suas necessidades e desejos em relação à esfera informacional. Outros estudos pretendem criar formas de treinamento e educação objetivando determinar um adequado comportamento dos usuários no manejo e no uso dos instrumentos disponibilizados nas Unidades de Informação. Mas, como alertado anteriormente, poucos são esses momentos. Assim mesmo, a preocupação com o usuário parte da perspectiva das Unidades de Informação, nunca, ou quase nunca, da perspectiva do usuário. É ele, para nós, ainda uma grande incógnita.

Os interesses da Biblioteconomia, da Documentação e da Ciência da Informação estão norteados muito mais para os instrumentos, para as ferramentas do que propriamente para a informação ou do que para o usuário. Em muitos casos, “... o canal é mais valorizado que a mensagem, como acontece com as redes eletrônicas de transmissão de mensagens.” (BARRETO, 1995, p.7).

Chega-se aqui ao cerne do que gostaria de refletir neste momento: o exagero, o extremado exagero, com que o profissional da informação avalia a importância da Internet como forma de se propiciar o acesso à informação. Outra vez devo salientar que não quero, aqui, editar um libelo contra a Internet; ao contrário, eu a considero como uma útil, importante e, hoje, imprescindível ferramenta à disposição dos profissionais da informação. Que fique claro: ferramenta. A Internet configura-se como uma ferramenta sobre a qual devem ser construídas, desenvolvidas, elaboradas e implantadas ações e serviços que permitam o seu uso adequado e que dela se extraia o melhor de seu potencial.

Afirma-se, com base em pressupostos destoantes da realidade, que a Internet democratiza o acesso à informação. Nada mais falso do que essa assertiva. É verdade que essa idéia pulula no imaginário da maioria dos bibliotecários. É verdade ainda que ela se concretiza no senso comum desse profissional, mas é importante destacar que boa parte da literatura da área (uma literatura bibliotecária ufanista e xenófaga em relação à outras áreas) reproduz e reforça essa falsa idéia. Contrariando essa afirmação, que reflete um conceito hegemônico na classe, a Internet não democratiza, mas contribuí para elitizar o acesso à informação.

Sendo didático e simplista (embora esses dois termos não sejam, sempre, automaticamente interligados), é importante relacionar as exigências, não apenas técnicas, para que um candidato a “internauta” possa freqüentar “sites” e “home pages”: o interessado deve possuir: a) um computador; b) um “modem”; c) uma linha telefônica (que, convenhamos, com a atual estrutura da telefonia brasileira não é algo tão simples e fácil). Além disso, é necessário o vínculo a um “provedor”, que em troca do acesso à grande rede, cobra uma módica mensalidade (normalmente, no Brasil, a média dessa taxa é de R$ 30,00 por 40 horas de uso e R$ 1,00 para cada hora excedente). As exigências acabam por aqui? Ainda não: a conexão do micro com a rede, via provedor, se faz através de um software e de determinadas configurações. Um mínimo de convivência com computadores e conhecimento básico da língua inglesa também estão implícitos entre os itens que se requerem para a utilização da Internet.

O custo para o acesso à rede não é tão baixo quanto aparenta antes de uma pequena análise: excluindo os equipamentos, o valor gasto mensalmente abarca a taxa cobrada pelo provedor, os impulsos telefônicos (mesmo sendo “locais”, não podem ser desprezados) e a energia despendida durante o tempo de conexão (que, fatalmente, aumentará o valor da conta de energia elétrica).

Quantos, hoje, no Brasil, podem satisfazer a todas essas exigências?

Algumas pesquisas, normalmente veiculadas em artigos de jornais, questionam os “internautas” sobre os assuntos que são por eles acessados na Internet. As respostas agradam aos pesquisadores e aos que defendem a grande rede como democratizadora da informação. Invariavelmente, os navegadores dizem que procuram informações financeiras, notícias jornalísticas e informações sobre sua área de interesse. Louvável, muito louvável. No entanto, outra pesquisa, esta com base nos descritores indicados para localização no “Yahoo”, obteve resultados diferentes: a maioria dos “sites” acessados refere-se a sexo, a pornografia; com menos incidência, mas entre os mais consultados, estão as “homes” de artistas. Há, óbvio, uma contradição entre o que os “internautas” dizem consultar e o que efetivamente consultam. Esse resultado era já esperado. Todos sabem, sem necessidade de grandes pesquisas, que a maioria “surfa” pela Internet, utilizando-a como passatempo, como lazer. Há pouco, num evento coordenado pelo SIBI/USP, com a participação da OCLC, foi distribuído um broche (ou, aportuguesando, um botão) com os seguintes dizeres: “Search, no surf”. A frase traduz a preocupação das entidades informacionais americanas com a maneira como é utilizada a Internet. Discute-se hoje, a necessidade de criação da Internet II, que seria direcionada (e com acesso restrito) apenas a pesquisadores.

Outra idéia muito veiculada pelos defensores da total democratização da informação via Internet, é a que se refere à redução dos preços dos equipamentos de informática. Alguns chegam a afirmar que um microcomputador custará, num futuro muito próximo, o equivalente a menos de U$ 40,00. Tal afirmação não se respalda na realidade dos custos dos equipamentos eletrônicos: um aparelho de TV, por exemplo, apesar de estar sendo comercializado desde a década de 40, não pode ser adquirido por menos de U$ 120,00 e, assim mesmo, estou me referindo àquele aparelho que transmite imagens apenas em preto e branco, ou seja, esse valor corresponde ao preço do modelo mais obsoleto. Se o exemplo optasse por qualquer outro tipo de aparelho eletrônico, o resultado quanto ao preço seria muito próximo ao que foi exposto em referência à TV. Os microcomputadores não apresentam resultados diferentes. Posso usar, sem medo de particularizar, a minha própria experiência como exemplo: em 1991 adquiri um microcomputador (286, 2 megabytes de RAM, Winchester de 65 megabytes e monitor de fósforo branco) por, aproximadamente, U$ 700. Dois ou três anos após, por necessidade de atualização, fiz algumas modificações, alterando sua configuração para 386, 4 megabytes de RAM, Winchester de 120 megabytes e monitor VGA colorido. No ano passado, 1996, também por absoluta necessidade de atualização, comprei um novo computador (586, 8 megabytes de RAM, Winchester de 1.2 gigabytes e monitor SVGA colorido) e, apesar de adquirir as peças em separado montando-o em casa, gastei aproximadamente U$ 1200. O preço diminuiu? Ao contrário, cresceu o equivalente a 70%. Óbvio que, hoje, um microcomputador com as mesmas características daquele que adquiri em 1991 pode ser encontrado por um preço muito baixo, mas, eu pergunto, o que se pode fazer com um equipamento desse? Qual a sua utilidade? O preço de um microcomputador diminui na mesma proporção em que diminui sua atualidade e, pior, na mesma proporção em que diminui sua possibilidade de uso. Essa é, infelizmente, a realidade.

Um texto que pode ser localizado na Internet(2), de autoria de Eloy Rodrigues, apresenta uma estimativa dos usuários dessa rede: “Mais de 30 milhões de utilizadores de correio eletrônico e cerca de 15 milhões de utilizadores dos serviços interativos (Gopher, WWW, etc.).” (RODRIGUES, [1995], p.6). Mesmo considerando que entre os 30 milhões de utilizadores de correio eletrônico está incluída a maioria dos 15 milhões de utilizadores dos serviços interativos, vamos simplesmente somar esses dois valores e aceitar o resultado, 45 milhões, como sendo o total de usuários da Internet. Desses dados, uma pergunta se evidencia: o que representa uma parcela de 45 milhões dentro de um universo de 6 bilhões de pessoas? Será que é possível afirmar que o mundo está democratizando o acesso à informação através da Internet quando essa rede atinge aproximadamente 0,75% da população?

Relembrando algumas das informações já apresentadas, percebe-se como é enganosa a idéia exaustivamente veiculada a respeito da democratização da informação via rede Internet: a) os usuários da “grande estrada” não passam, hoje, de 45 milhões de pessoas (esse número, como já ressaltado, é extremamente otimista); b) apenas 0,75% da população possui condições de acesso à Internet; c) a maioria desses usuários se utiliza tão somente do correio eletrônico; d) grande parcela dos 15 milhões que fazem uso dos sistemas interativos, é constituída de pessoas que apenas surfam, brincam ou acessam “sites” de temática voltada para o sexo ou a pornografia; e) a ampliação do número de usuários da Internet depende não só de aspectos econômicos (excessivamente restritivos), como também de fatores vinculados ao interesse, ao tempo disponível, ao tipo de informação veiculada, à demora no acesso, à dificuldade em localizar informações específicas etc. Com base em todos esses itens/fatos, não seria conveniente nos perguntarmos se a “grande via informacional” não está sendo sub-utilizada e, ainda, se não estamos nos enganando ao imaginar que está sendo ela um mecanismo verdadeiramente democrático de acesso à informação?

Talvez o maior problema em relação à idéia de democratização da informação esteja no próprio conceito de democratização. Ou, ainda, no próprio conceito de acesso. O que consideramos acesso à informação? A mera possibilidade de ter em mãos um suporte que aborde o assunto requerido, sem, no entanto, nada entendermos do que está lá registrado? Acredito que a informação só se concretiza quando é assimilada, entendida, compreendida. Quem determina isso é a própria pessoa, ou, numa linguagem bibliotecária, o próprio usuário.

Mas, como dizia, talvez o conceito de democratização que se está empregando no meio bibliotecário para defender a democratização da informação via Internet seja o grande problema. Esse conceito parece estar muito próximo daquele utilizado na Grécia antiga, em Atenas, no berço da democracia. No título deste texto procurei explicitar essa idéia: Ágora Informacional. Como salientado em nota de rodapé, a palavra ágora é de origem grega e está sendo aqui empregada para designar lugar de reunião, praça pública, espaço em que circulam informações. A Internet, na verdade, é uma grande praça pública, um lugar em que as pessoas, mesmo virtualmente, podem se relacionar, um espaço que, apesar de privado (pois seus usuários nele penetram a partir de um computador localizado em suas casas), possui muitas características públicas. Em Atenas, o ágora era o espaço onde se reuniam os cidadãos atenienses. À essa reunião era dado o nome de Assembléia Popular, principal órgão da democracia, “... na qual se discutem e decidem-se publicamente os grandes assuntos da cidade, sobretudo as decisões de guerra e paz.” (CHAUÍ, 1994, p.110). O que nos interessa particularmente é que, na democracia ateniense, nem todos são cidadãos: “Mulheres, crianças, estrangeiros e escravos estão excluídos da cidadania, que existe apenas para os homens livres adultos naturais de Atenas.” (CHAUÍ, 1994, p.111). A palavra cidadão, dessa forma, possuía um conceito restrito, a exemplo do conceito de democracia que impera nos espaços (ágora) biblioteconômicos.

Além da restrição do conceito de cidadão, outro fator que se opõe às idéias ingenuamente apologéticas da democracia grega, diz respeito a determinados atributos que, no entender dos sofistas, poderiam ser ensinados e preparariam o cidadão para enfrentar as reuniões públicas: “Que ensinavam os sofistas? A arte de argumentar e persuadir, arte decisiva para quem exerce a cidadania numa democracia direta, onde as discussões e decisões são feitas em público e onde vence quem melhor souber persuadir os demais, sendo hábil, jeitoso, astuto na argumentação em favor de sua opinião e contra a do adversário.” (CHAUÍ, 1994, p. 123). A arte de argumentar e persuadir não é, nos tempos atuais, exclusiva da oratória, ela se encontra nos textos, na imagem fixa e em movimento, no som, enfim, nas formas empregadas e utilizadas pela Internet para veicular e disseminar as informações.

Muitos propagam a idéia de que na Internet estão todas as informações produzidas no mundo. É óbvio que tal afirmação não passa de uma grande utopia. Representa, no máximo, o desejo de quem a dissemina. A informação não é neutra, imparcial, apolítica; ela não está isolada, pairando sozinha e solitária por sobre os suportes que a procuram aprisionar. A informação só se concretiza na interação com aquele ou aqueles que a necessitam e, mesmo assim, se relacionando com o motivo que determinou sua procura. Erra quem assim pensa, principalmente porque esquece as implicações políticas, sociais, econômicas, culturais etc., existentes por trás de cada informação. Pensando no cotidiano das unidades de informação, a idéia de que a Internet acumula todas as informações produzidas no mundo leva, invariavelmente, ao uso exclusivo dessa rede como instrumento e ferramenta de recuperação de informação. Por que buscar uma informação em outro lugar se, com absoluta certeza, está ela presente na Internet? Quem perde mais uma vez é o usuário.

Apesar dos problemas e de todas as críticas que teci neste texto, acredito que a democratização da informação é algo que deve ser procurado. Os empecilhos e obstáculos existem e devem ser superados, mas, é bom frisar, todo e qualquer obstáculo só pode ser suplantado se, ao invés de escondê-lo, escamoteá-lo, nós o evidenciarmos, tornando-o claro para que ele possa, assim, ser analisado e combatido. Como se pode tentar democratizar a informação através da Internet? Aplicando ações sobre a ferramenta Internet. As unidades de informação parece que lidam com a Internet como se ela se esgotasse em si mesma, como se ela fosse auto-suficiente, como se, com ela, todos os problemas informacionais do mundo estivessem resolvidos. Não basta apenas oferecer a oportunidade de acesso à rede, ao contrário, é preciso que serviços sejam aplicados e ofertados para que a necessidade do usuário, dentro desse caos informacional propiciado pela Internet, possa realmente ser satisfeita. A democratização da informação pode ser tentada também, a partir da ampliação da possibilidade de uso da Internet, não só por aqueles que têm condições de fazê-lo direto de casa, mas principalmente por aqueles que não possuem essa condição. O mais importante é fornecer a informação utilizando a Internet como mais uma ferramenta no trabalho cotidiano das unidades de informação.

Referências

 

BARRETO, Aldo de Albuquerque. A questão da informação. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v.8, n.4, p.3-8, out./dez. 1994.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo : Brasiliense, 1994. 390p.

RODRIGUES, Eloy. Bibliotecas virtuais e cibertecários: o futuro já começou. Guimarães, [1995]. (http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/423)

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Notas

1 Termo grego, cujo significado é "Assembléia, assembléia do povo, reunião do povo em assembléia, reunião dos soldados em assembléia. Por extensão: lugar de reunião, praça pública." (CHAUÍ, 1994, p.341).

2 Como as informações presentes na Internet são alteradas, modificadas, acrescentadas e excluídas com extrema velocidade, convém alertar para o fato de que o texto aqui citado foi localizado e copiado no dia 04 de março de 1997, às 19h53.

 

Publicado originalmente: (em espanhol) ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Ágora informacional. Ciencias de la Informacion, Habana, v.29, n.4, out./dez. 1998.

(em português) ALMEIDA JÚNIOR, Oswaldo Francisco de. Ágora informacional. São Paulo: APB, 1999. (Ensaios APB, 67)

(Incluído no site em abril de 2003)

Autor: Oswaldo Francisco de Almeida Júnior

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OSWALDO FRANCISCO DE ALMEIDA JÚNIOR

Professor associado do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Estadual de Londrina. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UNESP/Marília. Doutor e Mestre em Ciência da Comunicação pela ECA/USP. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação da UFCA- Cariri - Mantenedor do Site.