ALÉM DAS BIBLIOTECAS


MEU ORGULHO MAIOR

“Nasceu Maria quando a folia, perdia a noite, ganhava o dia. Foi fantasia seu enxoval. Nasceu Maria no Carnaval. E não lhe chamaram assim. Como tantas Marias de santas. Marias de flor, seria Maria. Maria somente. Maria semente de samba e de amor [...]” Eis uma canção de Luiz Carlos Paraná, eternizada na voz de Roberto Carlos, intitulada “Maria, carnaval e cinzas.” Faz parte do cancioneiro de muitas gerações. Linda homenagem à chegada de Maria. Triste homenagem ao fim da folia, porque, na verdade, morreu “Maria quando a folia na quarta-feira também morria. E foi de cinzas seu enxoval. Viveu apenas um carnaval [...]”

No entanto, por razões que a própria razão desconhece – nosso inconsciente é sempre uma caixinha de surpresas – apesar da tristeza que a canção encerra em si mesma, sempre a vinculei à chegada ao mundo de minha única “filha menina mulher”, como dizem os mais simples e menos rebuscados. Como o carnaval em Recife, há décadas e décadas, sempre tem como traço característico as prévias, num sábado ensolarado de carnaval, Ana Carla chegou ao mundo. Chegou em meio à folia que espocava entre serpentinas, confetes, corso de rua, etc. Chegou em meio à dor sempre inesperada do primeiro parto de uma quase adolescente.

Recebi uma menina pequenina. Não das mãos do Rei Momo, mas das mãos de Deus, sob a forma de um médico e cunhado querido por toda a vida. Ali, em meus braços, eis alguém frágil, branquinha, levezinha, e me dizendo – vamos em frente, que a vida e os sonhos nos esperam! Realmente, os anos correram. Minha filha trilhou o caminho natural da vida. Deixou de ser bebê para se tornar criança, adolescente, mulher e, sobretudo, ser humano, no que a expressão contém de mais nobre em sua essência. Somos mãe e filha. Somos mãe e irmã. Somos mãe e companheiras. Somos cúmplices, mas somos, essencialmente, amigas. Mesmo distantes fisicamente, há muito tempo, em respeito profundo à sua opção de cursar engenharia em outro Estado e de prosseguir atuando fora, sempre estivemos umbilicalmente juntas. No meu coração, a certeza de que minha filha está a meu lado. No seu coração, a certeza de que há uma mulher a seu lado para o que der e vier. Sempre nos quisemos muito. Sempre respeitamos a liberdade de ir e vir da outra. Isto não significa dizer que vivemos, ininterruptamente, um mar repleto de calmarias ou um céu sem nuvens e de azul perene. Como natural, tivemos nossos mares de “ressaca” e nossos céus sombrios. Nossos desacertos nos acertaram e nos aproximaram mais e mais. Nossas diferenças – uma vaidosa ao extremo; e a outra, de jeans e camiseta – nos fazem rir. Dentre tudo isto, vivemos uma experiência extraordinária no que há de mais fantástico em qualquer relação entre as pessoas, nos dias de hoje ou nos dias de sempre – não construímos um muro de mentiras. 

Talvez, eu, que confesso, de cara lavada, mil falhas, mil erros e mil tropeços, ao decorrer da vida, nutro o orgulho mais profundo de afirmar, categoricamente, que nunca menti aos meus filhos, nem mesmo quando a vontade era empurrar os deslizes cometidos para baixo dos tapetes, construídos fio a fio e por anos a fio, com minhas próprias mãos. A você, filha querida, ensinei, e que bom, você aprendeu! Respeitar o outro, não importa quem seja ou o que seja, fugindo de qualquer rótulo, mesmo quando este parece ser o caminho mais fácil; honrar compromissos de qualquer natureza; lutar por um lugar ao sol sem jamais “puxar o tapete do outro”; cultivar a gratidão, uma vez que os ingratos são pessoas impiedosamente estéreis, porque incapazes de fecundar no coração a semente do amor e do reconhecimento; exercitar a complacência a cada dia e o perdão, a cada hora, mesmo quando parece difícil e doloroso; olhar o passado com a certeza de que foi ele que lhe permitiu ser o que você é.

O que você é? Uma filha com coração de filha; uma grande mãe para seu filho; uma grande amiga para os que lhe rodeiam; uma profissional comprometida com o que faz; uma mãezona para suas cadelinhas; uma mulher com coragem infinda de desbravar o mundo para melhorá-lo com a obstinação silenciosa de expandir sistematicamente a reciclagem; uma sobrevivente em meio à miséria humana, que escorre em vales de hipocrisia, violência e cinismo mundo afora. Enfim, você é minha heroína e MEU ORGULHO MAIOR, até quando teima em ser minha mãe! E se é para falar a verdade: adoro brincar de ser sua filha!


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MARIA DAS GRAÇAS TARGINO

Vivo em Teresina, mas nasci em João Pessoa num dia que se faz longínquo: 20 de abril de 1948. Bibliotecária, docente, pesquisadora, jornalista, tenho muitas e muitas paixões: ler, escrever, ministrar aulas, fazer tapeçaria, caminhar e viajar. Caminhar e viajar me dão a dimensão de que não se pode parar enquanto ainda há vida! Mas há outras paixões: meus filhos, meus netos, meus poucos mas verdadeiros amigos. Ao longo da vida, fui feliz e infeliz. Sorri e chorei. Mas, sobretudo, vivi. Afinal, estou sempre lendo ou escrevendo alguma coisa. São nas palavras que escrevo que encontro a coragem para enfrentar as minhas inquietudes e os meus sonhos...Meus dois últimos livros de crônica: “Palavra de honra: palavra de graça”; “Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos.”