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BIBLIOTECONOMIA, BIBLIOTECÁRIOS E BIBLIOTECAS NO NORTE E NO NORDESTE: FRAGMENTOS HISTÓRICOS DE UM RELATO DE VIAGEM

A Biblioteconomia brasileira, em sua história, é marcada pelo esforço pessoal de muitos profissionais que buscavam constituir uma área profissional capaz de transformar, para melhor, uma sociedade. 

Este texto descreve um fragmento desta história; as intenções buscadas ou realizadas por pessoas hoje pouco lembradas ou deixadas pausadas na memória do tempo.

É extraído, em essência, do relato de viagem, realizado entre 1947-1948, pela Bibliotecária e Professora de Biblioteconomia, Maria Luísa Monteiro (da Cunha). Os colchetes, em anexo ao seu nome de solteira, é para sinalizar o futuro ponto de acesso pela qual se tornou conhecida. 

Após um ano de estudos, visitas e participações em eventos da área, realizados nos Estados Unidos, a bibliotecária Maria Luísa retorna ao Brasil imbuída do mesmo ideal norte-americano que assimilou, fazer da biblioteca um centro de cultura acessível a todos. Assim, soma-se ao grupo de bibliotecários empenhados na propagação e desenvolvimento das Bibliotecas e dos Cursos de Biblioteconomia pelo Brasil.

Informada de uma “Exposição Flutuante dos Produtos do Estado de São Paulo”, organizado pelo Touring Club do Brasil, sob o patrocínio da Secretaria da Educação e Cultura do Município de São Paulo e oficializada pelo Governo do Estado para circular pelo país, ela empenha-se em participar desta Comitiva Oficial, com o objetivo de conhecer e estabelecer contato pessoal com bibliotecários do Norte e do Nordeste, coletando informações sobre as atividades biblioteconômicas nestas regiões.

Comenta, em suas observações, a “grande diferença entre as bibliotecas dirigidas por bibliotecários formados e as que estão confiadas a bibliotecários cultos, amantes de livros e do seu trabalho, mas sem conhecimentos baseados em técnicas modernas”. 

Aliás, 70 anos depois, a situação ainda é encontrada em muitas regiões do Brasil, porém designados agora como leigos.

Ela dividiu, assim, as duas categorias de responsáveis pelas bibliotecas visitadas: bibliotecários formados e bibliotecários cultos. Afinal, na época, não havia Conselho Federal e Regionais de Biblioteconomia, até porque a profissão não era regulamentada.

Na primeira categoria, incluiu a Biblioteca Pública de Bahia; as bibliotecas da Escola Politécnica e do Curso de Biblioteconomia da Cidade de Salvador; a Discoteca Municipal de Recife; a Biblioteca Pública do Maranhão; e a Biblioteca Pública de Manaus.

Na segunda categoria, relacionou as Bibliotecas Públicas de Vitória, de João Pessoa, de Natal, de Fortaleza, e de Belém do Pará. Observou que na Biblioteca Pública de Fortaleza e no Instituto do Ceará havia uma preocupação em recatalogar a coleção. 

Ressaltou a modernização nos processos técnicos, implementados pelos bibliotecários da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Amazonas, impactando na renovação das bibliotecas. O relato realizado por ela segue resumido por região, a saber:

Espírito Santo 

Comenta a situação da Biblioteca Pública de Vitória, iniciada em 1853, com acervo doado por Braz da Costa Robin, do Rio de Janeiro. E que teve uma comissão, nomeada pelo Governador Evaristo Ladislau e Silva, para a sua organização, porém só começou a funcionar em 1855. Na época da visita de Maria Luísa a Biblioteca encontrava-se praticamente fechada, com os livros armazenados em salas da Prefeitura. Segundo informações do Prefeito, a situação só se modificaria com a construção de um prédio adequado. 

Na oportunidade, Maria Luísa destacou que: “Aproveitei o ensejo para sugerir a possibilidade da adaptação de qualquer edifício suficientemente espaçoso, a fim de que os leitores não continuem privados de leituras”.

Bahia

Destaca o estágio de desenvolvimento da Biblioteconomia, muito pela atuação da Sra. Bernadette Sinay Neves, da Escola Politécnica e Diretora do Curso de Biblioteconomia. Ela era engenheira civil. Menciona o projeto da professora, referente ao curso intensivo para professores primários, iniciado em março de 1948, que tinha a finalidade de ampliar o preparo biblioteconômico dos professores baianos a ser suplementado com as orientações pedagógicas modernas. 

Na oportunidade deu destaque ao trabalho do Sr. Oswaldo Imbassahy da Costa, diretor da Biblioteca Pública, que desenvolvida a reorganização do acervo da instituição conduzida por duas alunas do curso de biblioteconomia. Da visita fez o seguinte comentário: 

“Temos a impressão de que a conjugação dos esforços dos bibliotecários baianos contribuirá para que, também no campo da biblioteconomia, a Bahia confirme o seu justo título de celeiro da intelectualidade brasileira”.

Pernambuco

Da visita à cidade do Recife, destaca-se as atividades realizadas pelo D.D.C. (Diretoria de Documentação e Cultura) órgão da Prefeitura e o movimento biblioteconômico decorrente, de uma área ainda nascente no estado. Neste sentido, relata a atuação de José Césio Regueira Costa, diretor do D.D.C., cujos esforços resultaram na criação de um curso de biblioteconomia vinculado ao seu departamento e o planejamento de um serviço de bibliotecas populares. Maria Luisa realizou três visitas a Recife, em 1948, no período de janeiro a agosto. 

No último retorno, participou do Congresso da Municipalidade e da formatura dos primeiros bibliotecários, do citado curso, oportunidade em que Celso Regueira, em discurso, parabenizou os formandos observando que não era apenas uma simples entrega de diploma, mas “o marco inicial de uma trajetória, uma vitória, ainda que modesta do D.D.C.”. 

Este Curso, iniciado em 1948, foi interrompido em 1950, absorvido pelo curso de Biblioteconomia, vinculado agora à Universidade de Recife (posteriormente Universidade Federal de Pernambuco), com duração de dois anos, inicialmente dirigido pelo bibliotecário Edson Nery da Fonseca e, posteriormente, pela bibliotecária Cordélia Robalinho de Oliveira Cavalcanti.

Motivada pelos acontecimentos, Maria Luísa comenta que:

“os resultados obtidos pelos bibliotecários de Pernambuco entusiasmam e são um estímulo para os que se dedicam à divulgação dos princípios da técnica moderna de bibliotecas”.

Em sua primeira estada, apresentou às lideranças locais a proposta de intercâmbio entre bibliotecário do norte e do sul do país, por meio de estágio, na cidade do Rio de Janeiro ou de São Paulo, uma vez que o contato com um meio biblioteconômico mais amplo, complementaria os conhecimentos técnicos obtidos no curso de Recife. 

A ideia prosperou. Na formatura, uma bolsa de estudo foi conferida pela Prefeitura, ao melhor aluno da turma, Sr. Orlando da Costa Ferreira, para um estágio de três meses em São Paulo, capital.

Destacou a implantação das bibliotecas populares, planejadas como centros de difusão de cultura, em bairros pobres e populosos da capital. Em 15 de agosto foi inaugurada a biblioteca central de Encruzilhada, com acervo de 3.000 livros. Até o final do ano previa-se o funcionamento da biblioteca de Santo Amaro, além de uma terceira não nomeada, na época. Cada biblioteca central popular teria uma ou duas sucursais.

Também a infraestrutura das bibliotecas foi descrita como sendo composta de um “eficiente preparo técnico dos livros, aliado a excelente aparelhamento das amplas salas, adaptadas ou construídas segundo técnicas modernas. Os móveis de sucupira foram desenhados por Hélio Feijó, o que escapava às linhas tradicionais; além de luminosidade natural, espaço e boa qualidade.

Neste ambiente, com livros selecionados e “sob a direção de bibliotecários jovens, cultos, cheios de entusiasmo profissional, as bibliotecas populares recifenses têm a possibilidade de desenvolver com eficiência sua obra educativa e socializante”.

A direção geral das bibliotecas populares estava à cargo de Milton de Melo, advogado e bibliotecário formado pela Escola de Biblioteconomia de São Paulo – FESPSP; e pela Discoteca Municipal dirigida pelo bibliotecário Ernani de Paula Cerdeira, também ex-aluno da FESPSP. Além da ação da municipalidade, é relatado a visita e o trabalho realizado na biblioteca da Faculdade de Direito, que passava por remodelação de suas instalações e acervos. A biblioteca era gerenciada pelo bibliotecário Edson Nery, apoiado por seis bibliotecários recém-formados e o apoio irrestrito do Reitor.

Maria Luísa conclui seu relato sobre a Biblioteconomia pernambucana, com o seguinte comentário:

“Pelo que nos foi dado ver no campo biblioteconômico de Recife, podemos dizer que a capital de Pernambuco já tem uma elite bibliotecária, e os bibliotecários pernambucanos vêm o seu trabalho amparado pela boa vontade e compreensão dos poderes públicos. Estão de parabéns os nossos esforços e inteligentes colegas nordestinos”.

Ceará

Na cidade de Fortaleza, a visita deu-se, inicialmente, no Instituto do Ceará, entidade cultural que contava com uma biblioteca formada e mantida desde 1887, e de acervo especializado em história e geografia sobre o Ceará e de outros estados do país. Ressaltou o trabalho do Diretor da biblioteca, Sr. Renato Braga, e da responsável pelos serviços técnicos a Sra. Maria da Conceição Souza, ex-aluna do curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro.

Ela visitou, também, a Biblioteca Pública fundada em 1867, pelo tenente coronel João de Melo e Souza, mas em atividade a partir de 1872. Na ocasião, a biblioteca achava-se em fase de organização. O Diretor, Sr. Walter Fontenelli Silveira destacou o trabalho da sua assistente técnica Sra. Hilzanir Cals de Abreu, que manifestou seu desejo de obter uma bolsa de estudos em Biblioteconomia de São Paulo ou Rio de Janeiro.

Comentou sobre o interesse público pela biblioteca, por meio de dados estatísticos que, no ano de 1948, a frequência atingiu 20.000 usuários, dos quais 4.000 eram menores. Finalizou suas impressões destacando:

“Com pouco mais de atenção por parte dos poderes públicos, a Biblioteca Pública de Fortaleza, em recebendo verbas necessárias para serviços imprescindíveis, constituirá valioso patrimônio cultural na terra de José de Alencar”.

Maranhão

Em São Luís, o movimento biblioteconômico era liderado pela Sra. Ariceya Moreira Lima, responsável pelas orientações técnicas para construção de um prédio de dois andares da Biblioteca Pública planejada em acordo com concepções modernas. 

Sob responsabilidade da Biblioteca, a pinacoteca de Aluísio de Azevedo, estava em exposição no Palácio do Governo até a finalização do novo edifício da biblioteca. Destacou outras atividades de Ariceya, além do campo biblioteconômico, sua atuação educacional como diretora de cursos noturnos de alfabetização para adolescentes de 11 a 15 anos, mantidos pelo Governo e ministrados no prédio do Colégio Estadual.

Pará

O destaque foi a Biblioteca Pública de Belém do Pará, situada na rua 13 de maio, criada em 1839, no ciclo da Cabanagem, e por iniciativa de uma Comissão que levantou a quantia de um conto e dezesseis mil quinhentos e cinquenta réis. Uma lei da Assembleia Provincial, concedeu verba anual de um conto de réis. Em 1846, foi anexada ao Liceu Paraense. Os vencimentos do bibliotecário situavam-se em dez mil réis mensais. 

Em 1871, é instalada em prédio próprio, no Governo de Joaquim Pires Machado Portela. Entretanto, por anos a biblioteca ficou abandonada pelos poderes públicos, sendo reerguida e instalada em novo prédio. 

Maria Luísa comentou sobre a valiosa coleção de documentos referente ao ciclo Colonial, Império e República. Entre as raridades bibliográficas destacou: os “Anais históricos”, de Berredo; os “Motins Políticos”, de Domingos Raiol; o “Compendio das eras” e o “Ensaio corográfico sobre o Pará”, de Antônio Landislau Monteiro Baena; a “Descrição de todo o marítimo da terra de Santa Cruz, chamada vulgarmente Brasil”, de João Teixeira, cosmógrafo de sua Majestade Imperial, em 1640. 

O diretor da Biblioteca era o historiador Ernesto Cruz, autor de “Belém” e “Monumentos de Belém” editados em 1945, pela editora José Olímpio. Ainda na capital paraense, realizou visita à biblioteca do Museu Paraense Emílio Goeldi, com acervo de mais de 20.000 volumes, orientado aos estudos zoológicos, etnográficos, geológicos e botânicos.

Amazonas

Para Maria Luísa, Manaus foi uma revelação em termos de possibilidades para um bibliotecário que alie dotes culturais e conhecimentos técnicos em Biblioteconomia. Exemplificou a sua impressão, pela reorganização da Biblioteca Pública no espaço de três anos, após o incêndio que, em 1945, destruiu parte do imóvel, consumindo 35.000 volumes do acervo. Seu diretor era Genesino Braga.

Relata a criação da Biblioteca, resultado do esforço do deputado provincial Ramos Ferreira, instalada em 1870, mas inaugurada em 09/03/1871 sob o nome de Gabinete de Leitura, anexada ao Liceu Amazonense e acessível apenas aos seus estudantes. 

Em 1874, sob o governo de Lustosa da Cunha Paranaguá, é fundada uma biblioteca franqueada ao público em geral, tendo como primeiro bibliotecário o Sr. Lourenço Pessoa, notabilizado pela atuação em campanha abolicionista.

Das outras bibliotecas visitadas, comentou que: “se não nos foi dado observar normas biblioteconômicas modernas, vimos, contudo, acervos valiosos sob a guarda de bibliotecários que honram a tradição de cultura do nosso povo”.

Encerramento da viagem

Em viagem de regresso, cita mais uma visita à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o encontro com o diretor Josué Montello e o coordenador do curso de Biblioteconomia da BN, Antônio Caetano Dias. O encontro possibilitou a troca de ideias para um futuro e intenso intercâmbio entre bibliotecários cariocas e paulistas. 

E a iniciativa neste sentido, destacada, foi a oferta de publicações e programas de novos cursos organizados pelo Prof. Caetano Dias.

Maria Luísa encerra o seu relato de visitas ao Norte e Nordeste do Brasil com a seguinte manifestação:

“A série de visitas às Bibliotecas do Norte e do Nordeste do Brasil, além de agradável, foi sumamente útil pela oportunidade que tivemos de conhecer pessoalmente os colegas daqueles setores do país. Isso facilitará a tarefa que temos como representante brasileira da ‘Comissão Internacional de Processos Técnicos’ criada durante a 1ª Assembleia de Bibliotecários das Américas, e cuja principal finalidade é difundir no Brasil os princípios biblioteconômicos, que aproximando bibliotecários de todos os quadrantes do país, graças a uma intensa e bem orientada colaboração, os unificará no mesmo espirito de brasilidade indispensável à manutenção e ao engrandecimento da integridade nacional”.

A Biblioteconomia, no Brasil, se disseminou sob muito idealismo e entusiasmo, além do esforço pessoal de bibliotecários e de muitos outros, que antes de se tornarem bibliotecários formais, já estavam apaixonados pela área. Conhecer ou rever sua história e os caminhos de sua constituição é essencial, até para visualizar as perspectivas de seu futuro.

Fonte: Monteiro, M. L. A biblioteca no Norte e no Nordeste do Brasil. Boletim Bibliográfico, São Paulo, vol. 14, p.117-124, 1948.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.