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SERVIÇO TÉCNICO NA BIBLIOTECA HOJE E YESTERDAY

Quando se fala dos rumos novos da catalogação bibliográfica, em termos de conceitos e fundamentos, não se pode relativizar as mudanças sobre os processos e fluxos da atividade catalográfica e, tão pouco, esquecer-se do ambiente onde tradicionalmente os registros são moldados – o setor de serviços técnicos ou de tratamento técnico, como também é identificado. O que era ontem e em que se configura hoje.

Ao refletir sobre os acontecimentos deste ambiente, faz lembrar da música Yesterday (composição: Paul McCartney):

Yesterday
All my troubles seemed so far away
Now it looks as though they're here to stay
Oh, I believe in yesterday

Na perspectiva atual, os problemas catalográficos de algumas décadas passadas parecem tão simples. Entretanto, diante das mudanças ocorridas e transformações ativadas pelas tecnologias e do conjunto de novas terminologias surgidas, constata-se a condução para uma complexidade que se estabelece e se amplifica a cada nova rodada de propostas preconizada pela área da catalogação.

Da suposta simplicidade de ontem para a perceptiva complexidade atual, beira-se a chatice das terminologias computacionais apropriadas. Entretanto, se “eu acredito no dia de ontem”, posso me tornar um bibliotecário démodé, na atualidade.

Assim, ao tentar compreender as mudanças parece que There's a shadow hanging over me, é preciso ser rápido e tentar alterar uma sombra de dificuldades que parece pairar na compreensão dos acontecimentos presentes.

O ontem mudou de repente, e se a catalogação era um jogo de registros fáceis de se jogar, agora é preciso recorrer a modelos conceituais para se fazer entender como bibliotecário de catalogação. Apesar que, agora, os modelos se integram em um só – LRM seja louvado, se compreendido.

Mas, as transformações dos padrões e protocolos não são em si o maior problema das mudanças que impactam a catalogação. Se ampliarmos nossa observação sobre os campos férteis da catalogação bibliográfica, podemos admitir que os padrões e protocolos são parte de outras mudanças que acontecem no âmbito das bibliotecas e outras agências bibliográficas.

Afinal, as prioridades estratégicas das instituições nas quais tais organizações se situam, afetam todas as suas áreas internas, e os serviços técnicos não são exceção. O que é sentido ou percebido, neste cenário, é a redução de pessoal (bibliotecários, técnicos e auxiliares) e de orçamentos decrescentes que afetam a produção e operação dos serviços de informação.

Pode ser um aspecto negativo, como também um ponto de oportunidades, em especial aos serviços técnicos, no que se refere a revisão e melhoria dos fluxos de trabalho ineficientes e antiquados; na atualização e desenvolvimento de habilidades e competências tecnológicas entre os membros da equipe para transformar a estrutura existente.

Outro aspecto, envolvido, é a mudança dos recursos informacionais impressos para recursos eletrônicos, incluindo recursos digitais nativos, contidos em coleções bibliográficas e que impactam todos os setores das bibliotecas.

Diante de tantas inovações e transformações, será que a denominação adotada para Setor de Serviço Técnico é ainda adequada?

Michael Gorman, no livro “Technical Services Today and Tomorrow” (Colorado: Libraries Unlimited, 1998), observou que apesar de um consenso quanto a abrangência do termo “Serviços Técnicos” contemplar a aquisição e o controle bibliográfico (catalogação e classificação), a sua definição detalhada variava tanto de um período para outro, quanto de uma biblioteca para outra.

Neste sentido, ele adotou uma definição ampla, considerando como "todas as tarefas realizadas em uma biblioteca que se preocupam com o processamento de materiais bibliográficos para torná-los acessíveis aos usuários”. No âmbito da sua definição, Gorman considerava não apenas as funções relacionadas com a aquisição e catalogação, mas também aquelas funções relacionadas à circulação e a manutenção das estantes de livros, preservação e desenvolvimento da coleção.

Tendo como assunto o serviço técnico, o artigo “Transforming Technical Services: Evolving Functions in Large Research University Libraries”, de Jeehyun Yun Davis (LRTS 60 (1), 2015), por meio de pesquisa de campo, explorou a evolução das funções e transformações verificadas neste setor, em âmbito das bibliotecas universitárias.

Em seu trabalho, considera que os serviços técnicos, enquanto um setor ou departamento, varia de tamanho conforme as diferentes atribuições de tarefas, podendo ser setores pequenos e mais focados nas suas atribuições. Entretanto, não há um método de organização ótimo ou bom para esse espaço na biblioteca. É necessário que os gestores tenham a mente aberta para adotarem diferentes estilos organizacionais que colaborem para melhorar os resultados bibliográficos e o ambiente de trabalho do bibliotecário de catalogação e equipe.

Na literatura da área, esse ambiente tem sido redesenhado e reorganizado nas bibliotecas, nos últimos anos. A busca de eficiência do fluxo de trabalho e a qualificação do pessoal são tópicos dominantes na discussão sobre os serviços técnicos diante dos desafios financeiros, tecnológicos e das inovações normativas da catalogação.

Outro desafio, para o setor, é a adoção da Demand-Driven Acquisition - DDA (Aquisição Orientada à Demanda) que afeta significativamente nas funções de aquisição e de desenvolvimento da coleção. O modelo DDA, também conhecido como Patron-Driven Acquisition, tornou-se tema popular em eventos de bibliotecas e da literatura profissional.

Diante dos problemas e desafios relacionados ao espaço de armazenamento para acervos físicos, os gestores de bibliotecas já investigam indicadores de circulação e uso das suas coleções, realocando itens pouco ou não utilizados para armazenagem remoto.

A questão debatida é o investimento e o trabalho técnico gastos com recursos informacionais ao não circularem, representam desperdícios. Para os materiais que circularam uma vez, o custo por uso é o seu preço total, mais os custos de processamento, armazenamento na prateleira, entre outros.

Para o setor de serviços técnicos, dissemina-se a ideia de que a DDA impediria a compra de recursos que podem nunca ser usados; e que o modelo de desenvolvimento da coleção tradicional é caro para as bibliotecas modernas. Assim, novos modelos de desenvolvimento da coleção envolvendo DDA incorporaria melhor as necessidades dos usuários no processo de tomada de decisão. O conceito envolvido é o dos serviços de biblioteca orientados por demanda.

Porém, independente dos prós e contras que o modelo DDA apresente (e nem é foco deste texto), há na literatura um consenso quanto ao potencial para mudar as formas tradicionais de selecionar, adquirir e tratar os recursos bibliográficos.

Neste contexto, o setor de serviços técnicos tem acrescido as novas normativas catalográficas, que pressionam ou estressam os extremos de seus fluxos operacionais de seleção, aquisição, tratamento disponibilização dos recursos informacionais.

Why she had to go I don't know
She wouldn't say
I said something wrong now I long
For yesterday

Os motivos da catalogação se alterar repentinamente, não nos permite entender, sem antes respirar lentamente para reassentar as ideias. A própria catalogação não responde com simplicidade os motivos ou o como das sucessivas alterações. Será que o bibliotecário fez algo errado, em algum momento, Yestarday!

Certamente, que a substituição de princípios e códigos catalográficos desatualizados decorrem das preocupações com a ausência de uma infraestrutura tecnológica capaz de suportar toda a extensão destas várias mudanças, incluído os recursos informacionais digitais.

A atividade bibliotecária orientada à codificação e intercâmbio de registros bibliográficos baseados no padrão Machine Readable Cataloging (MARC) é empecilho no contexto do ambiente da web, no qual os dados MARC são invisíveis aos mecanismos de busca, como o “Onipresente Google”, por exemplo. E esse problema se agrava, pois os mecanismos de busca tornaram-se ponto de partida da pesquisa dos usuários. É fato, para maioria das bibliotecas e bibliotecários, que o MARC perdeu sua utilidade, no universo bibliográfico digital. A Library of Congress reforça esse fato com o Bibliographic Framework Initiative (BIBFRAME).

Ao setor dos serviços técnicos se coloca mais um desafio, o de buscar proposições ou alternativas normativas que lhe permita construir uma infraestrutura de metadados bibliográficos associável a outras estruturas de metadados ou que possa produzir registros simples quando necessário e/ou registros complexos quando requisitado.

Diante de tais problemas e desafios; com novas demandas; e a pressão de novas normativas operacionais, como designar então o setor dos Serviços Técnicos? Ainda é uma denominação adequada para representar todo um contexto de funções ou atribuições inexistentes Yestarday?

Jeehyun Yun Davis salienta algo perceptível, o nome não transmite as atividades ou funções que ocorrem nos serviços técnicos e, como resultado, algumas bibliotecas renomearam seus setores técnicos na tentativa de representar suas operações e responsabilidades de forma mais clara. Algumas das denominações incluem palavras como “coleções”, “dados”, “banco de dados”, “controle bibliográfico”, “gestão”, “computação” etc. No entanto, este espaço continua cativo nos organogramas de muitas bibliotecas.

A existência, no ambiente das bibliotecas, de um departamento, setor ou divisão de serviços técnicos, com essa denominação ou que se mesclada com algum outro termo, decorre da dificuldade de se encontrar uma identificação alternativa que descreva melhor suas funções e atribuições atuais. Entende-se que, por enquanto, a denominação “Serviços Técnicos” ainda expressa um significado compreensível a todos, sem a necessidade de explicações adicionais.

Mas, certamente, surgirá o momento que o termo dará lugar a uma identificação do tipo “Serviços de Tecnologia”, que reconheça a própria transformação digital das bibliotecas em geral. Destaque-se que muitas bibliotecas passaram a adotar novas designações para os serviços técnicos, assim a transição deve ser vista como algo natural.

Embora, neste texto, aborda-se o tema como um espaço agregado das funções de aquisição e da catalogação; o que é comumente encontrado na composição básica dos serviços técnicos; é também constatado a separação das funções em diferentes divisões.

Entretanto, ambos os modelos não deixam de representar o conceito tradicional de serviços técnicos composto pela aquisição e a catalogação.

Porém, os problemas e desafios narrados também independem dos modelos adotados pelas bibliotecas. O ponto é que os bibliotecários atuantes nesses contextos têm a responsabilidade de buscar soluções, e as soluções passam pela adequação dos novos processos da catalogação aos fluxos de trabalho, agora revisados.

Os fluxos de trabalho, moldados sob os processos tradicionais de tratamento técnico, não funcionam mais. O ambiente digital sepultou o domínio do físico. A pandemia de 2020 acelerou esse sepultamento. Modelos de acervos bibliográficos terceirizados – como “Minha Biblioteca”, ganham escala.

O bibliotecário precisa administrar com exímio cuidado, para que seu serviço não sucumba perante novos produtos, mas possibilite um empreendedorismo novo na oferta de serviços biblioteconômicos com valor agregado para o usuário final.

Yesterday
Love was such an easy game to play
Now I need a place to hide away
Oh, I believe in yesterday

No passado, catalogar tinha seu charme ao descrever a emoção manifestada na obra. Era como o amor, uma emoção simples de amar. Hoje, a emoção se virtualizou, ficou remota, assim como o item se desmaterializou.

Agora é preciso primeiro, entender o funcionamento dos dispositivos, para depois conhecer a expressão contida nos formatos mutáveis. Se o bibliotecário não souber tratar os novos sentidos humanos, não haverá lugar para se esconder. E, embora se possa acreditar no dia de ontem, hoje requer uma nova compreensão da fé no amor ou mesmo na catalogação bibliográfica.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.