OBRAS RARAS


A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO, REVISITANDO – II

Dando continuidade ao resumo dos artigos publicados sobre a questão do livro raro e antigo na qualidade de patrimônio bibliográfico, hoje falaremos sobre aspectos históricos e conceitos, entre outros, que deram origem a estudos sobre o tema. Vamos nos deter em pesquisas do século XX, em especial as de Alois Riegl, historiador da arte na virada do século XIX para o XX, autor do ensaio The Modern Culture of Monuments: Its Character and Its Origins (1903). Vários conceitos utilizados por esse autor podem ser aplicados à Biblioteconomia de Livros Raros para um melhor entendimento do que seja patrimônio bibliográfico.

Os bens móveis escritos foram chamados por Riegl de monumentos, na França do século XVIII, e de monumentos de escrita, na Áustria. Esse autor atribuiu tipos de valor ao monumento, por exemplo, o intencional e o não intencional. No primeiro caso, resumindo, é a criação do homem com a finalidade de preservar o presente para as gerações futuras. Já os não intencionais, mais numerosos e conhecidos por nós, atualmente, são os monumentos artísticos e históricos que não tinham esse significado na sua gênese; essa é uma atribuição moderna da sociedade.

Outros dois conceitos pertinentes discutidos por Riegl são os de valor de antiguidade e valor histórico. O valor de antiguidade de um monumento se torna aparente por certas características físicas que possui, como possíveis imperfeições, alteração de cor e forma. Assim, o monumento pode ser apreciado por suas qualidades físicas e por suas marcas no tempo. Já o valor histórico é assim definido:

O valor histórico de um monumento é baseado no contexto específico e individual que representa no desenvolvimento da criação humana em um campo determinado. A partir dessa perspectiva, o que nos interessa no monumento não são os traços das forças destruidoras da natureza [...], mas a forma original do monumento como produto da humanidade. O valor histórico de um monumento aumenta quanto mais fiel à sua integridade permanecer e revelar seu estado original de criação: distorções e deteriorações parciais desagradam; não são ingredientes bem vindos ao valor histórico. [...] Não preserva traços da idade ou outras mudanças causadas pelo impacto da natureza desde o tempo em que o monumento foi criado [...] (RIEGL, 1996: 75).

Ao substituir “monumento” por “livro/documento antigo”, vemos o quanto as ideias se aplicam ao patrimônio escrito, manuscrito ou impresso.

Como se sabe, a formação de coleções bibliográficas raras, antigas e preciosas, na Europa, variou de acordo com o país. Na Inglaterra, por exemplo, ocorreu a partir de acervos reais, privados e monásticos. Na Espanha, os confiscos eclesiásticos pelo Estado foram distribuídos para e deram origem às bibliotecas em escolas e universidades. Já na França, o patrimônio antigo não foi constituído a partir das bibliotecas ou do público, mas de confiscos de coleções que existiam por herança de reis, nobres, religiosos e de colecionadores. Não eram reconhecidos pela sociedade como um bem comum, exatamente.

Parece-nos clara a dissociação, no passado, entre a construção do patrimônio bibliográfico (e outros) em países europeus (alguns, pelo menos) e sua representatividade social. O caso brasileiro é bem similar (em parte, por motivos diferentes), considerando que grande parte dos nossos livros mais raros e antigos, na Fundação Biblioteca Nacional, nasceram em solo europeu.

No artigo que serve de base para esta coluna, menciono a ausência de uma educação sistemática como fator importante para o pouco desenvolvimento ocorrido no país, até hoje sentido de várias maneiras, afetando a relação com o livro e, ainda mais, com o livro na qualidade de patrimônio (isso norteará a pesquisa seguinte, a ser abordada na próxima coluna). Como dar valor ao que não se conhece?

O século XIX viu a construção do pensamento brasileiro e de certo nacionalismo. Na década de 1920, o conceito de patrimônio foi se solidificando, no governo, no Congresso, na imprensa e parte (pequena) da sociedade. Logo depois, nos anos 30 e 40, as discussões sobre Nação se intensificaram e o patrimônio bibliográfico passou a ser citado como parte de um conjunto de diretrizes, como política de Estado. Porém, isso aconteceu de forma acanhada, em círculos restritos.

Melot (2004) foi muito feliz ao dizer que o patrimônio transmuta “as populações em Povos e os territórios em Nações”. Como há material nesta frase para o Brasil de hoje!

Nesse artigo de 2015, detalhamos mais a distinção entre patrimônio bibliográfico e patrimônio histórico no caso do Brasil. Há bastante discussão a ser feita sobre a relação de acervos patrimoniais com suas comunidades, em especial após o advento da digitalização dessas coleções.

Até a próxima!

Autores aqui citados encontram-se nas referências do artigo:

Gauz, V. (2015). O Livro Raro e Antigo como Patrimônio Bibliográfico: aportes históricos e interdisciplinares. Museologia & Interdisciplinaridade, 4(8), 71–87. https://doi.org/10.26512/museologia.v4i8.16905


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VALERIA GAUZ

Tradutora, mestra e doutora em Ciência da Informação pelo IBICT, bibliotecária de livros raros desde 1982, é pesquisadora em Comunicação Científica e Patrimônio Bibliográfico, principalmente. Ocupou diversos cargos técnicos e administrativos durante 14 anos na Fundação Biblioteca Nacional, trabalhou na John Carter Brown Library, Brown University (EUA), de 1998 a 2005 e no Museu da República até 12 de março de 2019.