ONLINE/OFFLINE


BIBLIOTECA, GUERRA E PAZ: A BATALHA DOS BIBLIOTECÁRIOS UCRANIANOS

Toda guerra é o tipo lamentável de conflito, que se espera, seja algum dia erradicado das relações humanas. Afinal, “nunca houve uma guerra boa, nem uma paz ruim” (Benjamin Franklin).

Atualmente, a luta armada de maior repercussão é travada entre a Rússia e a Ucrânia. Uma batalha do século 21, caracterizada por ser híbrida, e realizada em variadas frentes: militar, econômica, política, tecnológica, informacional, cultural. Um dos seus aspectos é a estratégia russa de destruir os dispositivos de memória, em especial as bibliotecas e arquivos. Intenta-se erradicar o senso de identidade ucraniana. Entretanto, a Rússia não contava com o espírito inquebrantável dos bibliotecários ucranianos.

Esse fato é relatado em artigo publicado no website NPR (National Public Radio), pelo repórter e editor Bill Chappell, sob o título: Ukraine's libraries are offering bomb shelters, camouflage classes and, yes, books. Neste sentido, transcrevem-se trechos interpretados. A leitura integral da reportagem, nos desperta o orgulho de pertencer à categoria humana e universal dos bibliotecários.

O repórter destaca o esforço de guerra realizado pelos bibliotecários ucranianos, com as bibliotecas fornecendo desde abrigo às famílias, durante os bombardeios russos, à confecção de redes de camuflagem para os militares, realização de cursos de assistência domiciliar, coleta de livros para doação às bibliotecas de países vizinhos que recebem refugiados ucranianos, e o combate a desinformação gerada pelo inimigo.

Apesar de algumas bibliotecas ucranianas terem sido destruídas pelos combates, outras estão "zumbindo como colmeias", repletas de bibliotecários, leitores, refugiados e voluntários.

As bibliotecas têm trazido especialistas, para fornecerem ajuda psicológica aos residentes que têm de lidar com uma realidade indesejável. Como em muitas bibliotecas existem abrigos antiaéreos, tornam-se espaços seguros. Esse tipo de segurança é destacado, no caso da biblioteca infantil, situada na cidade de Mykolaiv, onde crianças, suas famílias e seus animais estavam sendo mantidos. Neste ambiente, as crianças usam o tempo para selecionar livros, preenchendo as horas antes que possam sair novamente.

No artigo citado, a bibliotecária Oksana Brui (Instituto Politécnico Igor Sikorsky Kyiv), e presidente da ULA (Ukrainian Library Association), comenta as centenas de mensagens de estímulos recebidas, em especial após a emissão da entidade ucraniana adiando uma conferência internacional de biblioteconomia programada. O tom de confiança da mensagem impressionou Nicholas Poole, CEO da CILIP (Library and Information Association). Em um tuíte que atraiu mais de 200 mil curtidas, Poole comentou o aviso que basicamente informava: “Reagendaremos assim que terminarmos de derrotar nossos invasores”. — “Bibliotecários ucranianos, eu os saúdo”.

Na oportunidade, a ULA escreveu à IFLA (International Federation of Library Associations and Institutions), editoras acadêmicas e outras instituições, solicitando a exclusão da associação russa (Russia Library Association — RLA), de todas as atividades. Justificou a necessidade de enfrentar a agressão e de abraçar valores baseados, na verdade, e no compartilhamento de informações.

A solicitação ganhou o apoio de muitas organizações da área, em toda a Europa. Em resposta, a IFLA emitiu declaração na qual expressa a solidariedade com a comunidade bibliotecária ucraniana, e condena todas as ações violentas, mas não mencionou o nome da Rússia ou tomou qualquer tipo de ação contra a RLA.

Segundo Oksana Brui, as bibliotecas ucranianas sempre se caracterizaram pelo ambiente de quietude e calma. Nos dias atuais, elas são marcadas por um "silêncio mortal". Destaca, ainda, os danos sofridos pela Biblioteca da Universidade Karazin, em Kharkiv, uma cidade universitária. Desde os tempos de paz, as bibliotecas ucranianas tentam neutralizar a influência da desinformação. Treinam pessoas em alfabetização midiática e informacional. Com a guerra, a vida na Ucrânia ficou diferente.

Os bibliotecários estão trabalhando duro para manter suas coleções seguras — e garantir que as pessoas tenham acesso a livros e outros materiais. O país hoje luta, não só por sua própria independência e pelo futuro de seus filhos. É solicitado que todos apoiem a Ucrânia, se unam para impedir o prolongamento da guerra iniciada pelo presidente russo, Vladimir Putin. "Hoje a Ucrânia está sendo destruída, amanhã pode ser qualquer outro país", observa a bibliotecária Brui.

Ela também relata sua experiência pessoal. Como na manhã em que as bombas russas começaram a cair sobre Kyiv. Momento em que acordou preocupada com o seu laptop contendo uma apresentação sobre os novos planos para a sua biblioteca. Naquela manhã, a rua em frente à sua casa foi tomada por tiroteio de milícias ucranianas contra agentes russos. Ataques de mísseis a fizeram se refugiar em um estacionamento subterrâneo, com sua filha e gato. Dias depois, pode retornar à biblioteca vazia, antes preenchida pelos murmúrios dos leitores. Quando consegue pegar o seu laptop, a sirene de ataque aéreo soou.

Graças a esse computador, poderia trabalhar. Em contato com o especialista em TI da biblioteca, manteve os servidores funcionando e os funcionários conectados. Assim, o trabalho da Biblioteca não sofreu interrupção. Os russos não conseguiram fechá-la. Atitude significativa ao mostrar que os bibliotecários estão vencendo a sua batalha, na guerra ucraniana, ao manterem as bibliotecas abertas ou internamente operando.

Entretanto, como inicialmente comentado, as bibliotecas e arquivos estão na linha de frente do ataque russo, desde o início. No começo da invasão, as forças russas demoliram os arquivos públicos localizados na cidade de Chernihiv. Um alvo que continha informações confidenciais da NKVD (Comissariado do Povo de Assuntos Internos), e da KGB (Comitê de Segurança do Estado), sobre as repressões da era soviética, e que os russos queriam apagar do registro histórico.

Saquearam, também, os arquivos em Bucha, e de todas as instituições culturais e documentais que conquistaram ou simplesmente destruíram sem um bom motivo. É citado pelo poeta alemão Heinrich Heine, que: “Aqueles que queimam livros acabam queimando pessoas”. Mas, na guerra ucraniana, os russos queimam livros e pessoas juntos, com suas bombas.

Anatolii Khromov (Arquivos do Estado Ucraniano), responsável pelos repositórios de documentos culturais, históricos e sociais, tem evacuado arquivos localizados em várias cidades ucranianas. Transformados em centros documentais errantes da Ucrânia.

Dados estatísticos estimam que os russos destruíram mais de 300 bibliotecas estaduais e universitárias, desde o início da guerra. Em maio de 2022, a Biblioteca Nacional realizou uma pesquisa sobre o estado de seu sistema. Até então, 19 bibliotecas estavam completamente destruídas, 115 parcialmente destruídas e 124 permanentemente danificadas. Os russos destruíram as bibliotecas, juntamente com as cidades que serviam. Também destruíram milhares de bibliotecas escolares.

A luta pela memória nacional assumiu duas vertentes — a preservação dos artefatos físicos e a rápida digitalização dos arquivos e acervos existentes. Tesouros nacionais, como os manuscritos de casca de bétula do início do período eslavo ou as pinturas e manuscritos originais do poeta Taras Shevchenko, sobrevivem com segurança em recipientes à prova de chamas.

O problema dos grandes arquivos era mais complexo. No início da guerra, os arquivos públicos foram apenas 0,6% digitalizados. Muitos ficaram excluídos do processo porque as pessoas que os operavam foram mortas ou fugiram para sobreviver. A preservação requer uma rápida mobilização da comunidade de informação.

Os militares ucranianos se destacam, nesta guerra, por um espírito empreendedor flexível combinado com uma capacidade extraordinária de mobilizar apoio internacional. Assim como os bibliotecários guerreiros.

Anna Kijas, bibliotecária de música da Tufts University, nos Estados Unidos, publicou sobre os seus planos de realizar um “evento de resgate de dados” para arquivos ucranianos. Colegas da Stanford University e da Austrian Centre for Digital Humanities and Cultural Heritage, em conjunto, lançaram o programa Sucho (Saving Ukrainian Cultural Heritage Online). Uma semana após o lançamento, o programa contava mais de 1.000 voluntários. Um mês após, já estavam em coordenação com o Ministério da Cultura da Ucrânia, a IFLA, o Conselho Internacional de Museus e a Memory of the World division of Unesco.

O material judaico salvo pela ação é extraordinário por si só: de arquivos musicais pré-guerra a manuscritos galegos de 400 anos; e textos produzidos por imprensas judaicas da Volínia e Bucovina. A arqueologia do sítio Tauric Chersonese, uma colônia grega fundada há 2.500 anos na península da Criméia. Os materiais do Museu Bulgakov, em Kyiv; e os registros do Centro Ucraniano de Estudos Culturais, um repositório documental de estilos musicais. Porém, há dezenas de arquivos que precisam desesperadamente de preservação.

Os voluntários da Sucho começaram a trabalhar no fornecimento de equipamentos necessário às bibliotecas e arquivos locais. Se os militares ucranianos precisam de sistemas de defesa aérea; os bibliotecários precisam de scanners de mesa, que custam 5 mil euros, e câmeras Nikon SLR, que custam 3.250 euros.

Atualmente, a Sucho também treina bibliotecários. Fornece backup e ensina o trabalho de arquivamento. Os ucranianos precisam digitalizar 86 milhões de documentos. Até agora, 50 terabytes de dados foram arquivados devido a esse enorme esforço global coletivo.

Outras iniciativas, menores, surgiram. A estudante da Stanford, Cat Buchatskiy, criou o Projeto Shadows. Começou a arrecadar dinheiro para adquirir armários à prova de bombas e cobertores à prova de fogo. As bibliotecas da Ucrânia também precisam de suprimentos mais básicos, como geradores e caixas de papelão. Apesar da destruição física, elas mantêm ativa uma rede logística da cultura ucraniana.

Segundo a bibliotecária Bruy: “As bibliotecas seguem seus leitores para qualquer lugar”. Na cidade de Kharkiv, que costuma ser bombardeada, as pessoas moram no metrô. Os bibliotecários levam livros para elas. As pessoas também precisam ler em abrigos antiaéreos. É onde eles mais precisam ler. Afinal, a biblioteca não é um prédio, mas uma comunidade.

Através de um comunicado à imprensa, de 24 de fevereiro de 2022, a EBLIDA (European Bureau of Libraries, Information and Documentation Associations), a NAPLE (National Authorithies of Public Libraries in Europe) e o PL2030 (Public Libraries 2030) expressaram o seu apoio à ULA.

Todas as bibliotecas estão convocadas para este esforço coletivo de apoio aos refugiados ucranianos. As entidades exortam as bibliotecas europeias a acolher os refugiados e a fornecer acesso às suas coleções e serviços.

Na medida do possível, as bibliotecas podem ajudar, apoiando a educação e alfabetização de refugiados, especialmente de crianças e jovens, organizando cursos e formação para obtenção das primeiras noções da língua dos países de acolhimento. Que também estabeleçam ligações com organismos nacionais e locais que prestem assistência social.

No Brasil, apesar de não sofrermos os horrores da guerra, padecemos na paz, pelo abandono e descaso do setor público, para com o fechamento de bibliotecas públicas; pela omissão em relação à lei de universalização das bibliotecas escolares; e do ataque  de extermínio contra a profissão bibliotecária, manifestado no PL 3081/2022, promovido pelo Partido Novo.


   303 Leituras


Saiba Mais





Próximo Ítem

author image
O ALTO PADRÃO DAS BIBLIOTECAS PARA DIGITALIZAR
Fevereiro/2023

Ítem Anterior

author image
PROTOCOLO Z39.83 PARA COMPARTILHAR MATERIAIS BIBLIOGRÁFICOS
Dezembro/2022



author image
FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.