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TEORIA E PRÁTICA DA CATALOGAÇÃO NA PERSPECTIVA DE SEYMOUR LUBETZKY: PARTE II

Nesta segunda parte, dá-se prosseguimento à exploração dos aspectos teóricos e aplicados do pensamento de Lubetzky, salientando questões da ideologia e tecnologia e, em especial, o perfil docente desta personalidade.

O aprofundamento do tema sobre ideologias e tecnologias na catalogação é encontrado em sua palestra: the traditional ideals of cataloging and the new revision, realizada em 1977, durante a conferência: The Nature and Future of Catalogs, promovido pela ALA.

É, nesse evento, que Michael Gorman também proferiu a palestra: Cataloging and the new technologies. A palestra é considerada revolucionária para a época, ao tratar sobre o modelo computacional do catálogo, baseado em registro multinível e multidimensional legível por máquina, e na qual a unidade de construção é descrita com a ajuda de informações conectadas a pacotes. Esses pacotes consistem dos nomes de pessoas físicas e jurídicas, títulos de obras, registro de casos e descrições unitárias dos materiais.  

Do conceito da entrada principal, segundo Gorman, restou uma forma padronizada de indicar o nome de uma pessoa individual, o nome de uma entidade coletiva e o título principal de uma obra individual.

A defesa de Lubetzky para o conceito da entrada principal, com a qual também estão relacionados os problemas da ordenação na impressão dos dados (listagem) e o conceito emitido pela ISBD como tal, coloca-a em posição de invocar os ideais da tradição catalográfica, contra as visões tida por ele como: visões radicais de Gorman.

A discussão publicada ao final do texto da palestra demostrou que inexiste de fato uma cisão na continuidade ideológica da catalogação. Para concretizar o tipo de catálogo descrito por Gorman; Lubetzky acreditava que seriam necessários tempo e progresso tecnológico. Quando questionado sobre a necessidade de continuar a preocupar-se com as indicações das entradas principais no catálogo, e se no futuro as bibliotecas encerrariam os catálogos em terminais, Lubetzky respondeu:

“[...] não faz diferença para mim qual método usaremos para atingir o objetivo; o que é importante para mim é o objetivo. [...] Contanto que você consiga o que acho que deveria, eu concordo. E especialmente se você usar um computador, os métodos pelos quais você atingirá esse objetivo serão diferentes. A questão é que o objetivo será alcançado. Você está falando sobre o fato de que com a ajuda de múltiplos gateways podemos conseguir tudo. Acho que o termo múltiplos pontos de acesso está sendo usado para algo que não existe. Não há nada novo; sempre tivemos múltiplas entradas. As remissivas e as entradas secundárias do catálogo eram fichas de acesso múltiplo. Não eram tantos quanto o computador permitia; agora podemos ter mais deles; mas me parece que isso implica que você deseja chegar a um determinado ponto que o computador lhe dá. Mas para mim, o catálogo deveria oferecer mais do que você pede. [...] Quando questionado se a biblioteca possui George Washington's Farewell Address, a resposta de um bom computador não é uma resposta binária de sim ou não, mas deve informar ao usuário se a biblioteca possui a obra George Washington's Farewell Address em determinado número de edições e traduções, e mostrar todas as formas alternativas que ele pode escolher. Portanto, não é apenas um ingresso, é muito mais. Se por gateway você quer dizer uma situação em que você pede Farewell Address e recebe tudo o que a entrada principal do catálogo lhe dá, tudo bem, fico feliz com isso. Se não for isso, então não cumpre o seu propósito”.

No texto: the cataloging of publications of corporate authors, Lubetzky analisa sistematicamente as regras do código de catalogação anglo-americanas e as posições dos teóricos sobre as indicações de entidades corporativas. Mas é no texto escrito em 1951, sob o título: Cataloging of publications of corporate authors: a rejoinder, ele responde a uma proposta de Mortimer Taube, então chefe do Science and Technology Projetc at the Library of Congress, que tinha por finalidade simplificar e padronizar as regras de catalogação para indicações de entidades corporativas. Taube dedicava-se ao projeto de sistemas para recuperação on-line utilizando operadores booleanos e indexação pós-coordenada.

Ele propunha que as publicações de entidades corporativas fossem indicadas sob o nome da organização, ampliadas, conforme necessário, pelas divisões gerais estabelecidas. Também defendia a unificação dos princípios disciplinares e descritivos.

Em seu texto, Lubetzky apresenta as características da atuação das organizações que requerem uma atenção especial. E, para tanto, seria necessário responder às seguintes questões:

  1. se o relatório ou declaração de uma organização foi elaborado por uma pessoa; se a publicação é escrita sob o nome dessa pessoa ou em nome de pessoa jurídica;
  2. sob que forma é escrito o nome da entidade coletiva: sob o nome do funcionário ou daquele que consta da publicação; como lidar com nomes genéricos; se deve escolher o nome original ou uma tradução do nome; como lidar com os nomes de organizações internacionais;
  3. o longo ciclo de vida das organizações provoca mudanças estruturais e organizacionais e, portanto, de nome; como agir nesse caso;
  4. como determinar a subordinação da organização e a forma de seu ingresso;
  5. como lidar com associações informais de cidadãos que operam corporativamente, mas sem nome identificado.

Para Lubetzky, devido aos problemas complexos e as regras catalográficas inadequadas, algumas bibliotecas tratavam essas publicações como anônimas. Porém, ao fazê-lo sacrificavam o interesse dos seus usuários.

Ao abordar a questão do nome da pessoa jurídica e a indicação de entidade corporativa nos Principles of cataloging, ele explica as similaridades e diferenças entre os nomes individuais e corporativos. A diferença reside no tratamento das mudanças de nome. Enquanto uma pessoa que muda de nome permanece a mesma, todas as suas obras devem ser inscritas sob o seu sobrenome. Uma pessoa jurídica, em seu ciclo de vida, passa por constantes mudanças de identidade, por isso é recomendável inserir as obras dessas entidades separadamente sob o nome pelo qual publicam, com notas que relacionam aos diferentes nomes.

Quanto às organizações subordinadas, que também devem responder pela mudança de denominação, é preferível que essas instituições sejam inscritas sob o nome da organização superior. Porém, salvo nos casos em que esse procedimento introduza ambiguidade, como no caso de um número maior de nomes semelhantes de organização subordinadas.

Em crítica ao AACR2, enfatiza que é inaceitável excluir a autoria corporativa do conceito de autoria. Para ele a criação é igualmente aplicável tanto para pessoas como para entidades corporativa; e requer o mesmo tratamento dado às pessoas; bem como às entidades corporativas, se autoras.

Nesta parte da nossa coluna damos destaque ao professor Lubetzky, observando a pertinência de sua contribuição para o desenvolvimento das disciplinas de catalogação descritiva, seja pelo seu pensamento, seja pela metodologia legada ao aprendizado da catalogação. 

A docência foi outro momento importante da vida de Lubetzky, quando em 1960, ele retorna para UCLA, especificamente na School of Library Service. Onde durante nove anos, exerce a docência, tornando-se professor premiado e de trabalho reconhecido e ressaltado até os dias de hoje.

Estabelece como objetivo para o seu curso de catalogação descritiva, a iniciativa de incutir em seus alunos, não o mero domínio das regras, mas a compreensão dos problemas subjacentes à catalogação.

Neste sentido, se dedicava à catalogação como uma disciplina científica, aplicada e de habilidade profissional. Visava formar bibliotecários como profissionais e, também, como especialistas que pensassem e promovessem a profissão, em especial com relação aos futuros códigos de catalogação.

Mesmo aposentado, em 1969, seguiu lidando com questões teóricas da catalogação e da reformulação das regras anglo-americanas. Seu último texto, The vicissitudes of ideology and technology in Anglo-American cataloging since Panizzi and a prospective reformation of the catalog for the next century, foi publicado em 1990.

Nele analisa mais de um século da tradição catalográfica anglo-americana e aponta aspecto para revisões dos catálogos do século XXI. Insiste na sua avaliação de que o uso inteligente das regras de catalogação é prejudicado pela sua natureza catequética. Salienta que as regras dizem ao bibliotecário de catalogação o que, quando e como fazer sob determinados casos, e não por que fazer.

Para que o bibliotecário de catalogação execute sua atividade com atento interesse, deve entender exatamente do que se trata. Isto poderia ser alcançado de forma simples com uma introdução aos códigos de catalogação explicando a importância e a função catálogo, as tarefas a serem realizadas e os problemas decorrentes; sendo as regras de catalogação criadas de tal forma para aplicação dessas tarefas.

É sob esses pressupostos, que Lubetzky elabora seus princípios fundamentais da catalogação, que é tema de palestra proferida, em 1960, no Meeting on Reworking the Cataloging Rulebook, promovido pela Universidade McGill.

Nela, sintetiza os problemas complexos relacionados com os princípios da catalogação, exposta na estrutura dos códigos de catalogação e na metodologia do processamento catalográfico. O documento lista uma série de perguntas básicas para se reelaborar regras de catalogação. Estas questões são:

  1. o processamento é abordado empiricamente ou metodologicamente?
  2. desde o livro, disco, filme, etc., qual o meio em que a obra do autor é apresentada, seja o registro do material no catálogo da biblioteca ou da obra que representa ou ambos?
  3. como escolher o método de execução das tarefas do catálogo? (caso a unidade básica (isto é, entrada principal) do catálogo represente uma publicação ou edição de uma obra específica de um autor);
  4. qual método deve orientar a seleção da forma do nome do autor e do título da obra como determinante na entrada do catálogo, quando houver diversas formas? e
  5. como inserir o nome e o título selecionado no catálogo, ou seja, qual ordem dos elementos do nome ou do título, se na forma harmonizada com os costumes do país de origem do autor ou na forma do idioma do catálogo?

Estes aspectos comentados acima refletem o perfil docente de Lubetzky, apesar de apenas um de seus inúmeros artigos ser dedicado propriamente ao ensino da catalogação: On teaching cataloging.

No entanto, quase a totalidade dos seus textos são escritos de forma sistêmica, com a temática desenvolvida de maneira analítica, histórica, representando em si mesma o ensino da catalogação emoldurada pela teoria catalográfica.

Ele observou que a prática da catalogação, na biblioteca, está condicionada pelas regras de catalogação. Neste sentido, se espera que os bibliotecários de catalogação saibam quais são as regras e como aplicá-las. Entretanto, não é esperado que avaliem ou aprimorem as regras catalográficas. Assim, nas disciplinas de catalogação descritiva, a ênfase é dada nas regras e não nos problemas da catalogação, no legalismo da prática e não nas consequências que podem advir.

Ele alertou que o bibliotecário deve estar ciente de que os códigos de catalogação não fornecem respostas prontas para todas as questões. Que diferentes bibliotecários de catalogação podem interpretá-las de maneira distintas e aplicá-las em uma determinada situação. E, que as regras mudam com o tempo e o catálogo e a bibliografia elaborados em alguma biblioteca são baseados em regras diferentes.

Portanto, o mero conhecimento das regras contidas nos códigos de catalogação, válidos em determinado momento, limita o estudante de biblioteconomia em seu desenvolvimento profissional; na contribuição para a biblioteca onde irá estagiar ou trabalhar; e no potencial contributivo para o aspecto científico do campo no exercício da profissão.

Para ele, os cursos de biblioteconomia devem ter por objetivo educar os não profissionais, a serem também pensadores e críticos da arte e atividade bibliotecária. Não apenas seguidores de diretrizes, mas líderes profissionais. Bibliotecários que não só darão continuidade ao legado da área, mas irão aprimorar as competências profissionais e científicas.

Neste contexto, nos cursos é válido abordar o tema da catalogação, não como uma rotina delineada por regras, mas como um problema na projeção de um sistema catalográfico metodológico, que facilite aos usuários a utilização dos recursos da biblioteca.

Neste sentido, Michael Carpenter, aluno de Lubetzky e teórico da catalogação, manifesta ter sido ensinado exatamente dessa maneira. Descreve sua experiência durante os estudos na UCLA, ao concluir:

"... um retorno ao modo de ensinar de Lubetzky parece justificado se a catalogação como uma disciplina dentro da biblioteconomia quiser sobreviver".

 

Indicação de leitura

Atti, A. Abordagem do processo de ensino de Seymour Lubetzky aplicado à disciplina de Catalogação descritiva. -- São Paulo, 2021. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. ECA/USP.

Carpenter, M. Seymour Lubetzky as a teacher of cataloging. Cataloging & Classification Quarterly, vol. 25, n. 2-3, p. 181-190, 1998.

Connell, T. H.; Maxwell, R. L. (ed.) The future of cataloging: insights from the Lubetzky Simposium. Chicago: American Library Association, 2000.

Gorman, M. Cataloging and the new technologies. In: Freedman, J.; Malinconico, S. M. (ed.). The nature and future of the catalog: proceedings of the ALA’s Information Science and Automation Division’s 1975 and 1977 Institutes on Cataloging. Phoenix, Az.: Oryx Press, 1979.

Santos, M. N. dos. Fundamentos estruturais do registro bibliográfico: revisitando a compreensão de Seymour Lubetzky sobre a entrada principal representativa da obra e sua manifestação. 2019. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – UFMG, Escola de Ciência da Informação, Belo Horizonte, 2019.

Svenonius, E.;  McGarry, D. (ed.).  Seymour Lubetzky: writings on the classical art of cataloging. Englewood, Co: Libraries Unlimited, 2001.

Verona, E.; Kaltwasser, F. G., Lewis, P. R.; Pierrot, R. (eds). Statement of principles adopted at the International Conference on Cataloguing Principles, Paris, October, 1961. London : IFLA Committee on Cataloguing, 1971.

Willer, M. Contemporary Seymour Lubetzky theoretician, practitioner and teacher of cataloguing (1898-2003). Vjesnik bibliotekara Hrvatske, vol. 46, n. 3-4, p. 1-18, 2003.


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FERNANDO MODESTO

Bibliotecário e Mestre pela PUC-Campinas, Doutor em Comunicações pela ECA/USP e Professor do departamento de Biblioteconomia e Documentação da ECA/USP.