CINEMA


O MAPA E O ESPELHO

O que têm em comum Ramón, Ada e Fanis? A dor da despedida, o choro da partida e a saudade deixada. Além desses sentimentos: um olhar generoso e angustiado sobre o futuro. Como diz Fanis ao despedir-se de Saime: "não olhe para traz para que a esperança viva para sempre". Mas quem são os personagens citados acima? Ramón é o protagonista principal do polemizado (e não polêmico) Mar adentro; Ada do introspectivo Desde que Otar partiu; e Fanis do delicioso O tempero da vida.

Mar adentro ficou famoso internacionalmente pela premiação no Oscar 2005 como melhor filme estrangeiro, e no Globo de Ouro, também como melhor filme estrangeiro, tornando-se centro de atenção por discutir uma questão: a eutanásia. Não é a primeira película a tratar do assunto, nem será a última. Lembremo-nos do excelente "Invasões bárbaras": embora os personagens guardem diferenças nos sofrimentos como conseqüências das doenças, ambos são intelectualmente ativos. Ramón, tetraplégico há 26 anos, canaliza toda a sua lucidez para uma luta, um movimento que cria: morrer com dignidade. Quer autorização judiciária para ter o direito à morte, pois que a vida não pode ser uma obrigação.

Mesmo prostrado, necessitando de ajuda para tudo, Ramón desperta paixões (ou piedade?) ao ter o seu caso filmado em vídeo doméstico e projetado em rede de TV. Duas mulheres irão disputar o direito de ficar ao seu lado, e uma revelará que a paixão transformou-se em amor ao conferir a prova que ele pede que é ajudá-lo a morrer. Anna, a advogada, que se incorporou profissionalmente a ele para conseguir na justiça o seu direito a morrer, e termina apaixonando-se, não encontra a coragem necessária e refugia-se nos braços do marido, enquanto Rosa, a locutora de rádio, que se aproximou para fazê-lo desistir de morrer, apaixona-se e confere a prova de amor requerida ao ajudá-lo a morrer, após ver esse direito negado pela justiça.

O mérito do filme reside ao discutir a eutanásia enquanto um procedimento a ser respeitado pelo Estado como um ato voluntário, de direito individual, um direito do ser humano. A cena da despedida quando Ramón embarca na ambulância para ir morrer na casa de Rosa é piedosa ao mesmo tempo em que poética: o irmão e a cunhada com os olhares lacrimejados e perdidos no espaço, enquanto que o sobrinho a correr atrás da ambulância até cansar.

Em Desde que Otar partiu a cena de despedida é marcada entre mãe e filha paradas e separadas por duas vidraças no aeroporto de Paris. Um choro controlado (da mãe) e dois leves acenos de mãos (da filha Ada) marcam uma despedida sem previsão de novo encontro embora não seja, teoricamente, uma partida para sempre, uma partida para a morte. Mas a morte também está presente neste filme. Diferentemente de Mar adentro em que a morte de um vivo é uma crônica anunciada, em Desde que Otar partiu o argumento é o avesso, um morto tem vida anunciada. Para alimentar a vida da mãe, que mora na Geórgia, esconde-se a morte de Otar exilado voluntário na França. O filme levanta a questão étnica e da situação financeira entre a Europa Oriental e Europa Central que determina o êxodo de jovens em busca de uma vida digna, como fez Otar. Decisão tomada posteriormente por Ada, a mais jovem de uma família de três mulheres (mãe, irmã e sobrinha de Otar) que vivem em Tbilissi a espera de notícias de Otar desde que este partiu. Ada recusa-se a aceitar que o seu namorado deixe a Geórgia, atitude que considera típica de desertores, mas não reluta em tomar tal decisão quando aparece a primeira oportunidade e passa a viver como clandestina na França. É neste momento que acontece a despedida, a cena final de Desde que Otar partiu que nos referimos no início do comentário.

Vamos para a cena final de O tempero da vida, quando Fanis, personagem principal, ao despedir-se de Saime, numa Estação de Trens em Istambul aconselha-a a não olhar para trás para deixar que a esperança viva para sempre. Saime está abandonando a decisão tomada de viver com Fanis e voltando para o marido, o que abre reflexões sobre decisões em relacionamentos enraizados. Apaixonados desde crianças foram separados por questões étnicas entre gregos e turcos. Voltam a encontrar-se quando adolescentes e voltam a seguir caminhos diferentes, para encontrarem-se de novo já adultos. Enquanto Fanis permanece solteiro, Saime casa-se com um amigo comum de infância e tem uma filha. Fanis mandado de volta para a Grécia faz carreira acadêmica chegando a ser um respeitável doutor em astrofísica na Universidade de Atenas. Saime casada com um militar muda-se de Istambul. O argumento do filme gira esses encontros e desencontros entre receitas doces e apimentadas pela gastronomia turca e grega, que aproxima as famílias entrelaçadas pelos casamentos (de gregos e turcos - Fanis e Saime é resultado disso) e pelos paladares. Difícil saber qual o tema do filme se a culinária daquela região mediterrânea, ou os relacionamentos atrapalhados pela questão étnica. O fato é que sempre estão discutindo relações sejam políticas, sejam familiares em torno de uma mesa farta. E a educação de Fanis se passa entre temperos, a física e a geografia política. Mas é inevitável dissociar a análise do filme a questão das separações das famílias pela segregação étnica, o que inevitavelmente leva a saudades e longos períodos de silêncio entre pessoas amadas.

Um personagem sempre tratado como tio por Fanis (posto que era seu tio) cunha uma frase que considero a alma do filme (se é que filme tem alma), revela a essência da película a firmá-la no tema despedida: "quando se olha para o mapa vive-se no mundo, quando se olha para o espelho é tempo de voltar para casa". Assim, separações, despedidas, silêncios, saudades, tristezas, choros são, do mesmo modo como a canela (preferida de Fanis), o sal e a pimenta, O tempero da vida.

Nos três filmes aqui analisados entendemos ser a separação o tema principal, seja no papel da morte anunciada em Mar adentro, no exílio voluntário da insurgente Ada em Desde que Otar partiu, seja na impertinência étnica da interrupção de um amor infanto-juvenil em O tempero da vida.
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Mar Adentro. Espanha, 2004. Drama. Direção de Alejandro Amenabar. Com Javier Bardem, Belén Rueda, Lola Dueñas, Mabel Rivera, Clara Segura, Celso Bugallo.

Desde que Otar partiu. França, 2003. Drama. Direção de Julie Bertucelli.

O tempero da vida. Grécia, 2003. Drama. Direção de Tassos Boulmetis. Com Markos Osse, Tassos Bandis, Georges Corraface.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo