O SEGREDO DE HANNA
Hanna, uma bela mulher, aos 43 anos, se exila voluntariamente do convívio social. Exílio voluntário soa como algo do panteão quando se trata de intelectuais e artistas perseguidos politicamente. E quando se encerra o período das trevas, já que a história é cíclica, os lucros são expressivos. A vida política tem demonstrado isso. (Veja-se o Brasil atual). Mas Hanna, na sua busca pela expiação espiritual, se encerra em um lugar nada convencional: um presídio. Dirão, sobremaneira, que ela não se exilou voluntariamente, ela foi condenada à prisão perpétua. É verdade; mas ela poderia ter pegado apenas quatro anos e meio de prisão, como as outras quatro sentenciadas. No entanto, ela assume uma culpa que não teve sozinha, ela assume a confecção de um relatório que não escreveu. E por quê? Esse é o segredo de Hanna. Um segredo inconfesso, até o dia do juízo final, que ela mesma decreta, quando recebe o indulto após 20 anos de reclusão.
O exílio voluntário configurado na renúncia da defesa, durante o seu julgamento, e confirmado na decretação da pena máxima, é o início desejado de uma complexa autopunição, pois que independente do julgamento possível dos vivos, a condenada quer o perdão dos mortos, e só a morte pode trazer-lhe a paz. Dos vivos quer o respeito da mais comum da convivência que se dá a quem tem saber e conhecimento, e a sua dignidade não pode ser ultrajada por uma revelação: o ato de não saber ler, nem escrever.
Hanna Schmitz (Kate Winslet), personagem central do filme O Leitor (EUA, Alemanha, 2008), dirigido por Stephen Daldry, é vítima de uma segregação peculiar: o analfabetismo. Quando nasce já está em curso o regime nazista. Quando atinge a maturidade convive com o período nazista. Como integrante, à época, de um contingente de não-alfabetizados, não pode escolher emprego, e consegue uma vaga de guarda na SS. Torna-se, naturalmente, funcionária de um Estado totalitário. Esta questão, levantada no tribunal, torna-se crucial, quando a julgada inverte o jogo e pergunta ao juiz o que ele faria se estivesse no lugar dela? Ela submeteu-se a uma vaga de guarda. Era preciso seguir com a sobrevivência física, a necessidade material. Raciocínio simplista? E por que o juiz não lhe responde quando indagado sobre o que faria se estivesse no lugar dela? Ela não deveria proceder como guarda e não abrir a porta da igreja para evitar o caos da fuga? E não deveria inscrever-se na Siemens? Continua simplista a questão dos compromissos materiais?
Buscando um outro tempo da narrativa, encontramos o “menino”. Qual a importância na sua vida? Paixão, amor, conveniência? Esta é uma marca não conhecida pela ação do julgamento: Hanna ajudou ao menino como um desconhecido na rua, o que mostra um lado generoso. Michael Berg (David Kross), um estudante de 15 anos, depois de recuperado, procurou-a para agradecer a ajuda. Um passo para o envolvimento. Um relacionamento sexual, mais que passional. E que Hanna controla com racionalidade. Algo compreensível até pela diferença de idade.
Estabelece-se então uma relação de sexo para Hanna e paixão para Michael. Uma relação que se revela conveniente para Hanna que passa a ter em Michael um leitor freqüente. Surge, então, a questão central do filme: o letramento, determinante para a absolvição ou a condenação de Hanna. A questão é abordada na sua forma mais plena, pungente, ardorosa. Amantes que vão para a cama ler e fazer sexo. Nesta ordem, como imposição da amante. Ao amante caberia ler, e a amante permitir o ato sexual, depois de satisfeita de leitura. Há um ato combinado de tempo para ler e para namorar. Para quem não tem o gosto pela leitura, o tempo assume a culpa, mas normalmente encontra-se tempo para namorar. Como diz Daniel Pennac, em Como um romance, (p. 108-109), “o tempo para ler é sempre um tempo roubado (tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o tempo para amar). Roubado a quê? Digamos, à obrigação de viver. [...] O tempo para ler como o tempo para amar dilata o tempo para viver. [...] Quem é que tem tempo para se enamorar? E no entanto alguém já viu um enamorado que não tenha tempo para amar?”. Hanna na sua ânsia de saber encontrava tempo para os dois enamoramentos.
Voltando então à pergunta sobre qual a importância do “menino”. A de leitor. A sorte de ter na cama alguém que proporcionava além do gozo do sexo o prazer da leitura. Algo em que o menino-amante-leitor também descobre ser prazeroso, e lê com devoção à espera do momento mágico do sexo. (Uma analfabeta, levada pela ânsia de leitura, tem contato com clássicos da literatura mundial; mais que muitos acadêmicos, que sequer pensam na possibilidade de lê-los.) Ao ganhar acidentalmente um “menino” para o sexo, e descobrir um notável leitor, Hanna, de forma ardilosa, consegue aliar as duas coisas: sexo e leitura, na cama. Não deixa de ser um ardil notável e inteligente para a harmonização de prazeres intensos.
Mas o que pesa sobre esta mulher até aqui descrita como uma amante desejável por qualquer homem medianamente esclarecido? A morte de 300 mulheres prisioneiras em um campo de concentração. Uma decisão tomada por cinco guardas, em julgamento, mas assumida por Hanna para não ter um segredo revelado: era analfabeta. Tinha vergonha de não saber ler. Um sentimento negativo colocado no patamar das piores vergonhas que as pessoas possam sentir por si mesmas.
Acusada de ser a responsável pelo grupo, e ter aposto sua assinatura no relatório encaminhado a SS, algo impossível por seu iletramento, recusa-se a fornecer sua assinatura para comparação como requer o juiz. Responsabiliza-se pela confecção do relatório e a assinatura do mesmo para não ter revelado publicamente o seu segredo. Assume a morte das prisioneiras e é condenada à prisão perpétua. As outras quatro são condenadas a quatro anos e meio de reclusão.
É na prisão, de onde nunca mais sai, mesmo quando indultada, que aprende a ler e escrever. Sozinha, sem alfabetizadores, sem preceptores. Alfabetiza-se a partir da audição de livros-fitas enviados durante anos pelo “menino” (Ralph Fiennes). Vale-se do conhecimento convencional da matemática, e dando números por ordem de aparecimento no texto, identifica as letras e vai construindo textos. Depois da leitura vem a escrita. Começa a escrever bilhetes para o “menino”; primeiro de agradecimento, depois incursões sobre as leituras apreendidas, que avançam para cartas e um pedido “escreva para mim, menino”. Hanna morre sem ter o que mais desejava em vida: receber uma carta.
Uma carta do menino que ela não amou, nem pelo qual viveu uma paixão, mas nutriu um sentimento de enamoramento, e guardou a lembrança de um verão cristalizado pelas sessões de leitura e de sexo. Uma carta do menino que apaixonado, descobriu que a amou sempre, muito além daquele verão, e que fez da leitura a aproximação até o dia do juízo final. Para Hanna, já que ao corpo não lhe restava mais nada, restavam os livros-fitas que ela não queria perder ao ser indultada.
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O Leitor. EUA / Alemanha, 2008. Drama. Direção de Stephen Daldry. Roteiro de David Hare, baseado em livro de Bernhard Schlink. Com Kate Winslet (Hanna Schmitz), David Kross (Michael Berg – jovem), Ralph Fiennes (Michael Berg), Bruno Ganz (Prof. Rohl), Lena Olin (Rose), Matthias Habich (Peter Berg).