CINEMA


REVISITANDO O NOME DA ROSA

Lançado na década de 80 o livro O nome da rosa, uma novela de Umberto Eco, foi sucesso mundial, e o filme, também da mesma década, não ficou para trás. Ler o livro e assistir ao filme são coisas que fazem parte da formação do indivíduo. Fazem parte da apropriação do conhecimento humano. Como este sítio (site) no seu conjunto discute informação e tem uma conformação acadêmica, resolvemos contribuir neste sentido (acadêmico), deixando de lado a análise de filmes em cartaz para revisitar o filme de Jean-Jacques Annaud, e tecer alguns comentários de ordem mais conceitual. Afinal o acontecimento de 11 de setembro, a destruição das torres gêmeas nos Estados Unidos nos remete para as torres medievais. Se nas mais remotas guardavam-se o(s) saber(es), nas atuais guardavam-se as decisões financeiras. Ambas representavam o poder ou os poderes de suas épocas. Vamos ao filme. Deixo aqui minhas impressões dessa nova releitura fílmica.

Como o próprio acervo com sua diversidade cultural o filme mistura crime, paixão e intriga; ingredientes presentes nas relações culturais de uma sociedade quer nacional, ou regional, quer ampla ou limitada. Paixão que termina com punição; a Igreja enquanto aparelho ideológico pune e castiga homens e mulheres com significados os mais diversos possíveis. Essa punição, ou punições, mostrada(s) no desenvolvimento da trama, mistura em toda a sua diversidade ideologia, identidade, imagem, simbolismo e significação que o período representa.

Toda a simbologia do ato representado pela busca de um documento se passa num mosteiro do século XVIII instalado com aspecto sombrio e sinistro. Um livro mortal; assim pode ser definido o objeto do desejo desta trama de Eco. Mortal no sentido mais literal do termo, pois que todos que desejaram apreciar o livro, morreram assim que o fizeram. Evidente que não interessa a Igreja, e aqui se exime de culpa a biblioteca - enquanto instituição ligada a uma outra maior -, vincular as mortes ocorridas no mosteiro ao livro, receptáculo do conhecimento, e fica por conta do satânico a culpa das mortes. A inquisição, página negra e cruel da história católica, vive nas trevas, extrai do obscuro a sua sobrevida, e por analogia renega o conhecimento. À inquisição é imputado o período em que a Igreja não permite aos homens o direito à verdade, ao riso, a consciência dos fatos e dos seus atos. Enfim, não permite a manifestação da liberdade, o que tem significação na posse do saber.

O Nome da Rosa mostra uma biblioteca com conformação de uma instituição de conservação. Um organismo ideologicamente característico da época, em que bibliotecas monacais e religiosas eram rigorosamente privativas. Órgãos nos quais, apenas os bibliotecários, intelectuais escolhidos para administrarem a organização dos acervos, tinham o poder de liberar os documentos. Os acervos eram rigorosamente fechados e de uso privativo.

A construção do modelo vai de encontro ao processo cultural que é marcado pela transmissão da experiência de outro, um modelo que impede o ciclo da informação, ciclo este que possibilita ao outro apreender os valores da sociedade.

Os mosteiros, representantes simbólicos da religião, reuniam documentos de caráter moral (ou melhor, atentatórios a moral). Somente o bibliotecário, assim denominado um clérigo destacado na hierarquia daquele mosteiro tinha acesso aos documentos. A este era dado o poder de decidir o que poderia ser lido ou não. Quase sempre nada.

Em relação à biblioteca, chama a atenção o labirinto que é a mesma. Significativamente a sua construção pode ser representativa das dificuldades que se queria impor para dificultar o acesso aos documentos. Tal afirmação pode ser constatada em dois momentos: l) a necessidade de marcar o espaço percorrido (característico de labirintos); e 2) não existe evidências de que os documentos tinham algum tipo de classificação.

Analisando a construção da biblioteca do mosteiro de O Nome da Rosa verifica-se a existência de traços arquitetônicos da dificuldade que se quer para o objeto do conhecimento, o acervo. O significante na trama de Eco é a biblioteca estar instalada em uma das extremidades do mosteiro, uma espécie de torre. Torre sempre foi simbólico para a época como forma de repressão. Era lá que ficavam os prisioneiros que se queria distante do poder. Era símbolo do desterro. Uma biblioteca instalada numa torre mostra a forma de fazer com que o saber e o conhecimento fique restrito àqueles que têm o poder de segregar qualquer objeto na torre. A forma circular das salas que compõem a biblioteca do mosteiro complementa esse cenário de dificuldade para o acesso de não treinados na arte da biblioteca.

O conceito de conservação, de não difusão do saber e do conhecimento, estaria ligado ao conceito de ordem. Não havendo a proliferação do que era considerado 'o mal' não seria quebrada a ordem. Um conceito determina o outro.

A trama de O Nome da Rosa traz à discussão assuntos pertinentes a uma biblioteca cujo modelo era o da conservação do conhecimento, ou seja, de documentos que não podiam circular. Eram acervos fechados e privativos. Uma construção hermética para dificultar o acesso aos que lá não trabalhavam, os curiosos. Constituía-se em um depósito de documentos que eram retirados quando necessários para consulta dos mantenedores da ordem. Era especificamente dirigida para servir ao domínio do conhecimento pelo alto clero ou realeza, conforme o tipo da biblioteca.

Sempre será tempo de conhecer o mosteiro de O nome da rosa. Leia o livro; assista ao filme. Esta coluna recomenda


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo