BIBLIOTECAS ACADÊMICAS


SCOTT, O CONTINENTE GELADO E AS BIBLIOTECAS ACADÊMICAS: DESAFIOS E MISÉRIAS

Bodas de latão, bodas de prata, bodas de ouro, bodas de diamante. Em pleno século 21, apesar de apenas começando, já estamos acostumados à velocidade dos tempos, aprendemos e incorporamos o sentido da velocidade em todas as áreas da atuação humana.

O século 20 foi pródigo em ações que buscavam a velocidade, quebrar os limites impostos por séculos ou milênios aos homens. No início do século 20, precisamente em 1910, o capitão Robert Falcon Scott e sua equipe partiram da Inglaterra em direção ao Pólo Sul, a última fronteira intocada do planeta. A ousada e trágica viagem de Scott à Antártica foi documentada e já era, sem que Scott soubesse, uma corrida metro a metro pela chegada do primeiro homem ao centro do continente gelado, até então inacessível, inexplorado. O século começava e a velocidade já era o componente implícito em todas as ações humanas. Scott conseguiu alcançar o marco zero com mais um companheiro de jornada e descobriu, para sua maior frustração, que poucos dias antes, Roald Amundsen, um noroeguês explorador, havia chegado ao Pólo e deixado a bandeira da Noroega fincada na neve eterna da Antártica. O retorno de Scott do Pólo ao acampamento britânico às margens do oceano, sob a guarda do Monte Erebus, foi interrompida por uma tempestade de neve que fez Scott e seus dois companheiros suspenderem a caminhada e, por longos dias, conviverem com a diminuição da ração até a sua completa extinção, exaurindo as forças dos membros da expedição, a temperaturas que chegavam a mais de 50 graus negativos. Na base montada aos pés do Monte Erebus, o restante da equipe aguardava Scott retornar de sua jornada. Após 1 ano, uma equipe de resgate, formada pelos membros que haviam aguardado Scott na base, encontraram-no, congelado com seus dois outros companheiros, dentro da barraca montada para proteger-se da tempestade de neve que o fez suspender a caminhada. Ironia do destino: a equipe de resgate constatou que Scott estava a poucas horas de caminhada do depósito de suprimentos montado para abastecer a equipe no retorno à base. Depois de milhares de quilômetros, morreram sem saber que estavam a poucos metros do depósito de suprimentos que poderia salvá-los da inanição e hipotermia.

Mas o que o capitão Robert Falcon Scott e a Antártica têm com as bibliotecas acadêmicas? Nada? A expedição de Scott à Antartica foi financiada pela Royal Society, promotora da "nova ciência", experimental, empírica, exploradora. Vários membros da expedição eram "cientistas", meteorologistas, geólogos, zoólogos, cartógrafos quando não tinham em sua formação duas, três ou mais disciplinas. Muitos estudos foram realizados nos longos meses em que a expedição estabeleceu-se no continente antártico. Uma profícua produção de textos, relatórios e estudos científicos foi elaborada pela expedição. A divulgação científica não foi esquecida e artigos sobre as peripécias da expedição no continente inabitado foram publicados em jornais de grande circulação. Tudo isso desembocou nas estantes das bibliotecas acadêmicas e ainda continuam chegando. Bem, mas essa pequena passagem da história humana, das explorações, tem outras lições e conexões a oferecer aos bibliotecários. Muitas situações são enfrentadas pelos profissionais de bibliotecas (bibliotecários, auxiliares, etc.) em que são colocados em tarefas limítrofes, situações extremas. O bibliotecário, líder da equipe de profissionais da biblioteca, deve conduzir sua tarefa através das dificuldades, dos obstáculos existentes, preservando os membros de sua equipe e, ao mesmo tempo, motivando-os a alcançar as metas estabelecidas. Dificil, mas não impossível. A liderança, positiva, é imprescidível. Todas as grandes conquistas foram produzidas através de grupos de pessoas interagindo com as dificuldades mas sempre mediadas por uma liderança, uma grande liderança. A trajetória de Scott e de sua equipe pela Antártica foi relatada em muitos livros, um deles, uma "biblia" de mais de 500 páginas, foi escrito por Apsley Cherry-Guarrard, o mais jovem dos membros da expedição. "A pior viagem do mundo" não é um livro de turismo mas um relato apaixonante sobre como o ser humano pode superar os maiores obstáculos e alcançar seus objetivos, por mais que possam ser considerados inatingíveis.

Todos sabemos da importância do chamado capital humano, hoje um pouco desgastado e substituído por outros "ativos" ou "ondas" como gestão do conhecimento, sociedade do conhecimento, sociedade da informação, etc., etc., etc. O fato é que o capital financeiro continua dando as cartas, vide o lucro estrondoso dos bancos enquanto as ordas de desempregados, famintos e excluídos perambulam pelo país, desafiando todas as políticas públicas para distribuição de renda e inclusão social. Oito anos de FHC, 1 do PT, apesar de governantes "esclarecidos" não deram conta da "conta social", da imensa dívida que temos para com nossos compatriotas, ao contrário, a dívida aumenta, assim como nossa dívida pública (interna e externa), 58% do PIB brasileiro, mais da metade da produção do país durante um ano. A precarização das condições, relações e contratos de trabalho campeia em novas áreas. As conquistas do estado getulista, a CLT e as garantias dos trabalhadores frente ao poder do capital estão caindo por terra e uma verdadeira massa de trabalhadores é absorvida em novas e piores condições de trabalho representadas pelas cooperativas de trabalho, sem décimo terceiro, sem descanso remunerado, sem férias e, finalmente, sem dignidade. É o império do capital sob o estado de bem-estar social que deixa de ser um objetivo, mesmo antes de ser alcançado e passa a uma condição de utopia sob os tempos do FHC-PT.

Estamos mergulhados na condição limitada pela sobrevivência, subsistência, e nesta condição qualquer senzala parece um hotel cinco estrelas e é disputada por multidões que passam de 10 quarteirões. Esse é o "capital humano" na era da globalização (da exploração) e da inoperância do Estado como mediador, gerenciador e fiador do estado de bem-estar social, fica, somente, a retórica de tempo de campanha eleitoral. O Estado está preso na armadilha dos interesses do capital e de sua própria sobrevivência como estrutura de poder e financiamento. O Estado vai bem, o povo, a sociedade, vai mal, muito mal.

Quem acompanha o mercado de trabalho dos profissionais de bibliotecas deve ter a exata medida do que podemos entender sobre a questão da precarização das condições de trabalho. Salários aviltantes, equipes reduzidíssimas, investimentos parcos e a miséria campeando em todas as áreas. Não estamos avançando, paramos e estamos retrocedendo. Os até então promissores representantes de partidos políticos que poderiam reverter a situação da dívida social na área da cultura e educação, na qual estão inseridas as Bibliotecas e seus profissionais, estão decepcionando os mais crédulos. Políticas de educação e cultura como a dos CEU's (Centros de Educação Unificado) da prefeitura petista de São Paulo esbanjam contradições, deficiências, amadorismo, travestido em grandes obras físicas. Os bibliotecários, convocados para implantar as bibliotecas dos CEU's, têm seus salários (bruto) em torno de R$1.300,00. As chefias das bibliotecas estão sendo contratadas no grande trem da alegria dos cargos em comissão (sem concurso público), pasmem, mas isso merece um outro artigo, exclusivo, extra, extra! Bibliotecários de todo mundo, uní-vos!

Nas bibliotecas acadêmicas, cortes e redução de investimentos estão na pauta do dia. Salários de R$ 800,00, em muitas instituições de ensino superior, são a "paga" pelo trabalho especializado do bibliotecário que tem a tarefa árdua de oferecer os recursos informacionais necessários à comunidade, nem sempre disponíbilizados pela IES. Os demais membros da equipe de profissionais das bibliotecas estão rebendo remunerações que variam de míseros R$ 300,00 a incríveis R$ 700,00.

Os estudantes de faculdades de biblioteconomia e ciência da informação devem "tremer na base" ante tal realidade. O que fazer?

Voltemos à questão do tempo, da velocidade. Interessante perceber alguns fenômenos ligados às bibliotecas acadêmicas. A poucos dias, exatamente a uma semana, fechou-se um ciclo de 10 anos de atividade deste que vos escreve frente à coordenação das bibliotecas universitárias de uma instituição privada em São Paulo, reestruturação, corte de custos e conseqüente extinção da Diretoria do Sistema de Bibliotecas da Instituição. As seis bibliotecas, anteriormente ligadas através do Sistema de Bibliotecas, passam a responder, cada uma, ao diretor do respectivo campus universitário. Já tinha "cantado a bola" em artigo publicado nesta coluna no segundo semestre de 2003. O desequilíbro no mercado do ensino superior no país e, em particular, nas grandes metrópoles, produziria estragos consideráveis nas estrututras até então implantadas e em operação. Infelizmente ainda não vimos tudo. Outras estratégias de "preservação e sobrevivência" das instituições serão postas em planejamento e operação, perdem os estudantes, o corpo docente, as organizações como um todo, perde o país. Não temos dúvidas de que sobreviverão aquelas que conseguirem passar pela crise preservando o que têm de melhor, não prescindindo da qualidade mas investindo nela, fortalecendo as suas áreas de excelência, adequando mas não destruindo, preservando o seu capital humano, o mais caro a todas as IES, seja de que natureza forem. O tempo dirá, a velocidade nós vamos constatar.

Curiosidade: há algum tempo atrás um acadêmico norte-americano, cujo nome não me recordo agora, deu uma entrevista à revista Veja, nas famosas "Páginas amarelas" e distingüia o significado das palavras aluno e de seu pseudo-sinônimo estudante. Pois bem, o intelectual apontava que todo sistema de ensino superior precisava centrar-se na idéia de trabalhar com estudantes e não com alunos. Fundamento: etimologicamente, a palavra aluno quer dizer "aquele que precisa ser alimentado" e estudante quer dizer "aquele que busca o saber" . Nada mais adequado quando falamos da importância da biblioteca acadêmica, do tipo de usuário que formamos, treinamos e desejamos. A passividade não combina com a educação, não engulam alimentos tipo "fast-food", não acomodem-se nas confortáveis cadeiras escolares, buscar é o que conta no verdadeiro aprendizado.

Aluno: do latim alummus,i - criança de peito, lactente, menino.
(Fonte: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, 1.0)

Sobre a viagem de Scott à Antártica leia:

CHERRY-GUARRARD, Apsley. A pior viagem do mundo: a última expedição de Scott à Antártica. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 556 p. ISBN 85-7164-926-X. Prefácio de Amyr Klink.


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ARTUR DA SILVA MOREIRA

Bibliotecário, fundou e presidiu o Grupo de Bibliotecas de Instituições Particulares de Ensino Superior – GBIPES (1997 – 2004) e a Comissão Brasileira de Bibliotecas das Instituições Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica – CBBI (2011 – 2014). Formado pela FESP-SP, turma de 1987. Coordena o Grupo de Trabalho de Cadastro de Bibliotecas e Profissionais da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e atua como moderador e administrador da Lista de Discussão da CBBI, atualmente com 672 membros.