CINEMA


O LADO OCULTO DA ALMA

Certa feita ao ser perguntado se teria se apaixonado Monteiro Lobato respondeu: “Ah! Este é o lado oculto da minha alma”. O que soa como: a paixão é algo a ser guardado por cada um dos viventes. No filme Something Like Happiness (Algo como a felicidade), exibido na 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, uma adolescente pergunta a sua tia se ela chegou a se apaixonar, ao que ela adere com consentimento. A jovem pergunta então sobre o apaixonado.  A senhora diz que ele não ficou sabendo. A jovem fica intrigada: “como assim ele não ficou sabendo”, interrroga. A senhora então lhe diz: “Há coisas que não precisam ser faladas”.

 

Como cinema e realidade se confundem e a paixão e o cinema andam juntos, muito, e quase sempre, recomendo dois filmes que falam da paixão. Um da paixão responsável, transitando na fronteira do amor, caso do filme Fora do Mapa, outro daquela paixão irresponsável, esquizofrênica, caso do filme Amor para Sempre.

 

Em Fora do Mapa (EUA, 2003) temos a história de um jovem funcionário do fisco americano que se desloca até um lugar isolado do Novo México para cobrar uma dívida de imposto de renda em uma fazenda. Ao chegar lá se depara com uma mulher completamente nua trabalhando em sua horta. É a dona da fazenda, que acostumada a não ver ninguém em quilômetros de distância punha-se a trabalhar como no paraíso (assim ensina a Bíblia). Picado por abelhas ele fica entre desacordado e delirante por dias, tendo os cuidados dos fazendeiros. Ao recobrar a consciência ele confessa a dona da fazenda que está apaixonado por ela. Ela é casada, vive na fazenda com sua filha, uma adorável adolescente fascinada por leitura – aliás, como todos naquele rancho –, e com o seu marido, em estado depressivo, por quem tem verdadeiro desejo e admiração. 

 

Confessada a sua paixão, pede para ficar na fazenda para viver como amigo ao lado daquela mulher que o fascinara. O casal concorda. Larga o bom emprego do fisco americano e descobre na paisagem árida do Novo México a sua inclinação para a pintura. Confessa-se também depressivo. Passa os dias a pintar para a adolescente da fazenda, buscando o ponto de encontro entre o céu e o deserto, em substituição ao mar. Sete anos depois é encontrado morto. Anos que viveu ao lado da mulher que amou externando sua amizade. As suas pinturas são exibidas, e é tido pela crítica como um gênio da pintura. Fora do Mapa é uma lição de como os relacionamentos bem resolvidos são saudáveis.

 

Amor para sempre (ENG., 2004), faz o caminho inverso, o da paixão esquizofrênica.  Temos a história de Joe (Daniel Craig), um professor universitário, que de repente se vê envolvido com Jed (Rhys Ifans), um homem muito esquisito, a persegui-lo de forma acintosa. Em princípio, pensa o espectador tratar-se de um caso de fanatismo religioso, pois a justificativa do homem é a de que tudo o que aconteceu para que eles se conhecessem foi um sinal de Deus. Aos poucos a trama vai revelando tratar-se de uma paixão. Morando com a namorada, Claire (Samantha Morton), uma artista plástica, tenta conversar sobre o assunto, mas esta não lhe dá atenção. Tarde demais. A esta altura a sua vida virou um inferno. Para onde ele vai lá está Jed, que chega invadir a uma de suas aulas, provocando-lhe constrangimentos. Claire é convencida por Jed que está tendo um caso com o seu namorado. Jed, num gesto extremo para mostrar que irá até as últimas conseqüências por sua paixão, tenta matá-la.

 

Em ambos os casos a alma se valeu do lado oculto. Para o bem ou para o mal, as paixões em Fora do Mapa e em Amor para Sempre foram reveladas o que contraria o princípio exposto no primeiro parágrafo por Lobato e a personagem de “Something...”. Nunca se sabe o que virá do lado oculto da alma, aquele que guarda a paixão.

 

Um outro filme que merece ser comentado nesta Coluna é Seu nome é Justine (Masz na imie Justyna) (POL., 2005). Não fala de paixão, mas mostra o lado oculto da alma. O filme é terrível, e mostra o nível de sociedade a que chegamos. Justine é apenas um caso isolado de tantos que acontecem mundo afora pela afrontosa atrocidade masculina na exploração do sexo oposto.

 

Não se trata de um filme ficcional, conforme seu diretor Franco de Penã, presente à sessão, declarou. Nascido venezuelano, residente alemão, disse estar sendo criticado na Europa por ter filmado tal acontecimento. Disse, para justificar as críticas, que “quando é dos outros nos podemos mostrar, mas mostrar aquilo que é nosso não pode”. Embora Umberto Eco diga que “os apelos narrativos à verdade, fazem parte do jogo ficcional”, temos que acreditar nessa narrativa como verdadeira, posto que dito pela própria voz do diretor.

 

 O filme é narrado pela própria Justine (Anna Cieslak), o que deixa o espectador mais tranqüilo por saber que a personagem conseguiu superar o inferno a que foi submetida, já que como narradora estaria presente ao final. O argumento fundamenta-se na venda de uma moça polonesa à máfia da prostituição alemã, por seu próprio namorado e amigo desde a infância. E por que ela não foge? Essa resposta só assistindo ao filme. É a agonia do espectador. A realidade de Justine não foi entrar no inferno, e posteriormente ter saído, mas o que viveu. Como disse Guimarães Rosa, o real não está na saída, nem na entrada, mas sim na travessia.

 

Exibido na 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi dos filmes a que assisti, da mostra competitiva, o único que foi aplaudido. É bem verdade que a presença do diretor na sala pode ter contribuído para tal. Infelizmente, Justine não está programado para chegar às telas do cinema nacional, e não sei se virá em DVD, pois foi exibido com legenda eletrônica.

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Fora do mapa. EUA, 2003.  Direção de Campbell Scott.

Amor para sempre. ENG., 2004. Direção de Roger Michell. Com  Daniel Craig, Samantha Morton, Rhys Ifans.

Seu nome é Justine. POL. 2005. Direção de Franco de Peña.  Com Anna Cieslak, Arno Frisch, Rafal Mackowiak.


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JUSTINO ALVES LIMA

Bibliotecário aposentado pela Universidade Federal de Sergipe. Graduado e mestre em Biblioteconomia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo